Estranho divã

Excelente na narrativa curta, Martha Medeiros perde-se nos caminhos do romance
Martha Medeiros: personagens com falas deslocadas
01/01/2003

Na crônica Para Maria da Graça, a certa altura Paulo Mendes Campos escreve: “Disse o ratinho: ‘Minha história é longa e triste!’ Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: ‘Minha vida daria um romance’. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: ‘Minha vida daria um romance!’”.

Sendo, no entanto, o primeiro texto longo de ficção da gaúcha Martha Medeiros, Divã, o objeto desta resenha — e não a obra de Campos — convém, portanto, explicar o porquê de iniciar a conversa por uma citação aparentemente despropositada. Talvez daí, a partir desta explicação, possamos concluir algumas interessantíssimas coisas tais como por que os analistas cobram tão caro por consulta e por que são tão difíceis àqueles acostumados ao texto curto as aventuras pelas águas caudalosas e cheias de afluentes do texto longo.

Pois bem. Paulo Mendes Campos é um daqueles escritores caros para os que, no texto curto, buscam revelar a poesia que há no cotidiano, como demonstra tão bem saber fazer Martha Medeiros. Pudera. Ela é dona de uma bela lista de outros 11 títulos como Strip-tease, poemas; Meia-noite e um quarto, poemas; Geração Bivolt, crônicas; Topless, crônicas (Prêmio Açorianos de Literatura); Trem-bala, crônicas e Non-Stop, crônicas. Textos curtos, como logo se vê. Não bastasse, exercita quase que diariamente seu texto em duas colunas do jornal Zero Hora e uma do site Almas Gêmeas. É portanto versada nessa modalidade literária. Mas, agora, falávamos de Campos e de como é importante e influente nesta área em que, como ninguém, jogava em casa. Só isso já seria motivo suficiente para citá-lo.

E ele, na citação, fala sobre histórias longas e tristes e também algo sobre como algumas pessoas dizem que suas vidas dariam um romance. Ora, os adeptos da crônica sabem que diversos fatos ou observações do dia-a-dia seriam suficientes, descritos de uma forma satisfatória, para levar seus leitores aos píncaros do prazer literário, mas encadeados seriam apenas um amontoado de fatos interessantes, ainda que bem narrados. Normalmente, quem acredita que sua vida daria um romance parece ignorar tal fato, aliás essas pessoas nem costumam ser escritores, escritoras ou psicólogos.

Bem, os psicólogos. Os psicólogos e analistas, sendo-se bem simplista — quero lembrar que isso é muito perigoso, portanto não façam isso em casa —, são profissionais pagos para ouvir, grande parte das vezes, sempre as mesmas histórias de pessoas que se acham muito especiais (para mais ou para menos) e cujas vidas, nas suas opiniões, dariam um romance. Longo e triste. Não que cada pessoa não seja importante ou especial, mas, definitivamente, não são as suas histórias que assim as tornam. Histórias, em geral, enfadonhas. Não à toa existe aquele mito de analistas que dormem enquanto seus pacientes tagarelam. Sua hora acabou, por gentileza, peça para o próximo na sala de espera entrar…

Mas não bastasse Paulo Mendes Campos entrar de gaiato nesta história, agora temos toda a classe dos terapeutas envolvida. Mas vamos deixar a explicação do porquê deste envolvimento com as abonadoras palavras do press-release enviado pela editora, junto ao exemplar de Divã: “Divã conta a história de Mercedes — uma mulher com mais de 40, casada, filhos — que resolve fazer análise. O que começa como uma simples brincadeira acaba por se transformar num ato de libertação; poético, divertido, devastador. Marinheira de primeira viagem em terapia, a personagem encara o consultório como se fosse uma espécie de alfândega que vai dar o visto para ela passar para o lado mais oculto de sua personalidade. Ao deitar-se no divã, Mercedes não hesita em alertar o terapeuta: ‘Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna delicada. Acho que sou promíscua, doutor Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns homens também. Prepare-se para uma terapia de grupo.’”

Vê-se então. Essa tal de Mercedes se acha mesmo a tal. Ela não sabe por que começou a fazer análise, mas eu diria que foi porque ela queria ver se dava uma canseira no seu analista. Sou capaz de apostar que como ela existem muitas e muitos por aí em cada consultório. Mas quanto a essas razões não sou capaz de ter certeza. Por outro lado, o diálogo entre paciente e psiquiatra, quase um monólogo, deve ter parecido perfeito para Martha tão habituada à narrativa curta, à observação inteligente e às frases de efeito que certamente guarda na manga. Talvez a razão esteja, portanto, na criadora e não na criatura, como se a escritora tivesse escolhido o personagem e não ela, desta vez, para escrever, como se a voz de outra falasse em sua boca.

Algum leitor talvez tente ler a história como contos ou crônicas independentes e se decepcione. Afinal, o livro não funciona assim, tirando-se talvez um ou outro capítulo. Do mesmo modo como em uma análise, o paciente inicialmente é superficial e aos poucos sua complexidade é revelada, tal como num lago cuja superfície é plana e o fundo é irregular e cheio de particularidades. A narrativa tem começo, meio e fim. Nessa ordem por sinal. Surgem os conflitos ao longo das páginas e eles se resolvem ou não. Logo, as páginas de Divã não devem ser vendidas separadamente.

No entanto, há algo que não convence em termos de unidade. Talvez porque embora haja elos de ligação entre os capítulos e os fatos se encadeiem com lógica, os estados de espírito da personagem sejam tão variados entre um e outro ou porque os assuntos variem muito entre uma sessão de terapia e outra. No entanto, as sessões de terapia assim devem ser. Então o que seria? Talvez porque a personagem não fale com voz de personagem e, nesse caso, seja a voz da escritora saindo de sua boca. Não é preciso correr muito os olhos pelos parágrafos para entender que ninguém, por mais esclarecido que se seja ou por mais formal que seja a situação, fala daquele jeito. Seria demais, porém, exigir um ouvido perfeito de Martha Medeiros no monólogo que é a sua primeira narrativa longa — seria até purismo chato — ou um cimento mais convincente entre seus capítulos a fim de emendar cada um deles.

Esperemos que, em breve, ela presenteie seus fãs com uma nova narrativa. Afinal, certamente a vida de cada personagem ou pessoa daria um romance. É só lembrar que romance, como nos ensina Campos, é apenas uma maneira de se contar uma história, basta que ela descubra qual a sua melhor maneira, uma vez que já mostrou que — quando a história é curta — sabe muito bem fazê-lo.

Divã
Martha Medeiros
Objetiva
156 págs.
Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho