As confissões de Lúcio

Trecho do romance de Fernando Monteiro
01/12/2002

A última vez que eu havia encontrado Lúcio — antes do Nobel — havia sido logo após o lançamento de A Rua dos Anjos de Vidro e eu lhe disse isso: o romance deveria ser sobre Rita e Rudy, não em evocação, não como uma recordação ainda mais melancólica porque “proibida”. Foi no aeroporto de Guarulhos, aguardando a chamada de partida de um vôo para Londrina (com escala em Curitiba, que era para onde eu ia) e havia ficado mais de uma hora esperando na sala de embarque. No meio exato desses sessenta minutos de atraso, vira chegar um passageiro na sala de espera vazia dos domingos, frente ao portão de embarque do vôo da ponte. “Que cara parecido com Lúcio Graumann”, pensei, mas então ele se levantou, veio para mais perto conferir qualquer coisa no monitor com as partidas e vi que era o próprio — ao olhar na minha direção, com aquela expressão severa dos Graumann. Não sabia se gostava, ou não, de vê-lo ali, se me afastasse para as poltronas mais distantes, ou se desse, pelo contrário, imediato sinal de vida para o escritor… conforme terminei fazendo, por entender que deveríamos estar embarcando logo mais (o avião já estava estacionado), no mesmo vôo que terminaria em Londrina, era melhor falar logo do que se ver acotovelado com ele no corredor estreito da aeronave, fingindo surpresa enquanto abria porta-malas acima das cabeças dos outros passageiros já acomodados: “Oh, Lúcio! Eu estava justamente pensando se era você mesmo..”

De modo que me levantei e fui até ele, na atmosfera irreal daquelas salas onde os passageiros sós lêem revistas ou cochilam, as bagagens de mão próximas da vigilância brasileira com bolsas que contêm camisas usadas, desodorante para emergências e escova de dente sobressalente que quase nunca se usa. Lúcio pareceu sinceramente satisfeito, após a surpresa e a coincidência — “vais para Londrina, também?” — eu disse que não, fomos caminhando com nossas bagagens arrastadas como carrinhos de bebê ao contrário e embarcamos com gentilezas recíprocas, perguntas breves, comentários de quem se saúda com a troca de informações, as bagagens leves sendo acondicionadas no bagageiro acima das nossas cabeças (o avião, vazio, permitia sentar onde quiséssemos), foi o que fizemos, ficamos juntos como dois representantes comerciais reclamando dos pedidos, durante o curto trajeto — com a conversa vaga, de reencontros, pouco a pouco amortecendo. Talvez para mantê-la acesa na monotonia do avião, Lúcio me perguntou se eu já havia lido A Rua dos Anjos de Vidro, sua obra mais nova (lançada recentemente). Respondi que, sim, havia lido o lido e, pela minha cara, ele teve que perguntar:

“E que tal: é bom ou é mau?”

Uma pergunta rara, nele. Geralmente, respeitava o silêncio.

Balancei a cabeça: “mais ou menos”.

Lúcio sorriu, e prosseguiu naquela estranheza de comportamento graumannesco:

“Mais ou menos? Mais para mais ou mais para menos?”

“Mais para menos.”

“E que mais te desagradou…”

“Quase tudo.”

Ele aumentou o sorriso no rosto de fumante obrigado a não fumar, na ponte.

“Quase tudo. Isso é tudo, na verdade. Não se salva nada?”

Respondi que se salvavam, na minha opinião, os dois ou três capítulos relativos à juventude de Rudy.

“O resto tu detestastes, então?”

“Não. Apenas não gostei. Achei um livro falso.”

Graumann parecia surpreso, sem afetação.

Falso? Pois é o meu livro mais verdadeiro. Ou um dos mais verdadeiros.”

Olhei para ele:

“Pois não parece.”

“Os personagens te pareceram falsos, também?”

“Exceto Rita, eu diria que parecem, sim. Mesmo Rudy…”

“Rita. Eu me orgulho dela. Vi aquilo num sonho, tu me acreditas? Dançava, descalça. Sozinha, é claro.”

“Gosto muito da dança, na festa. Todos estão bem vestidos, mas parece uma coisa selvagem. O casal, pelo menos.”

“E é. Talvez mais do que selvagem. Quando eles dois dançam — e são muito bonitos ali, não parecem mãe e filho — eu queria que algo de muito antigo viesse permitir, ou pelo menos desculpar, a união que permanece a mais chocante, a mais intolerável sob todos os pontos de vista. Não quis chocar, tu sabes. Quis aludir ao completo…”

A última palavra — pronunciada para dentro (a voz de Graumann parecia recolher as palavras finais num poço cavo de borrões do som para dentro, fosse ao pronunciar um verso ou ao pedir uma Coca-cola com gelo e limão: “limão” era geralmente repetido, mas eu não pedi para ele repetir “escuro”, “completo escuro” conforme me pareceu que dissera). Ficamos em silêncio um momento, e Graumann voltou com o sorriso meio torcido:

“E o mais falso? O personagem mais falso — para usar a tua palavra — seria qual, ao teu ver?”

“Acho que o tal Milton Berle.”

“Bernie. Milton Berle foi um comediante. E o meu Milton, para teu conhecimento, é baseado numa pessoal real, completamente. Teu tiro foi errado, nele. ”

“Não atirei. Você perguntou.”

“E teu tiro errou o alvo, repito. O personagem falso não é Milton. Mas concordo que seja um personagem que termina ficando meio fora de lugar na história, justamente porque ele é real da cabeça aos pés, foi retirado da rua, de uma rua de Santo André, para dizer a verdade.”

“E você lhe deu um nome americano?”

“Ele é um hispano-americano, no livro.”

“Por quê?”

“Porque seria menos perigoso.”

“Perigoso?”

Ele não respondeu.

“O livro não funciona, quanto a mim. Lamento dizer isso, Lúcio, com toda a franqueza que você sabe que eu uso. Sempre usei.”

“Não te pedi nenhuma boa opinião mentirosa.”

“Desculpe, mas foi exatamente o que pareceu: que você queria ouvir mais um elogio desses que se encontra na rua, a toda hora: ‘gostei muito”, ‘ótimo’ e tudo mais…”

“Eu nunca gostei disso, Mauro.”

“É. Realmente nunca gostou, até onde eu sei. Mas você me deu a impressão de que gostaria de ouvir algo no gênero.”

“Dei?”

Foi a minha vez de não responder. Quando voltou a falar, ele comentou, quase tristemente:

“Talvez você tenha razão. Inclusive sobre o romance.”

“Um sujeito escreveu que era a sua obra-prima, na Veja. Estava doido.”

Lúcio ficou em silêncio um momento, depois abriu um largo sorriso raro nele, sem sinais de protesto ou de autocomiseração:

“É tão rúim assim?” (Pronunciou “rúim”, deformando o som da palavra dissílaba. Por que eu reparo nessas coisas, fixo um erro na minha mente gelada quase como uma falha do caráter, uma predisposição que se irrita e se impacienta com “rúins” e outras coisitas menores?)

Não acrescentei mais nada, nenhum comentário, fiz uma alusão às nuvens vagabundas — se ele não houvesse pronunciado “ruim” daquele jeito talvez minha reação fosse dizer que A Rua dos Anjos de Vidro era tão vagabundo quanto aquelas nuvens passeando para nada, num céu de feltro — e me virei para a janela, antes de repousar a cabeça no encosto da poltrona onde preferia estar sozinho, pensando na minha tarefa jornalística em Curitiba: uma reportagem sobre a nossa versão de Salinger inacessível (com quem, eu sabia, Graumann não simpatizava muito): Dalton Trevisan. Dito e feito:

“Trevisan? Ah.” — Foi todo seu comentário sobre o objeto da minha viagem ao cenário das vampiragens do contista minimalista cujo prestígio era, sem dúvida, maior do que o pé de obra que ele dera para conferir, até agora. “Faz a fama e deita na cama” — e não recebe mais ninguém — podia ser a divisa do curitibano que editara a boa Joaquim (Lúcio estreara com um conto nessa revista, e se desentendera com Dalton logo em seguida).

Para evitar o assunto da “briga” — que eu poderia ter exaurido, ali, ao menos do ponto de vista de Graumann —, fingi me arrumar para um cochilo de dez ou quinze minutos, durante os quais flagrei Lúcio me observando umas duas vezes, com aquele seu ar de avaliação, incômodo e inquisitivo. Eu o admirava e gostaria de lhe ter dito isso — apesar do meu livro plagiado, da minha demissão do Correio do Povo, por ele assinada, e apesar do mistério daquela personalidade mais mal-humorada, talvez, do que Dalton. Aliás, Dalton era recluso, mas não era mal-humorado, enquanto Graumann não era nenhum recluso, mas tinha aquele jeito “torcido”, meio de João Cabral meio de Rubem Braga, sem a onda de simpatia cálida de um Jorge Amado, de um João Guimarães Rosa. No Brasil, não basta a obra: você tem de seu muito simpático ou muito antipático (e será aclamado apesar de uma coisa ou de outra).

“Mauro…”

Ouvi a sua voz (julgando me despertar), embora eu estivesse bem acordado e tivesse ouvido a aeromoça avisar que estávamos nos preparando para aterrissar, com a cidade já surgindo na ponta extrema dos retângulos ordenados de verdura e montanhas de vegetação cinzento-oliva que me lembrou — de forma totalmente arbitrária — a frase do meu vizinho folheando a revista de bordo: “tudo é para se perder e nada é para sobrar”.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho