Algumas das perguntas mais radicais que podemos fazer à literatura de hoje estão expostas e defrontadas, de modo franco e corajoso, nas Cartas de Caio Fernando Abreu, que acabam de chegar às livrarias sob a organização impecável do crítico e poeta Ítalo Moriconi. O livro de mais de quinhentas páginas, lançado pela editora Aeroplano, reúne uma seleção da correspondência escrita entre 1965, quando Caio ainda era um aluno interno no Instituto de Porto Alegre, e 1996, ano em que, escritor polêmico e consagrado, veio a morrer, de Aids.
A grande pergunta a perturbar os escritores de hoje (e o grau dessa perplexidade independe da resposta que cada um possa lhe dar) é a respeito do laço que a literatura tem, ou ainda pode ter, com o mundo real. Muitos dizem que a literatura brasileira distanciou-se da realidade. Outros, querem lhe enfiar à força a carapuça do registro e do retrato. Mas o que é o real? Há uma anedota, simples e bastante ingênua, que pode ajudar a delimitá-lo. Um homem caminha apressado por uma avenida, sob o sol intenso. Carrega uma pasta de documentos, a que se abraça como que para protegê-la de eventuais agressores, e traz a mente sobrecarregada de pensamentos, que vão desde o compromisso para o qual se dirige, bastante atrasado, até a briga que teve ainda em casa, antes de sair, com a mulher, desavença que parece colocar em risco seu casamento. Tudo o que importa para esse homem, tudo aquilo com que ele está sintonizado em plena luz do dia, é: um encontro urgente que o espera, os pedestres que se interpõem em seu caminho, a pasta em que leva documentos preciosos, as palavras da mulher a angustiá-lo. Nada mais existe para ele, pode-se dizer. Então, de repente, sem notar onde pisa, o homem tropeça num velho latão, roído pela ferrugem e bastante torto, largado no meio da calçada. Pego de surpresa, ele se desequilibra, rodopia por várias vezes e, por fim, cai. O real é esse latão.
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Assim também é o vínculo da literatura com o real: complexa, irregular, surpreendente, cheia de elos invisíveis e de surpresas. Voltando a Caio Fernando Abreu: no ano de 1977, ele revela em carta ao escritor (e hoje editor) Luis Fernando Emediato que se remói em dúvidas diante de um convite para que assine certo “Manifesto Neo-Realista”. O documento lhe foi enviado pelo próprio Emediato, diante de quem ele tenta, agora, justificar sua vacilação, quando não sua recusa. Caio é franco: “A primeira frase (do manifesto), contra o individualismo, já me grila. Eu não sei MESMO se sou contra o individualismo”. Experimenta, há muitos anos, diversas psicoterapias e exercícios de introspecção. Sempre foi um interessado no misticismo e na astrologia. Sua formação literária, acrescenta, vem de escritores como Clarice Lispector, Virginia Woolf, Marcel Proust, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa — que dificilmente poderiam ser enquadrados em qualquer espécie de realismo, ou neo-realismo.
Contudo, Caio parece sentir que o “Manifesto Neo-Realista” fala de algo que, apesar dessas diferenças, o interessa muito. Sempre foi um escritor que viveu para escrever, nunca um prosador de gabinete, ou um intelectual que usa a literatura para expor idéias, ou para aplicar teses estéticas. Sente-se preso ao real, o mundo arranha e agita a literatura que faz, e sem esse atrito, provavelmente, nem chegaria a escrever. Mas não se vê como um realista, ou um neo-realista, ou um naturalista tardio. Algo o distancia muito deles. Caio tem consciência de que a instabilidade é um elemento crucial não só em sua relação com o mundo real, mas também com a literatura. “Curioso o que você diz do (Domingos) Pellegrini, é de se conferir pessoalmente. Seguro e saudável — acho que sobre mim você poderia dizer inseguro e doentio”, ele observa, com humor. Precisa tomar como negativo, e até mórbido, algo que lhe é peculiar e que, na verdade, configura um atributo. É a vacilação que o engrandece, e a seus livros.
Continua a argumentar contra si: está numa fase em que lê ficção científica, os contos de fadas de Andersen, embora tenha também “caído fundo” nas Memórias do cárcere, de Graciliano. Interessa-se por tudo, pelos aspectos factuais, mas também pelos aspectos fantasiosos, ou irreais, do real — e por isso a denominação de realista, ou neo-realista, lhe soa como uma camisa-de-força. No entanto, esta visão expandida da realidade, que Caio tenta, sem muito sucesso, delimitar, hoje, 25 anos depois, é absolutamente contemporânea. Mais uma vez, como em muitas outras cartas, Caio Fernando Abreu apenas roçava, mas já tocava numa questão que poucos de seus contemporâneos puderam, ou quiseram, enfrentar. Daí a importância, ainda hoje, e hoje mais que nunca, de sua correspondência.
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Em carta anterior, do ano de 1970 e dirigida à escritora Hilda Hilst, Caio chega, por excesso de prudência e para conservar sua liberdade pessoal, até mesmo a renegar a identidade de escritor. “Digo a todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano procurando um jeito de viver. E que talvez esse jeito seja escrever”. A vida (o real) não entra, portanto, como algo a ser observado, descrito, analisado, manipulado, algo que estivesse fora dele — como acontece na literatura de realistas, naturalistas e neo-realistas. É algo que lhe é não só anterior, mas também interior. Em vez de “escrever” a vida, Caio escreve “para viver”, o que é absolutamente diferente, senão o inverso. Na vida (e aqui ele está só repetindo Pessoa, a quem nunca é demais repetir), Caio se vê como um escritor, não porque escreva e publique livros, mas porque “finjo o tempo todo”. Há, assim, um movimento duplo que ele não consegue desprezar e no qual localiza o nervo do que faz: para viver, precisa representar (isto é, agir como um personagem, que vive histórias e nelas interfere); para escrever, precisa viver (ou estaria apenas manipulando um trabalho intelectual, postura que, é importante dizer, domina uma parte significativa da geração de escritores brasileiros surgida nos anos 90).
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Para Caio Fernando Abreu, a literatura devia interferir na vida, feri-la de modo agudo. Modificá-la, não como um panfleto (do realismo socialista), que apenas quer ditar normas ao real, mas agir sobre seu interior e energizá-la, quando não antecipá-la. Em 1983, numa carta dirigida à dramaturga Maria Adelaide Amaral, ele relata sua perplexidade diante do caráter “premonitório”, como diz, de seu livro Triângulo das águas, em especial da parte final, Pela noite. Explica. Apaixonou-se, quando julgava que isso não aconteceria mais. “À beira dos 35 anos, eu estava certo que não existia. Ou que, se existia, não era para mim”. Então, vai reler, ao acaso, o Triângulo — e lá encontra a paixão já esboçada. Como se a narrativa inseminasse a vida, fosse capaz de fertilizá-la e lhe dar uma direção. As evidências se multiplicam. Já em seus dias finais, como está registrado em carta a Jacqueline Cantore de março de 1995, sofrendo as conseqüências duras da Aids, Caio se dedica a escrever Ovelhas negras e, sem nenhum pudor, não se furta à piada: “Termino livro novo, chama-se Ovelhas negras. É assim digamos um pré-póstumo…” Literatura e real emparelham e, até mesmo, trocam de lugar.
Caio foi um homem interessado em misticismos — mas não se trata aqui de compactuar com suas sofríveis teorias esotéricas. A questão que importa é bem outra: como pode a literatura aderir à vida, de modo tão intenso e íntimo, a ponto de alimentá-la? Por certo, ele não está sozinho — este ato de coragem tem seus antecedentes notáveis. Numa carta a Lucienne Samôr, escrita em 1995, Caio relata uma observação feita a respeito de sua obra por um crítico do Le Magazine Littéraire, de Paris, segundo a qual ela se parece com “a de uma Clarice Lispector que tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado algumas drogas”. A comparação torta, mas nem tanto, o agrada bastante, e ele deixa isso claro. A vida toda, lutou para se livrar da influência asfixiante não de Clarice, a mulher, mas da escrita, de fato devastadora, de Clarice Lispector. Quanto à mulher, que depois se tornou sua amiga, ela lhe serviu, o crítico francês tem razão, como um espelho. Espelho torto, deformado, como esses espelhos de circo, em que se vê o que não existe e o que existe só se prenuncia — mas ainda assim, espelho. Imagens que se relacionam de maneira irregular, que se correspondem só muito precariamente, mas que conservam uma relação fluida, inconstante, incompleta. E Caio sempre teve consciência não só do caráter transitório e casual da existência, mas do modo como ele (ao contrário das paisagens e dos tipos rígidos que habitam o realismo clássico) interfere na literatura.
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A respeito disso, Caio Fernando Abreu conta, em carta a Sérgio Keuchgerian, datada de 1987, uma “história zen”, como define, que vem ilustrar esse laço. Um rei pede a um monge um talismã que o proteja de qualquer mal. O monge lhe dá um anel, com a recomendação de que o rei só deve abri-lo em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo é cercado pelos inimigos e o rei encurralado numa torre. Chegara o momento: o rei abre o anel. Dentro, encontra apenas um papelzinho dobrado. Está escrito: “Isto também passará”.
A história zen aponta duas coisas: o papel da mobilidade na literatura de Caio (em toda literatura?) e o gosto que ele nutria pelas coisas simples, pelos relatos antigos, pelos lugares-comuns, isto é, pelas repetições — preferência que se expressa, por exemplo, num livro deliberadamente kitsch como Por onde andará Dulce Veiga?. Era essa relação móvel, inconstante que Caio desejou, sem conseguir, expor a Emediato. O real? Sim, como escapar dele, como evitar ou renegar esse latão no qual, sem pensar ou desejar, podemos tropeçar a qualquer momento? Se não sabemos onde o real pode estar, onde pode surgir e que formas pode vir a ter, não podemos também designar sua presença na literatura — mesmo sabendo que ele, seguramente, ali age. A literatura e a vida guardam este laço, que não é só uma semelhança, um paralelo, mas algo bem mais visceral.
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Em carta aos pais, datada de 1969, num período em que está hospedado na Casa do Sol, a chácara de Hilda Hilst na periferia de Campinas, ele relata outra história, essa real, que acabara de viver. (Mas o que realmente a distingue das histórias “irreais” que Caio escreveu? Em que medida elas estão realmente separadas? Por que será ela mais “real” que um conto do Triângulo das águas? Por que confinar o real na vida e limitar a literatura ao imaginário, ou irreal?). Desde muito jovem, Caio sempre teve problemas com sua voz, muito esganiçada. Envergonhava-se dela, e isso acentuava sua timidez. Certa noite, Hilda Hilst, que se interessa pelas experiências místicas, resolve dirigir um ritual mágico diante de certa figueira de sua chácara. Na manhã seguinte ao ritual, o tom de voz de Caio havia mudado. Estava , como se diz, “normal” — ou como Caio sempre desejara que fosse. Pode haver invasão mais direta da literatura, e suas irrealidades, no domínio do real? Pode haver evidência mais escandalosa da fronteira quebradiça que os separa?
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Ainda moço, numa carta para Hilda Hilst datada de 1969, Caio nos fornece, com sua linguagem espontânea, uma concepção pessoal da criação literária. “Detesto coisas dignas, impecáveis, engomadas, lavadas com anil: aceito nos outros, levando em conta, inclusive, o tempo em que foram feitas. Mas não é mais tempo de solidez: a literatura tem que ser de transição, como o tempo que nos cerca”. Nesse aspecto, ele via a literatura “muitos passos atrás das outras artes”. A idéia que importa aqui é a da transição, como algo que se passa “entre” dois mundos, um estado que se define pela mobilidade, pela ausência de fixidez e pela instabilidade. Da literatura estrangeira, Caio cita Beckett e Ionesco; da brasileira, menciona a própria Hilda, de quem acaba de ler Fluxo-Floema, livro que o agita de entusiasmo — e que é, de fato, embora muito desprezado, um dos livros mais importantes que a literatura brasileira produziu ao longo do século 20.
Ainda em seu diálogo epistolar com Hilda, ele diz: “Tens razão quando falas na importância das coisas terem sangue”. Quer dizer: estamparem, de modo cru e direto, não uma relação fácil e fluente com as visões fixas do mundo (seja a da sociologia, seja a da religião, seja a da ciência ortodoxa), mas uma relação tensa, inconstante, que não repudie os paradoxos e não imponha solução ou fecho onde há, na verdade, fluidez e mutação. A literatura que Caio reivindica deve estar em contínuo estado de metamorfose. Um autor escreve um livro. No dia seguinte, vai reler o que escreveu e, no lugar do homem, encontra uma barata. Contudo, não deve tomar este inseto como definitivo: alguma coisa nele se agita, e o leva numa direção que não pode conhecer. Talvez amanhã, ou mesmo hoje, já não seja um inseto. Só lhe resta “provar” da barata — como, aliás, Clarice Lispector levou sua personagem a fazer em G. H. Esta prova é a sina do escritor.
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O maior medo de Caio era se descobrir como “uma pessoa que escreve sobre a vida — como quem olha de uma janela — mas não consegue vivê-la”. Escrever para suturar esse precipício, no qual o real fica de um lado, e o escritor, como um fotógrafo impecável que, preservado pela distância, observa e registra a paisagem distante, do outro. Por isso, Caio Fernando Abreu viveu e escreveu postado sobre um abismo, em estado de tremor e de insatisfação. Para sincronizar com o real, precisou nele se dissolver. Isso talvez tenha ajudado a matá-lo. Poucos escritores brasileiros do século 20 foram tão corajosos e levaram tão longe sua opção pela literatura.