Apologia dos miúdos de frango, digo, de livro

Amamos os livros, claro. Mas esse sentimento é integral? Amamos sua alma e também seus órgãos menos nobres? Vejo que não
01/01/2003

Amamos os livros, claro. Mas esse sentimento é integral? Amamos sua alma e também seus órgãos menos nobres? Vejo que não. Da literatura impressa e encadernada guardamos apenas a essência, nunca as adjacências. Nos suplementos literários ninguém fala das capas, das orelhas, das lombadas. Ninguém resenha as erratas, os colofões. A verdade dói, arde: não damos a mínima para os membros inferiores, plebeus, dos livros. Na falta de pena mais talentosa, apresento a minha para a tarefa. Já era hora de alguém louvar as arestas mal festejadas dos livros, seus elementos coadjuvantes, envergonhados, mas vivos.

Errata
Erramos, sempre erramos, somos humanos, não somos? Que seria d’El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha se não fossem as mil e quinhentas gralhas que, apesar do cuidado dos revisores, edição após edição infestam suas páginas? Penso até que é justamente essa revoada de erros, de manchas de merda sobre a Mancha, que faz desse romance a obra-prima que é. Só mesmo os invertebrados e seus ascendentes para acreditarem que o acerto é a ausência de deslizes, equívocos, enganos. Não vêem que a perfeição precisa do erro para se realizar, caso contrário redunda em apenas meia perfeição. Os grandes romances da literatura universal estão coalhados de coágulos, de migalhas de gralhas, por isso são grandes.

Orelhas
Orelhas são para escutar, não para falar. Chega de blablablá, basta de lero-lero sobre o autor, sobre o talento do autor, sobre a genialidade do autor, sobre a esperteza e a agudeza do livro. As orelhas devem vir sempre em branco, para que o leitor possa anotar nelas seu desabafo, sua crítica, seu drama. Para que possa gritar até romper-lhes os tímpanos. Orelhas tagarelas? Navalha nelas.

Lombada
Dependendo da temperatura ambiente (acima de 25° C), da velocidade do vento (entre 50 e 100 km/h), do número de cadernos costurados (jamais inferior a oito), da gramatura do papel da capa (300 g/m2) e da tinta usada na impressão (Heat-Set, da Printcor), durante o chá com madeleines um só golpe de lombada na base do crânio pode mandar para o além o proustiano mais abnegado.

Sumário, notas de rodapé e índice remissivo
Calhordas, tratantes, dissimulados. Recuso-me a acolhê-los com afeto. Deviam desorientar, lançar pistas falsas. Deviam ajudar o leitor a se perder nos bons livros, em vez disso só atrapalham, conduzindo-o pela mão por trilhas curtas e seguras.

Famílias de tipos

— Times Square.

— Somente para os diálogos profissionais permeados de intenções secretas.

— Como este, darling?

— Como este, meu doce, meu anjo.

— Opa, vem gente… Futura-do-Pretérito.

— Ah, chuchu, apenas se no texto houver amplas janelas pelas quais possam entrar a neblina e a sombra das montanhas.

— Helvetica Vertical.

— Questão de ética: jamais deve ser usada nos sonetos românticos e nos romances góticos.

— Garamond Bas-Fond, ai, fofo, pára com isso.

— Só para os capítulos mais picantes, desde que não haja anões na alcova.

— Que pena, anões me excitam… Miss Univers.

— Apenas para o momento em que o protagonista atira pela janela, dentro da neblina, as esperanças e a dentadura da mulher amada.

— Canalha… Gilberto Gill Sans.

— Jamais para a coroação de reis e imperadores, a menos que haja fadas más e feiticeiras mancas no salão.

— Palatino Palatável.

— Sempre que o desespero fizer os caça-níqueis suar.

— Fátima é Optima.

— Somente se a chuva não provocar deslizamentos morais nem alagamentos líricos.

— Latin Lover Lato Sensu.

— Essa eu não conheço, que família é?

— A tua, meu sonho.

— A nossa, quer se casar comigo?

Um bom livro começa sempre por uma boa capa
A capa de um livro não deve comover as prateleiras, ela deve é chocar os códigos de barras. Mas se for incapaz de paralisar o leitor na livraria, que ao menos o obrigue a chorar em casa. A cor laranja, se combinada com a azul, normalmente faz as paredes tremer. O vermelho jamais deve ser usado, exceto no título e, talvez, no logotipo da editora. O verde cai bem, quase sempre na lombada. Isso, desde que a quarta capa não tenha nenhuma foto. Segundo as estatísticas, o número de assassinatos aumentou entre abril e junho só porque lançou-se mais romances nesse período.

O diagramador não deve usar fontes serifadas a seu bel-prazer. Deve seguir sempre à risca as decisões do capista, mesmo que este tenha sobrancelhas grossas e jamais tenha estudado em Copenhague, como afirma. Diagramadores de camiseta e sandálias devem ser expulsos do estúdio. Brincos e rabo-de-cavalo poderão ser tolerados, mas nunca simultaneamente. Barba e bigode sujam o teclado e alteram o brilho do monitor. Se não quiser correr riscos, não pense duas vezes: as capas que ganharam o prêmio Jabuti nos últimos cinco anos foram todas diagramadas por mulheres. Fumantes inveteradas, alcoólatras, quase todas elas. As capas, não as capistas.

— Que foto é essa?

— Peguei no catálogo da Keystone.

— Que porra de foto é essa?!

— Já disse, peguei no banco de imagens.

— Queee caaa-raaa-lhooo deee foo-too ééé eeessaaa…

— Qual é o problema, cara?! A capa está maravilhosa! Que é que você tem contra a foto que eu escolhi?

— Você escolheu! Esse é o problema! Você escolheu a foto! O problema! É esse! Você escolheu a foto! A capa é criação minha e você trocou as fotos! Cadê a foto que eu escolhi, onde foi parar? Cadê?

— O autor não gostou da foto que você escolheu. Ele não quer nada pornográfico na capa. Pediu outra sugestão de foto.

— Pediu outra?! Pediu outra foto?! Pra você?! O diretor de arte aqui sou eu! Minha foto não é pornográfica! Nu artístico não é pornografia, é nu artístico, não é pornografia, é nu artístico! Não estudei durante cinco anos na Bélgica pra ter que aturar isso! Tira logo essa foto, tira já! Tira ou te quebro a cara! Tive aula com os melhores artistas gráficos do mundo, seu babaca! Não recebi meu diploma à toa, tive que gramar muito! Pornografia, onde já se viu! Pornografia! Tira looogooo!

As orelhas (sempre no plural: orelhas) não devem ter mais do que oito centímetros e meio cada uma. O formato padrão da capa fechada não é catorze por vinte e um, como afirmam os professores de botânica. É treze vírgula seis por vinte vírgula oito, quer as samambaias atendam o telefone quer não. O papel mais adequado é o cartão supremo, desde que sua gramatura não seja inferior a duzentos e cinqüenta gramas. A laminação fosca, como possibilidade de acabamento, ofende as solteironas e os impotentes. Mas isso só no Chile. No Brasil, graças a pesquisas fraudulentas, ainda não foram encontrados casos de rejeição absoluta.

Por mais que o diagramador esbraveje, a lombada deve ser sempre quadrada. O título e o nome do autor devem ser posicionados de maneira que possam ser lidos de baixo para cima, quando o livro encontrar-se de pé na estante. Que fique claro: numa estante que também esteja de pé em relação ao piso que, por sua vez, deve suportar uma construção que também esteja de pé em relação ao centro da terra. É por isso que, antes de finalizar a lombada, todo diagramador deve verificar as bases do edifício onde trabalha. Também neste quesito as mulheres se mostram muito mais disciplinadas do que os homens. Em nossa cidade o número de mulheres de quatro, verificando a junção das paredes com o piso, não é nada desprezível.

— Que é que está havendo aqui? Que gritaria é essa? Estou com dois autores na minha sala, meio milhão de exemplares vendidos cada um, querem me matar de vergonha?

— Que gritaria é essa?! Que é que está havendo aqui?! Sóóó iiissooo!

— Ele está puto da vida só porque eu troquei a foto da capa.

— Qual é o problema com a nova capa? Pra mim está ótima. O autor não gostou da outra foto, me alugou durante duas horas no telefone. Achou a outra foto muito pornográfica.

— Ele disse, é?! Durante duas horas, é?! Por que é que só eu não sabia disso? Que é que vocês têm contra mim, contra minhas fotos, minhas capas? Tudo o que eu faço é fruto de muita elucubração, minhas capas têm conceito, não dá pra mudar nada assim sem mais nem menos. Não comi o pão que o diabo amassou pra ir estudar com os melhores artistas gráficos de Bruxelas, Tel-Aviv e Punta del Este à toa.

— Lá vem você com essa história de conceito. Já falei mil vezes: pra que conceito?! Conceito vende livro, paga as contas? Estou com dois autores sem nenhum conceito, meio milhão de exemplares cada um, e você fazendo esse barulho por nada! Conceito… Tenha dó! Se eu tiver que voltar aqui por causa da merda do conceito, você me paga!

— Vocêêê me paga, vocêêê, vocêêê!

— Não me ameaça, hein?! Põe o estilete na mesa.

— Vou riscar teu carro inteirinho, vocêêê me paga, isso não fica assim, vou riscar teu carro de fora a fora.

As quatro cores da impressão gráfica — assombro, amargor, insanidade, orgasmo — devem ser impressas nessa ordem. Cores especiais, como as da escala Pantone, jamais devem cair em mãos criminosas. A literatura carcerária, atualmente em voga, terá que se virar com as cores das notas falsas. Caso o capista decida aplicar verniz no título, a força de atração da lua deve ser levada em consideração. Recomenda-se que o relevo seco nas vogais nasais e nas consoantes fricativas seja evitado, a menos que o aço usado na composição do clichê tenha sido benzido.

Igrejas e hospitais localizados nas imediações da gráfica devem guardar silêncio absoluto para não causar má impressão. Também devem evitar taquicardias e confissões. O menor ruído sempre faz as bobinas da impressora urinar. A tiragem mínima de cada edição deve ser de três mil exemplares numerados (tem editor tentando vender gato por lebre, não caia na conversa mole: a numeração das páginas quer dizer outra coisa). O congresso nacional estabeleceu que a cota de exemplares para cada leitor, atualmente de seis unidades por cabeça, a partir de agosto será de apenas uma. Repito, cada leitor poderá comprar apenas um exemplar de cada obra. Os que pretenderem reler várias vezes o mesmo livro terão que pegar emprestado o exemplar dos amigos. Ou, é claro, reler o próprio exemplar (caso um amigo não o tenha pego emprestado). Esta segunda alternativa, dado o alto grau de perspicácia envolvida, raramente ocorre entre os fãs de literatura esotérica e de auto-ajuda.

— Não me ameaça, que te boto no olho da rua!

— Quem você pensa que é? Cain? Papai não vai deixar você me mandar embora!

— Claro que vai, você tá careca de saber que quem manda aqui sou eu! Papai não apita nada, nem aqui nem em casa. Mamãe é quem manda, e ela sempre fica do meu lado.

— Isso não vai ficar assim, ah não! Isso não vai ficar assim meeesmooo.

— Vai ficar assim, sim, senhor. Eu também gosto mais dessa foto do que da outra. Pode fechar o arquivo, quero os fotolitos ainda hoje. Esse livro tem que estar no distribuidor até o dia vinte.

Um bom livro começa sempre por uma boa capa. A boa capa é como o beijo apaixonado, se você não sabe o que é isso, é porque nunca mordeu a língua de uma nem foi por ela mordido. A boa capa é a que parte corações e desfaz casamentos, Romeus e Julietas, mosqueteiros e porquinhos. A boa capa não tem segundas intenções, ela cospe na cara e esmurra o queixo. E quando você pede que pare ela esmurra e esmurra e esmurra, esmurra, esmurra, esmurra. Uma boa capa não caça beija-flores, mas chupa os ossinhos com prazer. Foi uma capa excelente que incendiou Roma, muito antes da invenção da imprensa. Também foi uma capa de primeira que planejou os atentados de 11 de setembro.

A laminação fosca e o topo das páginas pintado à mão são possibilidades de acabamento que não descambam para o anonimato. Mas, por melhor que seja a cola, um mal livro com uma boa capa irá perdê-la logo. Boas capas não ficam paradas em pé muito menos deitado, preferem voar para fora da mansa mediocridade. Xeque da rainha no rei: dia virá em que escritores escreverão livros para boas capas, não o contrário.

Ela, a OA
Durante séculos, os dicionários, por mais completos e bem diagramados que fossem, por mais que ostentassem uma belíssima capa, sempre encalharam nas livrarias. Até que alguém sugeriu que seu conteúdo fosse organizado por ordem alfabética. No início, os editores desdenharam da idéia. “Bobagem”, resmungaram. O mundo também disse o mesmo do cotonete e da fralda descartável, e hoje, junto com a ordem alfabética, não há quem não reconheça nestes três as maiores contribuições do século 20 para a história da humanidade. A ordem alfabética não é propriamente um miúdo de livro, não no sentido palpável do conceito. Mas no sentido espiritual, sim. Um brinde à OA!

Colofão
Colofões deviam ser escritos antes dos livros. Deviam-se escrever livros para colofões e não o contrário (como para as boas capas). Ainda não terminei meu próximo romance — na verdade nem o iniciei e tudo indica que não voltarei a pensar nele nunca mais —, mas já tenho seu colofão e isso para mim basta:

Este livro foi escrito há poucos meses, ainda não deu tempo sequer de se transformar em clássico, talvez isso jamais venha a acontecer. Melhor para ele. Os clássicos afastam os leitores, oprimem os estudantes em geral, cheiram mal nas bibliotecas públicas. Melhor do que virar clássico é desaparecer devagar, feito as horas do dia de hoje, que amanhã mal serão lembradas. Horas, como a areia do Saara, nós temos de sobra, as que passaram não valem dez centavos perto das que a eternidade ainda vai descarregar. Os clássicos, quando despencam na sala de aula, são como os blocos de pedra que os hebreus arrastavam no Egito. Faziam isso em bando. Mas hoje, por livre vontade, sem o uso do chicote, não há aluno que concorde em arrastá-los sozinho. Clássico ou não, este livro foi escrito há pouco tempo e impresso no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2003. Faz quinhentos e quarenta e oito anos que Gutemberg lançou sua irretocável Bíblia — se quiser ver como ela é, a Biblioteca Nacional (é, a do Rio de Janeiro) tem um exemplar. De lá para cá muita coisa mudou no mundo civilizado e no ramo gráfico. Os métodos de impressão melhoraram, os tipos não são mais móveis. O papel piorou, não dura meio século nem por decreto. Os fotolitos deste livro foram fornecidos pelo birô Birosca, o café não é dos melhores, mas o esmero é nota dez. Este livro foi impresso na Grifo Gris, que trabalha direitinho e não é careira. Quando quiser orçar algo, procure o Paçoca. Estamos na primavera, para a literatura esta é a melhor estação do ano — depois do outono, é claro. A maior parte das boas lembranças que ainda guardo comigo aconteceram no outono. A menor parte, na primavera. Engraçado, não me lembro de nada de bom que tenha me acontecido no verão ou no inverno. Não gosto de estações extremadas. Se dependesse de mim, a Terra não chegaria tão perto do sol. Também não se afastaria tanto, isso gera derramamento de sangue. A Primeira Guerra Mundial e a Segunda, a Guerra do Golfo, a Guerra dos Cem Anos, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Franco-Prussiana, a Guerra Hispano-Americana, a Guerra da Secessão, todas começaram no verão, quando não no inverno. As que não começaram no verão ou no inverno foram planejadas nessas estações para explodir na estação seguinte, na primavera ou no outono. Não tenho como provar isso, mas é a mais pura verdade, eu sinto que é. Pensando bem, meu primeiro beijo também aconteceu no verão. Em abril, para ser mais exato. No dia 28, às 17h30, se não me engano. Não sou de colecionar datas e beijos, é a memória involuntária que me presenteia com essa exatidão cronométrica. O primeiro beijo e as grandes guerras devem ter algo em comum, caso contrário não aconteceriam sempre no verão, às vezes no inverno.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho