Encontrando Gabriel García Márquez

Uma inusitada viagem ao lado de Gabo e suas reminiscências literárias
García Márquez: “Escrever como um trem é o que de melhor pode acontecer a um escritor”
01/01/2003

Estamos no ar.

sempre tenho a impressão de que me faltam cinco centavos

Na janela, tenho nuvens tão brancas que ofuscam meus sentidos e fazem meus ombros e minha cabeça doerem e

— Aceita o almoço?

é essa impressão que continua sendo real. Eu sempre pensava… e não pensava: É real! Sempre me faltavam cinco centavos. Se eu queria ir ao cinema, não podia porque me faltavam cinco centavos. Se a entrada valia trinta e cinco, eu tinha trinta

Ganhei vaga na primeira classe após perder minha conexão devido ao mau tempo. Mas tive que contar minha vida recente para que me arranjassem vaga no primeiro vôo.

— O senhor devia ter nos explicado — desculparam-se naquela linguagem corporativa.

outra impressão que sempre tive era que eu sobrava em todos os lugares. Sempre me pareceu que se me convidavam a uma festa, era pelo compromisso de que havia um amigo que não iria sem mim. Por isso sempre trato de estar entre amigos. Porque entre amigos tenho certeza absoluta de que não sobro. Por isso não vou nunca a coquetéis, inaugurações, festas abertas: porque sempre tenho a impressão que sobro

Ainda me sentindo humilhado, levanto e vou ao banheiro. A aeromoça me informa que não posso me demorar. Estamos na rota de uma tempestade e, para minha segurança, apesar da nave ficar acima da turbulência,

uma noite, no final dos anos quarenta, um amigo me emprestou A metamorfose, de Kafka. Cheguei à pensão e comecei a ler. Por pouco a primeira frase não me fez cair da cama: “Ao despertar uma manhã, após um sonho intranqüilo, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama convertido em inseto”. Eu não imaginava que era correto escrever assim. Se soubesse, teria começado antes a escrever. Desse modo, comecei a escrever em 1947.

é bom que eu me mantenha preso pelo cinto de segurança.

— Não demoro.

Encosto a porta e baixo a tampa sobre vaso sanitário. Sento isolado dos passageiros e tripulantes. Respiro fundo três vezes descompassando a dormência em minhas coxas e

devo ter mandado na segunda, ou na quarta, e eu estava absolutamente certo de que o iriam publicar, mas eu pensei que o fariam um ou dois meses depois. No sábado seguinte eu saí à rua, entrei em um café e vi um tipo que tinha aberto o suplemento literário do El Espectador e lá estava o título de meu conto de oito colunas. Então me aconteceu uma coisa que é maravilhosa: eu me dei conta que não tinha os cinco centavos para El Espectador, para ver meu conto publicado

quanto à dureza em minha nuca, faço massagem com as pontas dos dedos.

— O senhor está bem?

Deve ser o paletó,

saí correndo até a pensão e pedi a um amigo se tinha os cinco centavos e compramos El Espectador e efetivamente estava ali

roupas formais me deixam com esse ar respeitável de gigolô em final de festa.

— Estou saindo.

Dou a descarga para justificar minha demora

e na semana seguinte saiu na seção “La Ciudad e el Mundo”, de Eduardo Zalamea, uma nota que dizia que esperava que os leitores tivessem se dado conta que havia aparecido um escritor do qual não se tinha notícia, e fazia um grande elogio a esse escritor

e abro a porta.

— Caso o senhor queira, temos calmantes, diz a aeromoça com seu riso plástico.

Sento e bebo e entrego o copo

a impressão que eu tive nesse momento era que eu me havia metido em uma enorme encrenca, porque já não havia caminho de regresso e teria que seguir sendo escritor por todo o resto de minha vida

— A companhia gostaria de expressar seus votos de pêsames pela sua perda, senhor.

Antes que a ladainha continue, tiro da bolsa o primeiro volume de Vivir para contarla,

o primeiro tomo deve ter 600 páginas em uma tipografia confortável. Começa com a vida de meus avós maternos e os amores de meu pai e minha mãe no começo do século 20 e termina em 1955, quando publiquei meu primeiro livro, La hojarasca, e também viajei para a Europa como correspondente do El Espectador. O segundo volume continuará até a publicação de Cem anos de solidão, mais de vinte anos depois. O terceiro terá um formato diferente, e só serão as lembranças de minhas relações pessoais com seis ou sete presidentes de países diferentes

— O senhor sabe quem está nesta viagem? — ela diz como quem divide um segredo proibido.

Três filas à frente, ao lado de Gabriel García Márquez, vejo a poltrona vazia e me encho de esperanças supondo uma viagem longe de janelas, distante das nuvens.

— Infelizmente não é possível. A companhia ofereceu duas poltronas ao senhor García Márquez para que ele tenha privacidade.

Tendo mais forte a sensação de derrota, puxo o marcador de páginas do número 317 e procuro o parágrafo em que parei

acredito, contra o critério de todos os críticos, que o melhor livro que escrevi, quer dizer, se eu escrevi uma obra mestra, essa obra é Ninguém escreve ao coronel, porque nela eu escrevi a realidade de cada dia à medida que ela ia acontecendo

mas antes de recomeçar, volto duas folhas

em Paris, a pensão em que eu morava era um sétimo piso sem ascensorista. Eu descia, via que não havia carta e então subia e acrescentava uma página a mais à história que estava escrevendo. Mas, o que é mais incrível é que à medida que ia escrevendo a história eu ia me dando conta que nunca me chegaria a carta e que nunca me responderiam os amigos os quais eu havia pedido ajuda. Então chegou o momento em que o que eu estava escrevendo correspondia exatamente à realidade

mas leio sem entender nada do nada.

escrevi Cem anos de solidão no México, em 1965, 66, 67… Foi uma época estupenda, não porque fosse fácil, não tínhamos dinheiro, mas porque eu estava escrevendo como um trem, que é o melhor que pode acontecer a um escritor

Ao invés de me perder em Arataca, contraponto real da mítica Macondo, sigo vagando pelo interior do Paraná, entre cidades como Londrina, Rolândia, Ibiporã, Cambé, onde nasci e passei minha infância testemunhando o casamento conturbado de meus pais, em lugares que, a reboque nos últimos acontecimentos, voltam cheio de um sentimentalismo que demorei anos para abandonar.

quando vi que o livro viria, disse a minha mulher, Mercedes: “Você cuida dos outros assuntos”

Fecho os olhos e tento esquecer o ano que passou, mas as nuvens me perseguem. Fecho o livro e deixo minha fileira.

sempre tive a impressão de ser o ser humano mais sociável do mundo, e agora me dou conta que durante dezoito meses não saí do quarto. Quer dizer, lembro que sai uma vez, quando Mercedes me avisou que havíamos chegado ao fundo. Então eu peguei meu carro e o levei ao Monte de Piedad e o penhorei e entreguei o dinheiro a Mercedes. Durou três meses

García está roncando grosso e não me percebe no banco vizinho, muito menos reclama que eu reabra o livro para tentar novamente continuar minha leitura.

— O senhor não gostaria de voltar ao seu lugar? — diz a aeromoça sem me dar a chance de correr os olhos por uma palavra sequer.

na metade do livro, o dono da casa ligou avisando que estávamos com o aluguel atrasado três meses. Mercedes tapou o fone e me perguntou quanto faltava e eu disse: “Seis meses”. E Mercedes disse ao senhor: “Veja, senhor, não só devemos três meses como vamos dever mais seis”. E ele disse: “Dentro de sete me pagam tudo?”. E ela disse: “Tudo”. E ele respondeu: “Se você me dá sua palavra, eu não tenho nenhum inconveniente em esperar”

A aeromoça, a mesma de antes, com seu coque apertado e lenço ao redor do pescoço, coloca a mão de dedos finos e unhas rosas em meu ombro.

— O Senhor García Márquez está…

Digo que só quero ler meu livro, que

a editorial Sudamericana me escreveu dizendo que tinha lido meus outros livros e estava interessado em reeditá-los. Eu disse que não podia, por compromisso com outros editores, mas que em setembro terminaria um livro e tinha muita fé nesse livro. Eles aceitaram e mandaram quinhentos dólares de adiantamento

o fato do homem velho ao meu lado ser seu autor é mera coincidência. E completo

— Eu também quero um pouco de tranqüilidade

conseguindo apenas afastá-la por um minuto.

no dia que terminei o livro, eu e Mercedes fomos ao correio. Eram setecentas páginas que, pesadas, custavam oitenta e três pesos para mandar do México para a Argentina. Mercedes me disse: “Só temos quarenta e cinco pesos”. E eu respondi que não havia problema. Dividi o livro ao meio e pedi que pesassem até quarenta e cinco pesos. Tiravam folhas como quem corta carne. Quando chegaram à medida, peguei as folhas, embrulhei e as mandei e voltamos com o resto

Ela vem trazendo a tiracolo o comissário de bordo. Uma vez mais explico minha disposição de apenas ler o livro e não conversar com ninguém, e acrescento que os fatos recentes não me dão ânimo para qualquer diálogo.

— Se o senhor García Márquez acordar, o senhor terá que voltar ao seu lugar, o comissário se mostra comiserado com minha situação.

Reabro o livro

em casa, Mercedes pegou o que faltava penhorar. Tinha um aquecedor que eu usava para escrever, porém, eu posso escrever em qualquer circunstância, menos com frio. Havia também o secador que ela usava para a cabeça e o liqüidificador que havia sido usado para fazer suco de frutas para nossos dois filhos. Como eles já estavam grandes, não mais o necessitavam. Fui ao Monte de Piedad com isso e me deram cinqüenta pesos

sem me incomodar com as abelhas faiscantes que escapam dos olhos castanhos da aeromoça, pelo contrário, o zumbido me ajuda a esquecer que estou no céu, entre nuvens, viajando para o Brasil, para o Paraná, para encontrar o corpo de minha mãe, apenas para enterrá-la.

voltamos com o resto da novela ao correio. Pesaram-na e disseram que custava quarenta e oito pesos. Mercedes pagou e deram a ela dois pesos de volta e, quando saímos, ela me disse verde de vergonha: “Agora, só falta que a filha-da-puta da novela seja ruim”.

Gabo é um velho nascido em 1928, que ronca enquanto leio. Sentado ao seu lado, sinto o calor de seu corpo, algo que impressiona pela alta temperatura. Chego a olhar pela janela, levado pelo instinto de abri-la, e lá estão elas, as mesmas nuvens.

Puxo do bolso um lenço limpo e seco o suor de meu rosto.

a imagem do menino sentado, morto de medo, é efetivamente um tema recorrente em meus livros, em minha obra. É uma imagem que eu recordo perfeitamente na velha casa em Arataca

— O senhor vai querer o lanche?

Aceno que não e peço uma caneta, com a qual faço algumas anotações. Uma lista de coisas que preciso conversar com meus irmãos e que foram adiadas nestes anos todos: pedidos de desculpas, curiosidades, explicações, pequenos segredos, grandes segredos, silêncios inexplicáveis. No meio da página penso se realmente tenho sorte de ter a oportunidade de fazê-lo.

a forma que meus avós encontraram para a partir das seis da tarde não terem que estar presos a mim, para não se ocuparem com o menininho nessa casa grande, era simplesmente dizerem, “sente-se e não se mova. Porque se você se mexer e for para esse quarto, aí morreu sua tia Petra. E aqui morreu seu tio Nicolás. E lá morreu Petronila”. E assim me mantinham quieto, na base do terror

Feito um chafariz bloqueado, Gabo vira a cabeça de uma lado para o outro, deixando que gotículas flutuem de sua boca para o ambiente. Deve ser por isso que tomou os remédios para dormir.

sou muito bruto para escrever. Tenho que me submeter a uma disciplina atroz para terminar meia página em oito horas. Luto a trombadas com cada palavra e quase sempre ela sai ganhando

Eu tomei a pílula e agora que estou dormindo, ouço os sons do avião, as turbinas zumbindo feito abelhas castanhas, os passos da aeromoça, sua saia farfalhando perto de meu ouvido. Gabo me acorda para falar surpreso

quando me fiz escritor profissional, o mais grave problema que tive que enfrentar foi impor-me um horário. Estava habituado ao trabalho de jornalista que me ocupava sobretudo as noites. Me vi obrigado a estabelecer uma pauta de trabalho que ia das nove da manhã às duas da tarde, quando meus filhos voltavam da escola. Nesse tempo eu tinha quarenta anos… depois me senti culpado por escrever apenas pela manhã, e tentei continuar pela tarde, mas me dei conta que a segunda parte do dia não me resultava bem e tinha que refazer tudo na manhã seguinte

(em Londrina vou pegar o primeiro táxi e descer onde o corpo de minha mãe está sendo velado. Precisarei atravessar a rua e, nesse tempo, muitos dos parentes me verão chegar. Meu sobrinho, Yudi, me acenará. Minha cunhada vai estar indo rua abaixo, sem me ver, magoada com os gritos de minha irmã mais nova. Tios e tias acharão estranho o horário que terei chegado, mesmo assim irão me abraçar e desejar que eu tenha forças para superar o momento, sem saber que ainda não estarei sofrendo, que eu, como minha mãe, sofro no tempo tardio)

— Quem é você?

um quarto de hotel, uma habitação posta à minha disposição por outra pessoa, uma máquina de escrever emprestada, me bloqueiam, e isso é uma pena porque quando viajo não posso trabalhar. Devo também estar em um estado de graça, com o tema definido e o tom exato para o desenvolvimento. Uma das primeiras dificuldades é escrever o primeiro parágrafo. Já cheguei a passar meses até “pegar a onda”. Mas, superado esse problema, o resto sai fácil. Acredito que com o primeiro parágrafo feito se supera a maior parte dos problemas do escrever um livro. Ali fica definido tudo: o tema, o tom, o estilo. Por isso penso que é mais difícil escrever um livro de contos que uma novela. Em cada relato é preciso começar de novo, partir de novo, diferente da novela que parte apenas uma vez para um único e imenso esforço

Fecho depressa o livro para que não haja um mal-entendido e explico minha situação. Não falo da internação de minha mãe, muito menos da semana inteira na UTI do hospital, e evito detalhes da discussão relativa à amputação da perna direita, pois, seja como for, de nada adiantou. Digo apenas que minha mão faleceu e que preciso de tranqüilidade e, na poltrona em que estava, não irei conseguir.

— Um dia minha mãe também morreu.

(na ante-sala da capela, minhas duas irmãs estarão chorando. Duas tias e três primas, mais amigas e conhecidos estarão ao redor, tentando consolar o desespero da mais nova, inconformada com o que considera injustiça. Meu tio se aproximará dizendo que preciso controlá-la, e eu direi que não, que quando ela se cansar tudo ficará bem e então entrarei na sala onde está o caixão e serei surpreendido pela beleza do rosto de minha mãe. Apesar da ferida nos lábios, decorrente de dias entubada, ela parecerá sorrir. Os ossos da face, que antes destacavam-se, foram cobertos pelo inchaço da septicemia. Seus cabelos, mais grisalhos do que na última vez que a vi — quando foi? —, foram penteados cuidadosamente, deixando em destaque a testa larga, expressão de sua inteligência. Todos repetirão que parece bem, e eu saberei que é verdade)

se a arte e a literatura não transmitem aos leitores, aos espectadores, um problema da vida, um problema dos seres humanos, ela é um fracasso completo.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho