O avesso que fascina

A condição humana apaixona Lya Luft, pelo mistério, o imprevisto, o desencontro
Lya Luft: Penso que minha literatura seja de denúncia da hipocrisia, frieza, futilidade nas relações humanas, sobretudo familiares
01/12/2002

Lya Luft é uma das mais vigorosas vozes da literatura brasileira. Nasceu em Santa Cruz (RS), em 1938. Hoje vive em Porto Alegre reclusa com seus personagens, sonhos, livros, amigos e família. Desde de menina, apaixonada por livros, Lya lembra da ternura com que foi tratada pelo pai ao fazer perguntas de “gente grande”, do escritório paterno e seus livros, da avó contado histórias e fala sobre a vida e a magia de sua escritura.

Iniciou na literatura como tradutora, tarefa que exerce até hoje, e já verteu para o português: Rainer Maria Rilke, Virginia Wolf, Doris Lessing, Günter Grass, Botho Strauss, dentre muitos outros. O livro As parceiras (1980) marca a sua estréia como romancista. Na poesia, a estréia oficial se deu em 1984 com Mulher no palco. E seguiram: A asa esquerda do anjo (1981), Reunião em família (1982), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), O lado fatal (1988), A sentinela (1994), O rio do meio (1996), Secreta mirada (1997), O ponto cego (1999), Histórias do tempo (2000), Mar de dentro (2002). Alguns de seus livros já foram traduzidos nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Itália. Com a palavra: Lya: a mulher no palco.

• Existem escritores que escrevem todos os dias, são metódicos; outros convivem mais com a escrita e só partem para ela quando já estão transbordando. Como é seu processo de criação?
Eu só escrevo quando o livro pede para ser escrito. Depois de imaginar e pensar longamente, deixar que a personagem central se forme e firme, e me seduza e eu a ela. Aí começo a escrever, quando tenho o clima e o tom.

• No livro As parceiras, seu primeiro romance, você já delineia alguns aspectos que vão permear obras futuras: as relações familiares, a constante perda, a ausência, a tragicidade humana, o adentramento na “psicologia da vida em família”. Fale um pouco sobre esse seu universo ficcional?
A mim interessam os vãos e desvãos, o desencontro. Minha arte nasce do conflito humano, do drama existencial de meus personagens. Invento um personagem, sempre neurótico ou sofrido, conflituado, e crio o universo onde nascem seus conflitos: habitualmente, uma família. Penso que minha literatura seja de denúncia da hipocrisia, frieza, futilidade nas relações humanas, sobretudo familiares.

• Você além de escritora tem vertido para o português autores como Virgnia Wolf, Günter Grass, Rilke, entre outros. Como se dá o convívio com os personagens alheios? Com a escrita do próximo?
Há uma linha divisória bastante nítida para mim. Até minha postura interna ao ligar o computador para fazer um trabalho meu ou traduzir obra alheia é diferente. Quando escrevo minhas coisas, sou toda internalizada, escuto meu inconsciente, minha fantasia, elaboro meu estilo, sou superexigente. Quando traduzo, sou toda uma grande orelha debruçada sobre o outro, e procurando me manter, até onde é possível, transparente, sem turvar o encontro do leitor com meu colega estrangeiro. Mas creio que traduzir tanto, há tantos anos, é um exercício fantástico de escrever. Escrevo como respiro.

• E o convívio com seus personagens (sempre muito densos), como você transita entre eles?
São todos meus filhos, filhos da minha fantasia e da minha reflexão sobre parte da existência humana. São todos eus possíveis: nessa circunstância, talvez eu fosse assim. Tenho por todos eles um profundo amor, e cumplicidade.

• Mulher no palco e Lado fatal, seus livros de poemas, nos ambienta, de certa forma, no seu universo ficcional. Como é esse trânsito entre o poema e o romance? Há uma preferência por um gênero em detrimento de outro?
Há outro livro de poemas, Secreta mirada, e meus últimos livros, como Mar de dentro, de 2002, Histórias do tempo, de 2000, começam os capítulos com poemas feitos especialmente. Prosa e poesia são, para mim, formas diversas de dizer o mesmo.

• Secreta mirada, por ser uma prosa poética, parece ser um momento de intercessão entre o romance e o poema. Seus romances são tão poéticos quanto sua poesia. Está de acordo com esta afirmação?
Isso cabe aos estudiosos e críticos responder. Tenho uma visão mágica do mundo, o que há de transparecer no meu estilo, tanto em poemas quanto em prosa, talvez.

Na infância e adolescência, o ambiente familiar contribuiu bastante para o surgimento da escritora? Fale um pouco sobre estes primeiros anos.
Tive uma infância bela, protegida, menina mimada, casa grande, pais carinhosos, sobretudo pai amigo. Meu lugar encantado na casa era o jardim, imenso, e a biblioteca dele, idem, imensa. Pai, mãe e avós sempre lendo. Minha cama de adolescente era embutida em prateleiras. Os livros eram meus grandes amigos. Sim, acho que o ambiente familiar contribuiu para desenvolver — sorte a minha — algo inato em mim, a paixão pelas palavras e pela fantasia. Isso aparece muito no livro Mar de dentro, memórias da minha infância.

• Quais autores a acompanharam na infância e de que forma eles agiram sobre você?
Sobretudo os contos de fadas, que eu lia em alemão. Muito Monteiro Lobato. Eu queria ser Emília, que infringia e era um sucesso.

Exílio, Reunião em família e As parceiras são romance-retrato-agônicos da condição da mulher, mais que isso, da condição humana. Fale um pouco sobre estes três filhos.
Brinco a sério dizendo que tenho um olho alegre que vive, e um olho melancólico que escreve. Sou uma pessoa em busca da simplicidade, curto família, amigos, minha casa, meu jardim, a vida. Mas desde criança também muito contemplativa, muito antenada e apaixonada pelo ser humano, com seus dramas e mistérios. Deve ser isso. A condição humana me apaixona, pelo mistério, o imprevisto, o desencontro. O lado avesso é fascinante. Jamais farei uma literatura descritiva, e feliz. Na vida eu busco a felicidade e acredito nela. Na minha arte, cavo e espreito nas fendas do estranho…

• O ponto cego e A asa esquerda do anjo são romances em que aparecem a perspectiva da infância sobre a família. Mesmo revelando um olhar lúdico no imaginário, a realidade suga o feérico. Como se equilibrar entre o trágico e o lúdico?
Não há equilíbrio, aí reside a tragédia da vida humana — que não é só tragédia, claro. Às vezes, o lúdico, isto é, o poético, predomina como em Mar de dentro e outros.

• Em quase todas as suas obras aparece um personagem constante: a casa. Em suas casas a cor da parede, um ponto imperceptível, enfim, tudo revela densidade.
A casa sempre foi o centro de minha vida. A casa de meu pai, na infância e adolescência no interior. A casa em Porto Alegre, onde vivo há trinta anos. Outra casa aqui onde tive meus filhos. Meu refúgio, minha concha, meu porto seguro, onde os filhos e netos hoje se reúnem. Perdi a casa de minha infância, que foi vendida. Me doeu muito. Para mim, o amor e a família são ainda mais importantes do que minha arte. Além do mais a casa, com sótãos, porões, salas, aposentos, parece com o ser humano.

E como vive, hoje, a escritora e tradutora Lya?
Vive calma e reservada, retirada na sua casa em Porto Alegre, com filhos, netos, amigos escolhidos, trabalho. Fujo de qualquer forma de badalação, fujo da burocracia, fujo da autopromoção. Muito interiorizada, contemplativa, e assim —feliz como se pode ser. Uma mulher em busca da simplicidade. Na vida, na roupa, na maneira de ser, no estilo, inclusive, o literário. Fora de grupos, grupelhos, clubes, fora da Corte. Mas otimista, alegre, serena. Amando gente, natureza, música, livros, e sobretudo — gente.

• Poderíamos dizer que a casa e a figura do Anão desempenham papéis míticos em sua ficção? E como é o reencontro com esta figura mágica que é o Anão que pula de romance para romance?
Não sei responder. Eu sou o Anão. O Anão é o inacabado, o fragilizado, o posto à margem, o solitário, o menino monstruoso, o estranho, o fascinante. Minha arte é estruturada sobre o estranho.

• Já falamos sobre os autores que exerceram fascínio na sua infância e na vida adulta? Que autores exerceram e exercem fascínio na leitora Lya?\
Rilke. Contos de fadas. E Muitos poetas.

• No conto Peru de Natal, Mário de Andrade trabalha com uma cena bastante densa, que é o momento de se descobrir, da ceia, de perceber o próximo por meio da ausência e da presença, seus personagens em A sentinela, em O quarto fechado, enfim, em quase toda sua obra, parecem viver neste dualismo — desvelar-se ou recolher-se. Que espantos os movem?
A arte é reação ao assombro, é elaboração do espanto diante do belo ou do terrível, não é? Assim trabalho, assim nascem e agem meus personagens. Brotam do conflito, respiram mistério e sombra.

• Sei que você não gosta de falar de seus personagens, se são assim ou assado, mas dá para você falar um pouco do livro O rio do meio, que tanto revela e tanto oculta?
Toda a minha arte é um jogo de esconder, uma dança de sedução entre meus personagens e eu, assim se elaboram meus livros. No O rio do meio iniciei (foi em 1996, eu acho) um tipo de fala sussurrada ao pé do ouvido do leitor. Misturando ficção com reflexão, mais tarde prosa com poesia, convoco o leitor para ser mais meu cúmplice. Gosto desse jogo: nem sempre que falo em primeira pessoa falo de mim; nem sempre que falo em terceira pessoa falo de outros.

• Ainda em O rio do meio você diz que sua geração, a geração de mulheres, é “a geração da culpa”. Como você vê a alterações de sua geração até a geração presente e como a mulher se relaciona com estas transformações?
As transformações não são especificamente da mulher, mas de toda uma sociedade que se vai modificando quase involuntariamente, em muitos aspectos inconscientemente. As transformações trouxeram (tudo uma faca de dois gumes, somos sempre contraditórios e por isso interessantes) alegrias e angústias, a relativa libertação traz o peso da responsabilidade e das escolhas. O ser humano, não só a mulher, vive em parte dilacerado entre seus impulsos e estruturas atávicas, e o verniz da civilização. Trabalho no meu computador, mas, se eu for uma mulher que acaba de parir, quando meu filho chorar no berço, o leite vai jorrar do meu seio — mesmo que eu esteja longe dele. Complicado.

O que é ser uma escritora no Brasil?
Nunca penso nessas coisas. Escrevo porque gosto, porque nasci para isso, porque isso é o que eu sei fazer. Organizei minha vida de modo a permanecer neste pequeno escritório, com meus livros, discos, rumores da família, eventuais amigos. Uma vida bastante contemplativa, interiorizada. Escuto muito o silêncio, e essa voz dentro de mim que inventa e narra histórias que querem ser escritas. Minha posição na literatura brasileira, essas coisas, não são objeto de minha reflexão nem de meu interesse. Imagino que alunos, professores, estudiosos, saibam responder melhor que eu. Isso me causa um certo espanto (meio divertido). Se a pergunta significa relação com editoras, a resposta é simples: todas as editoras procuram obras sérias, feitas com talento e garra. Não creio na injustiça do bom livro engavetado …

• Seu livro de poesia Lado fatal foi levado ao palco por Beatriz Segall. Como você avalia esta experiência, esta união?
Beatriz encenou Lado fatal. Mulher no palco e Reunião de família foram adaptados e encenados aqui em Porto Alegre por Luciano Alabarse. Sempre me incomoda um pouco ver meu texto no palco. É outra linguagem, tudo filtrado pela sensibilidade de diretor, ator… Claro que o talento de Beatriz, também grande amiga, conferiu ao Lado fatal uma aura diferente. Mas esse livro mandei sustar, terminou o velório, longo demais.

• Se você tivesse que escrever uma carta a um jovem escritor, à maneira de Rilke, o que diria?
Escute-se; respeite-se; ame-se; seja humilde; seja muito exigente consigo mesmo. Seja ousado. Seja paciente; de novo: seja ousado, pois o desperdício é muito triste.

A feiticeira Lya tem alguma novidade no seu caldeirão, algum filho novo para nos dar?
Trabalho no começo de um romance de amor — embora em todos os meus livros haja histórias de amor, mais ou menos trágicas — esse livro ainda está incipiente. Outro, mais adiantado, trata da passagem do tempo, do amadurecimento, dessa estranha mistura que somos, de permanência e fluxo, como as marés. Um livro de reflexões. Sem título ainda talvez “Consagração do tempo”. Não tenho pressa em escrever, em publicar, já publiquei demais. Cada livro tem seu segredo, seu ritmo, seu tempo. Como a gente.

Marco Anselmo Vasques

É poeta e diretor teatral. Autor do livro de poemas Cão no claustro.

Rascunho