Os povos sem língua

O Brasil é um país de imigrantes. Foi feito, está sendo feito, por gente de todos os lugares do mundo
01/12/2002

O Brasil é um país de imigrantes. Foi feito, está sendo feito, por gente de todos os lugares do mundo. Mas há algo de diferente no Brasil, no ar, na água, na terra, sei lá, que faz logo o imigrante não querer nunca mais voltar ao seu lugar de origem, e seus filhos já se considerarem brasileiros (na maior parte dos casos). Mas este é o Brasil. Aqui na Inglaterra a coisa é muito diferente.

Apesar de ter sempre recebido imigrantes, foi apenas após o final da Segunda Guerra que a Inglaterra começou a exercer sua atração de país rico e desenvolvido sobre o resto do planeta. E os habitantes de suas ex-colônias foram os mais atraídos, até por razões óbvias. Logo depois de 1950, o grande fluxo de imigrantes vinha do subcontinente indiano — Índia, Paquistão e Bangladesh —, e da Jamaica. Nem todos vinham com visto, mas todos vinham dispostos a fazer o que lhes fosse oferecido para juntar dinheiro. A atração era tanta que muitos pagavam “agentes de migração”, escroques que se aproveitavam da precariedade dos controles da época para vender passaportes falsos, arranjar alojamentos sem intermediação do estado e trabalhos clandestinos.

Muitos destes imigrantes, em especial os da Ásia, chegavam sem falar inglês. Logo, a única maneira de integração possível era dentro de suas comunidades de origem. Punjabis com punjabis, bengalis com bengalis, hindus com hindus, muçulmanos com muçulmanos, e por aí vai. Cada grupo manteve as suas características culturais e principalmente religiosas. Para o imigrante, esta era uma forma de sobrevivência. À medida que eles prosperaram, começaram a trazer suas famílias de seus países de origem. E as crianças. Aí começaram os problemas.

As crianças viviam entre dois universos. Em casa, elas testemunhavam um mundo que havia ficado para trás, e que não lhes pertencia. Falando apenas de algumas comunidades indianas e paquistanesas, isso significava casamentos arranjados, seguir os preceitos da fé muçulmana, as leis do Corão, e tudo o que ele diz a respeito de comidas, costumes sociais e outros. Fora de casa, viviam em um mundo completamente diferente, onde o que aprendiam com seus pais não era útil. A liberdade de crença religiosa (em todas as religiões, o choque é sempre dos ortodoxos e fundamentalistas com a “outra” realidade), os costumes sociais diferentes, a organização política, a influência da mídia, enfim, um conflito permanente. Sem contar com a pressão dos pais para que a criança se integrasse ao mundo novo em que viviam. Por fim, há a questão da língua, importantíssima. Enquanto os imigrantes preferem e usam suas línguas natais, por não dominarem o inglês, seus filhos utilizam apenas a língua do colonizador, pois necessitam dela para integrar-se à sociedade e poder fazer amigos na escola.

(Recentemente, o ministro do Interior britânico, Dave Blunkett, cometeu uma gafe ao dizer que todos os imigrantes deveriam falar apenas inglês em suas casas, sob risco de os filhos destes novos britânicos não conseguirem acompanhar seus colegas na escola por não entenderem o que lhes é ensinado).

Este é um longo circunlóquio, eu sei, e talvez nem faça tanto sentido no Brasil, onde já vivem as terceiras, quartas e quintas gerações dos imigrantes. Mas aqui na Inglaterra este é um problema que só agora começa a ser abordado na literatura. E quem escreve sobre isso são os imigrantes, ou seja, quem vive esta história por dentro. Um dos primeiros livros sobre o tema, e um dos melhores também, é Émigré journeys (Viagens do imigrante, 2000, Serpent’s Tail, 250 págs.), do paquistanês Abdullah Hussein, considerado o melhor escritor da atualidade em Urdu, uma das línguas faladas no subcontinente indiano, e este é seu primeiro livro escrito diretamente em inglês (um detalhe talvez, mas que fez o autor refletir sobre a questão da língua como formadora da identidade pessoal).

Hussein, que vive na Inglaterra desde 1967, escreve duas histórias paralelas de uma mesma família. A primeira conta a história de Amir, um jovem paquistânes que no início dos anos 60 deixa seu país para viver em Birmingham, na Inglaterra. Sem documentos legais, Amir vive o constante medo de ser descoberto pela polícia, de ser deportado, de perder seu emprego, de não ter dinheiro para pagar seu aluguel ou para comprar comida. Amir vive em uma casa com outros dez imigrantes, todos em situação ilegal, e a história conta como são os primeiros dois anos de Amir na Inglaterra, e sua luta diária para estabelecer-se.

A segunda história se passa 30 anos depois, e é sobre Parvin, a filha de 19 anos de Amir. Parvin chega à Inglaterra com cinco anos, ainda falando Punjabi. Desde o primeiro dia no novo país, seu pai começa a pregar as lições de sobrevivência. Falar apenas inglês, ter amigos britânicos, se comportar como os outros na escola. Mas como fazer isso quando se tem uma família que dentro de casa tem hábitos completamente diferentes?

Se na primeira história Hussein fala sobre as dificuldades de adaptação de quem chega, na segunda discorre sobre os problemas que os filhos dos imigrantes possuem ao procurar uma sua identidade. Há uma sensação de não pertencer a lugar algum, sensação esta que é desorientadora. O drama é maravilhosamente expresso por Hussein, usando a voz de Parvin, que responde à pergunta de sua mãe, “o que você quer?”

“O que eu lhe respondo, e como, que eu quero isto, uma língua, como Deus tem a sua e minha mãe a dela e meu pai a dele, até a Jenny (N. R. namorada inglesa de seu irmão), com seu sotaque horrível tem a dela, mas eu não, eu tenho todos os verbos e substantivos e adjetivos e toda a gramática mas não tenho língua, eu falo como todo mundo e eu não sou todo mundo…”

Esse é o choro de dor de alguém sem raízes. Hussein é hábil ao narrar ambas as histórias de Parvin e Amir na primeira pessoa. O escritor alterna os capítulos de um e de outro, de modo que só temos o quadro total desta família no final do livro. E percebemos que, por mais prático que alguém possa ser na vida, há mais coisas do que apenas casa, comida e roupa lavada.

Sem grandes artifícios lingüísticos (até por escrever em uma língua que não é a sua) ou literários, Hussein aborda com simplicidade e sabedoria o drama do imigrante contemporâneo. Drama este que é universal, pois os tempos modernos trouxeram novas “hordas de bárbaros” (os habitantes do terceiro mundo) para a “civilização” (Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental e Austrália, e até certo ponto o Brasil, se levarmos em conta sua importância na América do Sul), recriando e renovando os conflitos de adaptação, de choque cultural e outros. Um livro belo, com duas belas histórias, que apesar de ficcionais estão acontecendo todos os dias.

P.S. No meio do texto, disse que a questão dos imigrantes parecia não fazer sentido para os brasileiros. Menti. Praticamente todos conhecem alguém que largou tudo para ir morar no “Primeiro Mundo”. Os brasileiros imigrantes, que desde a ditadura militar deixam o Brasil, seja por questões políticas ou econômicas, fazem parte das novas “hordas de bárbaros”. Seus filhos são também crianças e adolescentes sem país, que vivem uma eterna saudade do Brasil, mas ao mesmo tempo já crescem sabendo que não irão se adaptar se voltarem. Uma geração de brasileiros sem raízes, sem uma língua própria, sem um lugar no mundo.

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho