Teve gente que não gostou do fato de eu dizer que li Bruno Tolentino tomando coca-cola. Engraçado. Há quem tenha para com a arte esta deferência estúpida, que exige poltrona de couro, luminária do início do século 20, cachimbo e bengala para se apreciar um livro. Esse tipo de gente, por sinal, deve espernear ao ir à livraria e ver um livro como O canto da sereia, de Nelson Motta, na vitrine. Mais um lançamento bobinho da nossa indústria cultural, do qual fui incumbido de escrever.
Não é dos sinais mais agradáveis da minha personalidade claudicante, mas confesso que gosto de um pouco de esforço. Assim, ao menos, desfaço-me da inoportuna gravitas. É verdade que me sinto muito mais à vontade mostrando toda a minha incapacidade de absorver o Tolentino por inteiro do que tendo de tecer comentários espirituosos sobre um noir baiano, escrito por um compositor de música pop e especialista em música (o termo não é exato) desse tipo. O desconforto de analisar esse tipo de livro, porém, é encarado por mim como um desafio. Que nem sempre cumpro com o devido afinco.
Li O canto da sereia há cerca de um mês. E, para minha surpresa, demorei mais que dois dias para terminá-lo. Sim, surpresa porque o que se espera de um livro pop e policial é que ele o prenda a até altas horas da madrugada. Não é o caso, porém. Nelson Motta escreve com a capacidade estimulante de um Lexotan.
O livro não tem nenhuma pretensão estilística. Isso é muito claro. Nelson Motta escreve como um adolescente tardio, amontoando idéias e referências com um propósito supostamente espirituoso. O compositor de Como uma onda no mar rendeu-se ao moderno, ao contemporâneo modismo de retratar o efêmero, com personagens de fama efêmeros e, assim, ganhar uns trocos a mais.
Seria ilusão minha achar que Nelson Motta pretendeu outra coisa nessa sua empreitada literária que não ganhar dinheiro. Ele tem visibilidade e certa notoriedade por ter ancorado um programa de debates ao lado de Paulo Francis. De uns tempos para cá se tornou referência no que diz respeito à história da moderna música brasileira. E, sabe como é que é, os jovens, sobretudo, gostam disso.
E gostam ainda mais de verem um universo que dispensa a imaginação retratado em livro. Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Gilberto Gil e sei lá mais quem desta trupe baiana estão lá pelas páginas de O canto da sereia. Num exercício de puxa-saquismo que é também uma idéia muita boa, do ponto de vista mercadológico. Porque escritores desse tipo revestem o lixo cultural de uma certa aura artística que não lhes é de direito. E quem é babão, baba. Como convém.
E aqui caímos na velha questão sobre arte e entretenimento. Há quem queria ver O canto da sereia como um produto artístico. Por esse prisma, o livro estaria no mesmo patamar de qualquer obra-prima do romance noir e Nelson Motta teria de ser pensando como um escritor, com todo o peso que a palavra carrega. Acredito que muita gente, sobretudo nas universidades, ainda vá dar a este livro um diplominha de “arte”, com citações de Adorno e Hokkeimer para sustentar seus pensamentos capengas.
Por outro lado, há quem veja o livro somente como um entretenimento. E o simples fato de ele ocupar este espaço num caderno literário seria uma heresia, neste quesito. Como é que pode o Rascunho dar espaço a um livro tão inocente como O canto da sereia? Ora, uma resenha como esta deveria figurar entre as páginas de uma revista para adolescentes (público-alvo do livro). Lá, sim, ele estaria cercado por outras obras-primas do novo gênero, como aquele livro do Jô Soares, aquele, e mais Mirisola, Bukowski e coisas desse tipo que os jovens lêem.
Erro imensurável seria cobrir Nelson Motta de críticas negativas neste artigo, como já foi feito com Décio Pignatari e Valêncio Xavier, neste mesmo Rascunho. Ora, os dois últimos têm pretensões literárias. Escrevem para que possam andar pelas ruas de Curitiba com uma plaquinha às costas os identificando como poeta e escritor, respectivamente. Querem que a Academia sobre eles se debruce, no que são prontamente atendidos, pois sim. Recebem prêmios por suas obras. Nelson Motta, por sua vez, quer apenas conferir o saldo bancário, no que também é prontamente atendido. Eis o sentido único e inegável de se ir à livraria comprar O canto da sereia.
Se há um mérito no livro de Nelson Motta, além de ter me livrado de umas duas noites de insônia, fazendo-me pegar no sono dois parágrafos depois de ter lido sobre a morte & a morte de uma insossa cantora baiana, foi de ter assumido a sua mediocridade como escritor (e, assim, ter deixado de ficar citando ícones da literatura para justificar sua falácia tipográfica) e ter conferido ao seu livro um status de produto pop. Que é disso mesmo que ele entende.
Neste sentido, a editora Objetiva está de parabéns. Colocou todo o seu efetivo de marketing para trabalhar e assim foi que Nelson Motta deu entrevistas e mais entrevistas, sempre deslumbrado com o projeto de uma carreira literária que ficará restrita, claro, a um curto período de tempo no decrépito, ainda que jovem, século 21. Além disso, para dar sustentação ao termo noir que acompanha o livro, pintou suas bordas de preto. Uma cartada de “gênio” da indústria editorial. Por fim, sabendo se tratar o escritor de uma figura de inegável apelo pop, tascou-lhe uma capa à la Lichtenstein. Ah, sim, e um lançamento próximo ao Natal, para que os tios semiletrados presenteassem com um sorriso no rosto aquele sobrinho intelectual que lê Joyce no original para compará-lo com a tradução francesa.
No quesito deslumbramento, aliás, o tio semiletrado não ficou atrás dos suplementos literários do País. Que, com medo, possivelmente, da grandiosa máquina de fazer dinheiro que é não só Nelson Motta como tudo o que diz respeito ao Carnaval baiano, fizeram o rapapé de praxe ao escritor. Adicione-se a isso o fato de o Brasil não ter uma tradição de best sellers policiais (exceção feita a Rubem Fonseca, que tampouco é assim um policial clássico) e se terá páginas e páginas de louvação ao compositor e ex-marido de Betty Faria. Tudo sustentado com impressões de pessoas do show business, que aparentemente leram o livro antes mesmo de ele ser impresso, na maior distribuição de provas que o mercado editorial jamais conheceu. Sim, porque no dia seguinte ao lançamento todas as modelos e atrizes tinham na ponta da língua uma opinião à moda de Wilson Martins para o livro. Com citações de Dostoievski a Paulo Coelho, dependendo do papel na novela e da tonalidade do cabelo.
Sobre esse tipo de livro, em geral tenho uma opinião bastante positiva. Leio-o, retenho por uns cinco minutos o conteúdo, o suficiente para escrever este artigo, e imediatamente o disponibilizo na pilha de troca. Sei, bem sei, sei muito bem que um livro como o de Nelson Motta pode ser disputado a tapa por um sebo. Olhando para aquela capa à la Lichtenstein, no átimo seguinte tive um estalo: Nelson Motta há de se transformar num Melville na minha estante.
Afinal, esta é a real função da literatura descartável de ídolos pop.