Conversando a gente se entende

Resenha do livro "Amor, etc.", de Julian Barnes
Julian Barnes, autor de “Amor, etc.”
01/01/2003

Relações acabam. Todas elas, por separação ou morte, na extrema hipótese. Mas será que as pessoas conseguem aceitar que as relações acabam? Será possível apagar 100% da memória o que aconteceu? Acho que não. E, se o fim desta relação foi meio traumático, as chances de esquecimento são praticamente nulas. Afinal, aquele “trauma” ficará ali, na pele, uma ferida mal-e-mal cicatrizada, que qualquer esbarrão traz à tona. E como será que as pessoas reagem a isso?

Stuart, por exemplo, é o caso típico. Dez anos depois de ver sua mulher trocá-lo pelo seu melhor amigo, ele ainda pensa nela. Pensa muito nela. Tanto que carrega uma foto dela um tanto quanto estranha na carteira, fora de foco. Stuart trocou de continente, casou-se de novo, mas não conseguiu esquecer seu primeiro amor, Gillian. E volta a Londres, pois acredita que tudo já passou, conscientemente. Inconscientemente, porém, nada passou. A ferida está ali, latejante. E ele procura uma cura.

Gillian não esqueceu, tampouco. Nem a armação feita dez anos antes, uma cena de cinema para tentar mostra a Stuart que seu casamento não era perfeito, serviu para cancelar o que aconteceu. Mas Gillian é prática. Hoje, ela é mãe de duas filhas, e pensa no seu futuro. E essa é a maior preocupação, maior até que a com seus sentimentos. Ela não tem dúvidas do seu amor por Oliver. Mas até hoje não perdoou o que fez com Stuart, e tem dúvidas se ele já a esqueceu. Sabemos que não.

Oliver, completando o trio, era o melhor amigo de Stuart. Isso até ele roubar Gillian logo nos primeiros meses do casamento deles. Sim, ele se sentiu muito mal quando percebeu o que estava para acontecer. Mas não conseguiu resistir às suas emoções. E, dez anos depois, ele não consegue ver as verdadeiras intenções de Stuart. Ele acha que tudo o que aconteceu entre eles é passado, tanto que tenta arranjar uma namorada para Stuart. Uma forma de compensação, pois ele também não se perdoou pelo que fez.

Basicamente, esta é a trama inicial de Amor, etc., último romance de Julian Barnes que sai agora no Brasil, dois anos após seu lançamento na Inglaterra. O que poderia ser apenas um romance à la Julia, Sabrina ou Bianca, no entanto, ganha uma força diferente e cativante graças ao talento de Barnes.

Em primeiro lugar, não há um narrador onisciente, ou uma voz em primeira pessoa dizendo o que sente, sem conhecer a versão dos outros. Todos os personagens de Amor, etc. têm a sua voz. Cada um vai contando a sua história diretamente para o leitor, como se este fosse um analista conjugal de um triângulo amoroso, ou melhor, um juiz, que pede a cada um a sua versão da história. E, como em um tribunal, as testemunhas vão sendo chamadas para dar seu depoimento. As filhas de Gillian, a mãe dela, a ex-mulher de Stuart, a ex-senhoria de Oliver, a assistente de Gillian, que por algum tempo é a namorada de Stuart, e quem mais se fizer necessário. E é um diálogo franco. Cada um fala o que sente e pensa, e mesmo que tenhamos a vontade de dizer, às vezes: “Seu panaca, ela/ele tá te enganando”, é porque nos sabemos isso, não o personagem.

Em segundo lugar, Barnes consegue colocar em palavras o que provavelmente se passa com a maioria da população que se apaixona, se ilude e se desilude. Stuart, Oliver e Gillian são pessoas normais. Um tem problemas de visão, outra de peso, outro fala demais, todos são como eu e você. Nada se super-heróis, nada de sexo acrobático ou viagens orgásmicas hollywoodianas, mas o dia-a-dia da maioria de nós. Em outras palavras, nada de caviar, mas feijão-com-arroz. E isso torna todos os personagens ainda mais próximos de nós. Você já conversou com dois ex-namorados, amantes, casal? Cada um tem a sua versão da história. Como Stuart, Gillian e Oliver.

Por fim, mas não por ordem de importância, Barnes tem um senso de humor refinado. As dores do coração de cada personagem são contadas de uma maneira que torna difícil segurar o riso. Há vezes em que são detalhes, há vezes em que é um capítulo inteiro. Há humor, ironia e sarcasmo (tipicamente ingleses) em boas doses em cada intervenção dos personagens. Barnes parece dizer que cada um, à sua maneira, é humano e patético, simultaneamente.

E o que talvez seja mais interessante, já conhecemos Stuart, Gillian e Oliver. Há dez anos, eles se apresentaram para nós em Em tom de conversa (Talking it over, que em outra tradução poderia ser Passando a limpo). Ali os três protagonistas se apresentam, contam como se conheceram, se apaixonaram e se separaram. O diálogo franco e direto com o leitor está ali. Dez anos depois, claro, Barnes está melhor, e Amor, etc. é superior a Em tom de conversa. Em ambos os casos, temos uma rara ocasião em que podemos conversar diretamente com os personagens. Provavelmente, se você puder ler Em tom de conversa antes, poderá aproveitar mais de ambos. Mas um não depende do outro. É apenas uma questão de conhecer melhor as pessoas com quem estamos falando. Gostamos de ou odiamos um ou outro. Podemos até nos identificar com o CDF Stuart ou o fanfarrão Oliver ou a “sou levada para onde me levam” Gillian. Ou com todos, segundo a ocasião.

Reencontrar os personagens dez anos depois é uma grande alegria. Percebemos que nossas neuras sentimentais são normais, e podem até ser literárias. Que feridas sentimentais não cicatrizam, necessariamente. Podem não incomodar, mas fechar completamente, nunca. Que o feijão-com-arroz, se cozido com talento, é um grande prato. De ruim, se é que se pode dizer isto, é que o final de Amor, etc., deixa tudo em aberto. Não será surpresa alguma se reencontrarmos Stuart, Gillian e Oliver daqui há dez anos. E mais gente no meio.

Outras obras — Barnes não é um escritor limitado ao tema “nossas relações cotidianas”. Um de seus melhores livros é O papagaio de Flaubert, lancado originalmente em 1985. A história deste livro gira em torno de Geoffrey Braithwaite, um médico aposentado apaixonado por Flaubert. Basicamente, Barnes toma a voz de Braithwaite para encontrar o papagaio empalhado que “testemunhou” Flaubert escrever Um coração simples. Flaubert usa o animal empalhado para dar vida a ele em seu romance, o batiza como Loulou, e faz dele o animal de estimação de Felicidade, a protagonista.

Longe de ser um romance policial, O papagaio… é uma declaração de amor à literatura e ao seu aspecto principal, entreter seu leitor. Usando a voz do literato amador Braithwaite, Barnes critica os críticos que procuram as falhas de um romance apenas nas minúcias (você sabe a cor dos olhos de Emma Bovary? Você se importa com eles?) e não na obra como um todo. Braithwaite ama Flaubert, pois ele é muito bom. Se ele não possuía um continuísta para dizer que a cor do vestido de Felicidade no capítulo anterior era vermelho, e não rosa como aparece agora, isso não prejudica em nada o romance.

Barnes aproveita a pesquisa de Braithwaite para mostrar um lado de Flaubert que é pouco conhecido, longe do mito literário e perto do humano. E também conta a história do médico aposentado, que por si só já mereceria um livro à parte. Misturando pesquisa histórica, ficção, jornalismo e uma boa dose de humor, Barnes nos deu um livro saborosíssimo, que concorreu a diversos prêmios literários em diferentes países, ganhando alguns.

A mistura de história real e ficção foi retomada por Barnes em 1989, ano de lançamento de A história do mundo em 10 ½ capítulos. Em um livro um tanto quanto pretensioso, Barnes conta como o mundo evoluiu (ou não, dependendo do ponto de vista) desde a Arca de Noé, em 10 capítulos e meio (sim, este meio capítulo está lá). Mais interessante que o tema em si é ver em cada novo capítulo a relação com os anteriores. Com habilidade, Barnes consegue conectar a história do mundo a um intruso na Arca (se todos os bichos da terra subiram à Arca, quem não apareceu na Biblia foi criado pelo demônio?) e à própria Arca em si. O resultado algumas vezes é hilário, em outras sente-se a “forçação de barra”. O melhor capítulo, na minha opinião, é o terceiro. Porque ele realmente existiu. Cupins foram excomungados na França medieval, pois roeram o teto de uma igreja e o pé de uma cadeira episcopal. Maravilhoso.

Amor, etc.
Julian Barnes
Rocco
204 págs.
Julian Barnes
Nasceu em Leicester, Inglaterra, em 1946, e hoje vive em Londres. Ele é considerado um dos expoentes da literatura inglesa contemporânea. Sua obra até o momento inclui nove romances — além dos citados, Metroland, Before she met me, Staring at the sun, The Porcupine e Inglaterra, Inglaterra, um livro de contos: Cross Channel; e duas coletâneas de artigos jornalísticos: Cartas de Londres 1990-1995 e Something to decline. Barnes, apesar do que disse em O papagaio de Flaubert, é multipremiado. Ele foi o primeiro inglês a ganhar o Prix Médicis francês, em 1984, e o primeiro a ganhar o também francês Prix Fémina, em 1985. Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos foram outros países que premiaram suas obras.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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