Por baixo da superfície

Como trabalhador e construtor, Marco Polo vira e revira as entranhas do Mundo
Marco Polo: destruir para construir
01/12/2002

Certos objetos originados da arte japonesa de dobrar papel nos mostram, para além deles, que formas dão origem a espaços; ou o inverso: espaços geram formas. Marco Polo Guimarães, em A superfície do silêncio, especialmente nas composições Pela manhã, Um minuto de silêncio, e Paisagem, faz que, paradoxalmente, o espaço nasça de uma certa conjunção/disjunção das palavras. Em Pela manhã há, de fato, um espaço que surge do corte abrupto, quando a fluidez da imagem — “O rio é um silêncio líquido” — é repentinamente interrompida, criando um vazio (uma clareira?) no meio do terceiro verso. Esse hiato entre “silêncio líquido” e “As árvores” introduz uma aspereza, um choque, uma imprevisibilidade, contrapondo-se à imagem do rio como água escorrendo sonoramente. Da ruptura desprende-se então um silêncio metamorfoseado em imagens auditivas, visuais e olfativas; como se a manhã fosse o despertar dos sentidos, não mais embotados pelo sono do hábito, do ouvido anestesiado pela repetição.

É possível então descobrir o âmago do mundo, identificar-se com o cosmo pela unificação dos sentidos dilatados numa capacidade maior; não somente do ouvir, mas do ver, do cheirar — como uma espécie de epifania sensorial do que emerge da vida em sua raiz: “Algo estala as sementes./Algo como um aroma de frutas”.

Em Um minuto de silêncio, a palavra sombra fala de si mesma. Mais do que à idéia de um pássaro real, remete a um reflexo, uma projeção: “Este pássaro, ou melhor, esta sombra”: seria então indício de algo que se partiu e aparece como reflexo sonoro em “pássaro”, “passa” e “praça”? Nesse caso, seriam “sombras” esses estilhaços dispersos no texto, ecoando os rastros ou pegadas… Mas, de quê? Talvez desse “pássaro”, que não se mostra diretamente, mas como fantasma. “O vidro do ouvido”; a relação entre “trincar” e “gritar” (em Um minuto de silêncio); o “campo de vidro” (em Paisagem), parecem infiltrar-se de um sentido que transcende as imagens imediatas: esse sentido não reflete o de metalinguagem, o do poema contrapondo-se como musicalidade dissonante à tradição do verso melódico? Não propriamente enquanto ausência da música, mas como sinal de predileção pela imagem que surge do susto, da colisão, do inesperado?

Há também uma dialética oculta entre o dormir e o estar acordado, alerta. Essa dialética é a própria relação do poeta com o universo, com o mundo que está sob seu olhar. Ver. Perceber. Conhecer. Uma tríade que tem como vínculo o poético. A poesia como lugar de Eros; não de posse ou domínio, mas de conhecimento. Conhecer é uma arma de dois gumes: “Esse teu jeito calmo/ É uma ameaça:/ Praça onde o povo/ Em revolta/ Ainda cala/ Mas não disfarça”.

As palavras, assim como as coisas, assim como o amor, guardam escondido um perigo, um presságio, algo como uma cilada. Não existe desconfiança ou sentimento de autodefesa. Mesmo se a ameaça — o risco de que tudo de repente desmorone ou sucumba — chegue quase a ser o espaço da normalidade nesse universo em que “Corvos num campo de trigo/ Medem a extensão do silêncio,/ Este silêncio que é vácuo,/ Este silêncio inimigo.// Quem pode ver na paisagem,/ Nesta paisagem calada,/Algo que cale o presságio?”

Em O tigre e a gazela, a “pata de pluma” convive com o “silêncio violento”, contrapondo-se ao “silêncio íntimo”, num tempo cuja aparente lentidão nada mais é que uma “sucessão de segundos”.

Entre o dormir e o acordar existe um trajeto a ser percorrido pelas coisas e seres. São esses que dormem: “Pela manhã o canto claro do galo/ atravessa o túnel longo do sono”, enquanto o poeta permanece em contínua vigília, atento à irrupção do desastre que ele próprio prepara, como desmoronamento do mundo habitual e acorrentado ao previsível: “Dormes ao meu lado como um gato do mato no/ alto de uma árvore escura.// Dormes ao meu lado como o caroço de uma/ fruta ainda verde ainda amarga ainda sede ainda/ ainda”.

Mas nem tudo em A superfície do silêncio é presságio ou perigo de cilada. Por vezes, o poeta desce do seu observatório e empreende um corpo a corpo com o seu próprio material de trabalho. Numa espécie de acerto de contas ou inventário para um legado aos pósteros, investe contra o edifício carcomido da língua, ou antes contra os usos repetidos que dela se fazem, imprestáveis para a poesia. Há um sentido de organicidade no ato de demolir para construir, alicerce vital de tudo, na economia metabólica do Universo.

O poeta de A superfície do silêncio vai muito além da superfície: como trabalhador e construtor, vira e revira as entranhas do Mundo. Na faina de remontar os materiais, do velho pode surgir o novo: “Varro todos esses cacos de linguagem/ escada abaixo eles despencam mudos.// Depois lavo os degraus/ Para que, ao amanhecer, quando vierem trabalhar/ Os homens encontrem tudo como novo/ E possam novamente tentar dar nome às coisas/ e alcançar as portas do Jardim do Céu.”

A superfície do silêncio
Marco Polo Guimarães
Edições Bagaço
92 págs.
Maria da Paz Ribeiro Dantas

É poeta e ensaísta.

Rascunho