As palavras e as coisas

A leitura de Dom Quixote é sempre uma bela maneira de desvendar as nossas inúmeras misérias
01/02/2003

Se confiarmos no retrato que o próprio autor pinta no prólogo de suas Novelas exemplares, publicadas em 1613, ou seja, quando contava com a idade de 65 anos, era um homem de cabelo castanho, face lisa, olhos alegres e nariz curvo, embora não desproporcionado. Os bigodes eram longos e a boca pequena. Os dentes nem pequenos nem grandes, porque os tinha em número de apenas seis. Não bastasse isso, nos diz que estão mal ajustados e sem correspondência uns com os outros. Sua pele era viva, nem branca nem morena. Foi soldado durante muitos anos e passou cinco anos e meio cativo. Perdeu os movimentos da mão esquerda por causa de um acidente de guerra, ferimento que, se para alguns pode parecer feio, para ele é formoso. E é com muito orgulho que nos relata esse episódio e sua conseqüência em uma passagem de seu poema Viaje del Parnaso, e fecha a terza rima com uma máxima moral: o que perdeu com a mão esquerda lhe compensou em glória a destra. Para a sua fama e a nossa felicidade — poderíamos concluir. Tudo indica que haja aqui um misto de representação fisionômica e de convenção satírica. O que me leva a crer que esse retrato seja fiel demais ao personagem Miguel de Cervantes para ser mera realidade, e fictício demais como retrato para ser apenas um personagem.

Miguel de Cervantes nasceu provavelmente no dia 29 de setembro, dia de São Miguel, do ano de 1547, na cidade espanhola de Alcalá de Henares. Foi o quarto filho dos seis que tiveram o casal Rodrigo de Cervantes e Leonor de Cortinas, família que desde cedo teve que migrar por várias cidades como Valladolid, Córdoba e Sevilha em busca de melhores oportunidades. Carlos V está no auge de seu poder e o Império Espanhol se estende pelos Países Baixos, de onde vem a grande semelhança de tendências entre a pintura flamenga e a dos mestres espanhóis, além das afinidades filosóficas e da forte penetração do estoicismo, que eu acredito que se faça por meio de nomes como dos holandeses Erasmo de Rotterdam e Justus Lipsius. Além disso, abrangia Milão, o Reino de Nápoles, a Sardenha e tinha possessões na África e nas Novas Índias, vulgo América. Até Portugal fazia parte de seus limites e viveu sob o domínio da coroa espanhola de 1560 a 1640, aproximadamente. O que sabemos é que por volta de 1568 freqüentava o colégio Estudio de la Villa, fundado por jesuítas. Mas o episódio marcante, e muitas vezes escamoteado sem qualquer necessidade pela crítica, ocorre em 1569. Cervantes, por motivos que desconhecemos, trava um duelo com um nobre e o fere gravemente. A pena para alguém como ele que tinha algum título de nobreza, que era um fidalgo, não um completo despossuído, era bem mais amena: exílio de dez anos, uma das mãos cortadas e mais um ônus em dinheiro.

Esse ocorrido está registrado em atas, e o nome do réu vem bem destacado: Miguel de Cervantes. Dificilmente pode ser um homônimo, hipótese que a crítica chegou a aventar. O fato é que não sabemos como ele comutou ou pagou a pena; sabemos apenas que pouco depois desse incidente ele está na Itália, com as mãos intactas e a cara limpa, trabalhando entre os criados do cardeal Giulio Acquaviva. Mas os serviços ao cardeal não vão durar muito. Logo se alista na Santa Liga, uma coordenação guerreira que tinha por objetiva combater os mouros que entravam pelo Mediterrâneo, comandada pelo insigne Juan de Austria. Participa da batalha de Lepanto em outubro de 1571, onde finalmente sofre de fato o ferimento na mão que viria a caracterizá-lo, mas onde também se revela por suas atuações, a ponto de receber distinções que lhe foram especialmente conferidas pelo próprio comandante Austria e pelo duque de Sessa, e passa desde então a integrar a companhia de Lope de Figueroa. Outras batalhas se seguem: de Navarino, em 1572, a ocupação de Tunis, em 1573, e a tentativa malograda de retomar a Goleta, em 1574. Depois de cerca de dez anos de viagens e batalhas, Cervantes decide voltar com seu irmão Rodrigo, que também era soldado, e tentar a vida na Espanha com as indicações e as distinções que havia obtido pela sua coragem. Ao navegar rumo à Península são assaltados por corsários mouros, e ambos caem em uma prisão da cidade de Argel, então sob o domínio do rei árabe Azán Agá. A sorte de Rodrigo não é das piores, e logo consegue sair em liberdade. Já Cervantes vê a reviravolta de seu destino sair pelas suas próprias mãos. Afinal, quão mais valioso e digno de humilhação não é um soldado que traz consigo uma carta de recomendações daquele quilate?

Durante mais de cinco anos, Cervantes permaneceu nesse baño, que é uma espécie de cativeiro bastante precário e cruel, criado pelos árabes especialmente para prisioneiros cristãos. E é justamente nesse episódio do seu cativeiro que as peças começam a se juntar, e que a vida e a ficção começam a construir suas encruzilhadas. No capítulo 39 da primeira parte do Quixote, depois de algumas andanças e aventuras sem sucesso, o cavaleiro e seu fiel escudeiro resolvem cear na estalagem de Juan Palomeque. Mal se acomodam, chega um senhor de braço dado com uma jovem bela e discreta que parecia ser sua filha. Suas roupas são de uma mulher árabe, mas seus modos tipicamente cristãos, o que estimula a curiosidade de todos os que estão à mesa. E é ao ser interpelado pelo dono da venda que começa a narração da sua história, que se desenvolve até o capítulo 41. Trata-se de Ruy Pérez de Viedma, capitão cujo percurso foi tão ou mais acidentado do que o de Cervantes. Cedo, deixa os pais e irmãos e participa das excursões espanholas, viajando por Gênova, Milão e Flandres. Participa da batalha de Lepanto, está em Tunis quando da sua tomada e entre os soldados da expedição fracassada da Goleta. Mas entre 1567 e 1574 cai prisioneiro em Argel. Quando sua esperança de liberdade está prestes a se desintegrar por completo, consegue estabelecer contato pela janela da prisão com Zaraida, filha de um homem poderoso chamado Agi Morato. E ela lhe conta então a sua desventura: desde que instilada por uma ama cristã ao amor à Virgem Maria nunca mais conseguiu tranqüilidade de espírito. Quer fugir e desposar um cristão, pois só assim poderá realizar o seu sonho: ser convertida. E é exatamente o Capitão Cativo o homem pelo qual tanto esperava. Trama a fuga de ambos, que ocorre com sucesso, apesar da cena melancólica de seu pai em terra firme de joelhos clamando aos céus por aquela atrocidade e dizendo em árabe palavras com as quais escorraça e deserda a filha. Passam por toda a costa da Espanha, penetram o continente e eis que chegam, a cavalo, à venda do senhor Palomeque.

É desnecessário ressaltar a quantidade de semelhanças entre o perfil do Capitão Cativo e o de Miguel de Cervantes, por mais que haja discordância entre algumas datas e fatos. A cena do cárcere mouro aparecerá também em uma peça de teatro de Cervantes, Los baños de Argel, e cria uma relação de tripla representação de um mesmo episódio, cuja inspiração é nitidamente biográfica. Creio que o auto-retrato de Cervantes e essa narrativa de caráter biográfico inserida no conjunto de sua obra máxima possam nos levar a algumas reflexões interessantes. Se muitas vezes e durante muito tempo o Quixote foi visto como uma das mais consumadas paródias de um gênero literário — as novelas de cavalaria — já levadas a cabo por um escritor, essa análise parece insuficiente, na medida em que nos oferece a contrafação artística como sendo o coração de seu sentido, sem levar em conta implicações filosóficas mais sérias que podemos inferir de diversos episódios isolados da obra. Porque se dom Quixote representa o último estágio da loucura, aquele onde os dados da ficção não mantêm mais nenhuma relação de dependência entre si e não têm mais lastros com uma natureza comum, podendo muito bem ser permutados e tomados pela própria realidade, isso quer dizer que a missão do herói não é apenas restaurar a Idade de Ouro da cavalaria andante, como ele insiste em dizer, mas provar para todos, e muitas vezes em contradição com as evidências, que ela ainda é possível. Em outras palavras, se o mundo foi capaz de gerar a quantidade de mentiras e absurdos de que os livros de cavalaria estão empanturrados, Quixote usa desse mesmo veneno para transformar o mundo em um enunciado e em signo, e faz aquilo que Dostoievski disse que ele faz: paga a mentira com a mentira, a tal ponto que acaba transformando-a em regra. Com a figura de dom Quixote, Cervantes elevou a poesia ao estatuto de única verdade possível. Tudo o que venha a se agregar a ela será mero acidente ou contingência. A cruzada do fidalgo manchego contra o mundo tem como último objetivo demonstrar que este mundo está e estará sempre aquém de si mesmo enquanto não estiver à altura da fantasia, e que se os moinhos de vento não são gigantes, é culpa dos moinhos e não dele, dom Quixote de la Mancha. Se tudo é representação e teatro, o rosto que não se adequar à máscara não existirá ou será sempre um defeito e uma falha diante da potência ilimitada da imaginação, esta sim o ponto de partida e o substrato da verdadeira realidade. Nesse universo, os acidentes dão forma à Essência, e se a poesia era uma maneira de potencializar o real sem modificar a sua natureza irredutível, agora ela vira o paradigma, o eixo, a norma, fora da qual real algum sequer existe.

Aqui não estamos no âmbito da pura representação ou no campo estreito da paródia somente, mas em um tipo de relação especular que possui várias camadas de significado. E isso invalida a alfinetada arguta que Baltasar Gracián parece ter desferido contra Cervantes em uma das crises do Criticón, ao dizer que reproduzir novelas de cavalarias pela negativa é ocorrer na dupla loucura de duplicar aberrações do entendimento e extrair do veneno mais veneno. Porque em primeiro lugar, Cervantes criou um mito capaz de realizar algo que era quase impensável até então e de conseqüências drásticas: positivar a mentira, a falsidade e o simulacro. Esse aparente paradoxo é confirmado pela maneira como ele pinta o caráter de dom Quixote, já que, se na maioria das vezes ele é apenas um louco descontextualizado e objeto de riso de todos, outras tantas ele demonstra ser a pessoa mais inteligente e sensata do mundo. Embora sua postura não tenha coerência com os dados da realidade imediata, suas falas têm coesão e sabedoria; sua reivindicação de nobreza guerreira e sua tábua de valores estão em total concordância com seus propósitos. Em outros termos, há ética em cada um de seus passos falsos, na mesma proporção em que há método na loucura de Hamlet, como nos diz Polonius. Isso nos desautoriza a vê-lo como um personagem eminentemente cômico — embora ele esteja a quilômetros de distância da tragédia. E essa é a questão difícil de deparar. Porque se Quixote fosse apenas cômico, como estava previsto que fosse, ele cumpriria a função do gênero baixo em que está inscrito e geraria apenas riso. Mas há sempre algo que escapa dessa análise, e uma espécie de devir que não se deixa aprisionar por essa etiqueta. Acredito que boa parte dessa complexidade advenha de um fator comum, e que parece ser o fio que orienta toda a obra e chega a ser a sua própria essência: a negação. O Quixote é uma espécie de épica da negatividade. Tudo nele é refutação de dados, inversão de preceitos, o avesso do direito, o real que é ficção, a verdade inacessível e a poesia como única via de acesso ao mundo, com todos os fantasmas, paradoxos, ambigüidades e fantasia que essa via comporta. Por isso, quando dom Quixote se depara com um pobre barbeiro viajando em seu burrico de uma vila a outra, a bacia dourada debaixo do braço, por obra da imaginação transforma-o em um guerreiro e a bacia, no elmo dourado de Mambrino, personagem insigne do Amadis de Gaula, um dos mais famosos romances de cavalaria. Cabe a ele resgatar o elmo, e para isso investe contra o pobre homem e os dois se arrebentam no chão. E essa inversão só tende a se acentuar.

Em 1605 era publicada a primeira parte do Quixote com relativa repercussão e sucesso. À exceção de um crítico ranzinza e selvagem como Lope de Vega, que considerava Cervantes um dos piores poetas da Espanha — e no caso específico da poesia não estava totalmente destituído de razão — e alardeava que apenas um completo idiota acreditaria em um personagem como dom Quixote, pode-se dizer que ela teve uma acolhida considerável entre os homens de letras. Mas a publicação não serviu para dar um rumo ao desajuste financeiro em que se encontrava Miguel de Cervantes. Tanto que em 1609 ele entra para a Hermandad del Santíssimo Sacramento, uma ordem religiosa à qual suas irmãs também serão acolhidas depois. Em 1613 aparecem as Novelas exemplares, e, naquele mesmo prólogo onde o autor nos pintou o seu retrato, a seguinte promessa: a segunda parte do dom Quixote de la Mancha apareceria em breve. O fato é que em 1614, um ano depois portanto, efetivamente aparece uma segunda parte do Quixote, mas apócrifa, assinada sob o pseudônimo de um tal Alonso Fernández de Avellaneda, pelo que consta procedente de Tarragona, na região de Aragão. A essa época, Cervantes já estava no capítulo 59 da segunda parte, e quando sabe do Quixote apócrifo fica furioso. Tanto que nesse mesmo capítulo, dom Quixote e Sancho chegam a uma estalagem e nela deflagram uma pessoa lendo o falso Quixote, o que é motivo de escárnios e ofensas por parte dos verdadeiros heróis, que não se reconhecem naquelas histórias e naqueles caracteres que a pessoa lhes diz estar lendo. E aqui está o nó de toda a mudança estilística e temática da primeira para a segunda parte, que é tão acentuada que alguns críticos chegaram a se referir às duas partes como dois Quixotes diferentes. Porque a grande alteração da segunda parte é que nela a primeira já corre impressa, e os personagens se relacionam com dom Quixote já tendo lido a sua vida pregressa e o seu passado imediato. Além do mais, circulam dentro do Quixote verdadeiro os comentários dos personagens e do narrador, tanto à primeira parte quanto ao Quixote falso de Avellaneda, diversas vezes desprezado e criticado impiedosamente. E eis que se embaralham todas as cartas e identificamos uma série de saídas que conduzem a lugar nenhum. E fica a pergunta: quem é o autor do falso Quixote? E uma pista, colhida em um personagem da primeira parte, pode explicar a vida, como as novelas de cavalaria explicam e dão forma ao mundo.

Um dos episódios mais engraçados de toda a saga é o dos galeotes, no capítulo 22 da primeira parte. Nele o cavaleiro e seu escudeiro se deparam com uma fila de prisioneiros algemados que rumam em direção a galeras para trabalhos forçados. São bandidos, assassinos, prisioneiros de guerra e malfeitores de toda espécie. Claro que dom Quixote, que aguarda ansiosamente vítimas para as quais possa corrigir destinos e reparar danos, não vai deixar de ver nos tratamentos dispensados a essa nata social a síntese da opressão e da injustiça sobre a terra. Após desfilar com o cavalo interrogando cada um dos prisioneiros, que lhe narram as suas respectivas vidas e sucessos, Quixote consegue burlar a vigilância e arrebentar a corrente, livrando os pobres diabos que somem correndo e se embrenham na mata para o desespero dos guardas, que correm em busca da Irmandade Guerreira para recapturá-los. O preso mais ridicularizado pelo narrador, que tem uma das histórias mais anedóticas e engraçadas, é um tal Ginés de Passamonte, criminoso cheio de piedade e comiseração. Por acaso ou não, um dos companheiros de guerra de Cervantes foi um soldado chamado Gerónimo de Passamonte, homem letrado inclusive, que chegou até a deixar uma autobiografia publicada. A chance de deslindarmos o mistério da autoria do Quixote apócrifo sob o pseudônimo de Avellaneda está aqui, e é um consenso entre os biógrafos a possibilidade dessa relação. Gerónimo de Pasamonte, por motivos que desconhecemos, provavelmente instilou em Cervantes algum sentimento de rancor ou comicidade durante a guerra, a tal ponto que este usou traços de sua personalidade para pintar seu personagem, mudando levemente os nomes. O autor de Tarragona, irado por ter se reconhecido naquela caricatura e sendo homem instruído, tomou contato com o Prólogo onde se anuncia a segunda parte vindoura e se antecipou a seu verdadeiro autor.

Mais do que curiosidade biográfica ou exercícios de imitação e emulação artísticas, aqui entramos no coração da obra cervantina. Santo Agostino define o mundo como verdade revelada, e vê em cada evento humano e terreno uma manifestação divina e eterna que precisa ser decifrada para ser encarnada. O mundo seria um livro, e os fatos e as coisas em si mesmas significam, são signos com os quais a Providência escreve a história dentro do tempo e dá sinais de sua inteligência infinita se movendo à luz das suas águas. Toda a concepção de história do Ocidente desde então seguirá essas premissas agostinianas, e a história sacra não consiste em nada mais do que trazer aos olhos e à inteligência os nexos existentes entre res e uerbum, entre as palavras e as coisas, e, mais que isso, demonstrar que as próprias coisas materiais que compõem o mundo sensível são signos que remetem à Coisa não predicável, dela emergindo e a ela regressando como um rio que regressasse à sua foz. Como herói de uma epopéia da negatividade, dom Quixote parte do princípio de que a prosa do mundo e a prosa que ele quer que o mundo narre estão em desequilíbrio e em contradição. Ele quer que o mundo signifique além do usual, que ele encarne a harmonia cósmica e a imaginação fabulosa dos romances de cavalaria, e o que esse mundo lhe devolve em troca é tão somente o real, sem nenhuma transcendência ou epifania. Já na primeira parte, logo que Quixote deixou o seu vilarejo para entrar para a vida da cavalaria, o Cura e o Barbeiro fazem uma devassa na sua biblioteca comida por traças, e queimam pilhas e pilhas de livros. Um dos poucos poupados é um livro do próprio Cervantes, La Galatea, que recebe alguns comentários ambíguos do Cura. Como diz o narrador — Cide Hamete Benengeli — a história de dom Quixote de la Mancha é na verdade um manuscrito árabe, encontrado e traduzido para o espanhol, e do qual ele, como narrador, nos faz uma reconstituição. Todos os aspectos e peças desse quebra-cabeça biográfico, literário, histórico e poético se desenvolvem na prosa do mundo e são catalisadas pela pena de Cervantes. Mas na segunda parte, há um elemento complicador e um veneno que se introduz no interior do próprio mecanismo da obra, e consiste no fato dos personagens já conhecerem dom Quixote de antemão por já serem leitores de sua vida. Aqui a negatividade assume requintes de crueldade, porque a criação literária vira uma metáfora da leitura e da própria vida. Restituir a idade de ouro da cavalaria equivale a recolocar em circulação o encantamento perdido das fábulas cavalheirescas, devolver ao mundo o sentido que já não é possível ler em suas entrelinhas e fazer valer a ordem implícita que a Providência ocultou sob a opacidade das coisas. Dom Quixote cria uma maneira artificial e artificiosa para isso — mas cria. Na medida em que todos já sabem de suas estratégias e que a sua loucura é conhecida por dentro, ele deixa de ser o protagonista dessa história e passa à condição de fantoche em mãos alheias. E eis que temos o episódio dos Duques, que vai do capítulo 30 ao 57 da segunda parte.

Conhecendo todas as idiotias e aberrações da mente de Quixote e tendo lido todas as suas aventuras e desventuras, o duque e a duquesa acolhem-no em seu palácio como objeto de seu divertimento. Por intermédio deles, a condessa Trifaldi diz ter sido enfeitiçada pelo cavaleiro Malambruno, e persuade Quixote e Sancho a voarem pelos céus no cavalo de madeira Clavilenho para desfazer a magia do inimigo maligno. A jovem Altisidora vem cantar todas as noites canções de amor à janela de Quixote para testar a sua fidelidade a Dulcinéia. A mesma Trifaldi diz que dom Clavijo se encontra transformado em um macaco de metal, e roga ao cavaleiro que o salve. Realizam por fim um desfile mitológico em um carro que conta com demônios, anjos, animais e ninguém menos do que Dulcinéia de Toboso como seu corolário. E por fim os duques fazem de Sancho o governador da ilha Barataria, e o despacham para lá com dignidades de chefe de estado. Tudo isso não passa da mais sórdida gozação. O cavalo de madeira onde os dois heróis foram amarrados e vendados recebeu lufadas de ar quente para simular um vôo que nunca realizaram, Altisidora em nenhum momento se apaixonou por Quixote, o macaco de metal é apenas uma estátua, quem posa no carro alegórico disfarçado de Dulcinéia não é ninguém menos do que o mordomo dos Duques vestido de mulher e a ilha que Sancho governa não é uma ilha, mas um condado dos Duques, que por sua vez puseram como seu assistente um médico que, sob as desculpas de zelar por sua saúde, o impede de comer tudo o que ele quer comer na sua condição de glutão. Diante dessa dieta forçada, Sancho desiste de vez do governo da ilha logo depois de um assalto a suas fronteiras, forjado pelos próprios duques, e volta para o lado de seu amo, que já vagueia ébrio pelas dependências dos nobres em meio a simulacros de simulacros e a falsificações de falsificações que têm por única finalidade a diversão deles e de seus pares. Ambos se cansam daquelas aventuras sem ao menos desconfiarem de todo o teatro no qual se embrenharam, e partem de volta para a sua errância cavalheiresca.

Se dom Quixote elevou a poesia acima da história e a fantasia acima da realidade, foi para reinvestir as coisas à sua volta de sentido, para que elas voltassem a ser signos de uma escrita sagrada que Deus cifra no mundo e que com ela nos mostra a totalidade de sua criação. Mas mesmo assim há um descompasso entre o sentido profundo, porém ausente, dessas coisas, e aquilo que o herói quer lhes dar. Ao fim e ao cabo, barris de vinhos não são dragões, e querer que eles sejam é forjar em pinceladas grossas e borrões malfeitos uma dimensão sublime da vida que há muito já se tornou impossível. Mas agora há o efeito reversivo: não só o mundo está desinvestido de encanto e de sentidos ocultos, como ele é quem devora dom Quixote ao transformá-lo em ficção e personagem de uma diatribe infernal. A mentira da poesia encarnou em um homem e foi dada ao mundo: Alonso Quijano deixou de ser um fidalgo anônimo de um pequeno vilarejo da Mancha e se transformou em dom Quixote, ou seja, fez da fábula dos livros de cavalaria uma verdade. Agora esse mesmo mundo o devolve à ficção e o manipula, pagando a sua verdade com mais uma mentira: e ele se torna um boneco e objeto da manipulação de seus criadores, que são todos os seus contemporâneos, leitores do Quixote.

Para Quixote todas as coisas do mundo, tal e qual as vemos, só existem como correlatas das coisas existentes nos livros de cavalaria, da mesma forma que para as pessoas que estão nesse mundo, dom Quixote de carne e osso só existe como signo e homem de papel, como personagem das aventuras do engenhoso fidalgo, criado por Cervantes. Assim o desconcerto do mundo vai se dilatando e se aprofundando, e há uma completa inversão de todos os valores e sentidos. A contrafação da contrafação e a cópia da cópia se oferecem como a única verdade plausível, com tais ardis que dificilmente podemos provar o contrário. Porque sugerir que toda verdade só existe dentro dos limites da ficção e que há uma completa reversibilidade entre elas é o mesmo que dizer que nós, eu e você leitor, não existimos de fato. Somos tragados pelo livro e transformados pela pena maligna de Cervantes em um enunciado. Em outras palavras, e para falar com Borges, se os personagens são reais e existem — é possível que nós não existamos e não o sejamos. E aqui a tela As meninas de Velázquez pode ilustrar plasticamente um conceito metafísico: a representação nos coloca do lado de dentro do espelho e conseqüentemente do lado de fora do mundo. Ela se oferece como verdadeira realidade, e só assim eterniza aquele instante delicado da vida da pequena princesa. Mas a sua eternidade custa a nossa vida e para saboreá-la pagamos o preço de nos tornarmos fantasmas.

Muitos podem pensar que tudo na obra de Miguel de Cervantes seja um mero jogo que pretende restaurar um velho ceticismo. Mas felizmente não é. E a profundidade dessas águas só vai se revelando aos poucos, no decorrer da ação, episódio a episódio vai sendo construída por uma inteligência diabólica com uma pena impecável. E aqui entra outro aspecto interessante. No final da obra, dom Quixote volta vencido de Barcelona para sua vila, após travar um duelo com o cavaleiro da Blanca Luna, no qual penhora nada mais nada menos do que o próprio exercício da cavalaria. Esse cavaleiro lhe é bastante familiar, embora esteja encapuzado e o herói não o reconheça. É seu vizinho e amigo, o licenciado Sansão Carrasco. Forjou essa mentira para devolvê-lo à sua sobrinha e tirá-lo de vez da vida perigosa da cavalaria andante à qual sua loucura o havia conduzido. Quixote volta para a casa menos confiante na sua missão do que saiu, e de certo modo desencantado e sem tanta convicção nos encantadores, em Dulcinéia, nos dragões e em tudo mais. Nós, seus leitores, pelo contrário, sofremos a sensação contrária: ao fechar o livro pouca coisa sobra ao redor que se mantenha íntegra e imune à corrosão cáustica de uma lucidez que não pode e não quer enxergar o mundo de outra forma. Desmonte após desmonte, desconstrução após desconstrução e máscaras que se sobrepõem a máscaras. Enfim somos donos de uma lucidez que nos possibilita ver o quanto o mundo ainda está aquém de si mesmo e o quanto a fantasia que lhe ultrapassa só serve como evasão e paliativo para a nossa mais gritante miséria.

Das traduções

Longe daquela falácia positiva de que o tradutor seja um traidor podemos respirar em paz. E só assim analisar as várias edições do Quixote que ora saem do prelo à luz de conceitos mais interessantes do que os de transcriação, apropriação, fidelidade, neutralidade, ou daqueles arrazoados que querem fazer da tradução um equivalente da criação, como se ao traduzir Cervantes fôssemos Cervantes, sofisma agradável em um conto de Borges, mas de péssimo gosto e cheio de ares cabotinos quando posto em prática. A melhor definição de tradução que conheço é de Paul Valéry: a tradução não verte o sentido do original, mas o seu efeito. No interior do efeito o sentido já vem embutido, já que a arte aspira ao belo e não à verdade. Quando muito quer a verossimilhança, que é um simulacro da verdade.

De todas as edições, a publicada pela Editora 34, com tradução de Sergio Molina, é de longe a melhor. Além de bilíngüe e anotada, Molina oferece uma nova leitura do Quixote em língua portuguesa, e redefine os sentidos do original a partir de um léxico fresco e acessível ao leitor. Não digo que sua tradução esteja mais próxima do original. Em primeiro lugar porque isso não quer dizer grande coisa. Em segundo, porque poderia gastar bastante tempo, papel e toda a paciência do leitor demonstrando que a originalidade é uma ilusão dos sentidos. A não ser que se parta do princípio de que a obra são as milhares de palavras impressas sobre o papel em cuja capa se lê: Dom Quixote de la Mancha. Crer nisso é crer que todo poema seja um epitáfio de seu autor. Mas digo sim que cada tempo cria o seu Quixote, e dentro desse tempo — cada tradutor. Sergio Molina quis verter a obra tendo em vista esse recorte sincrônico, mas também dirimindo as limitações de algumas leituras passadas e se valendo de pesquisas que conferissem adequação histórica e decoro a suas escolhas. Notamos isso em exemplos aparentemente simples, como na tradução da palavra palacio, que é um correspondente espanhol do árabe alcácer, e Molina mantém palácio, pela significação histórica dessa palavra dentro do contexto mourisco espanhol e da importância gritante da cultura árabe dentro da obra do autor de Alcalá, em oposição a castelo, que é uma forma neutra, genérica, que diz respeito tão-somente à edificação dos reis. Esse é só um aspecto entre outros. E além desses detalhes, o livro conta com estudo introdutório de Maria Augusta da Costa Vieira, uma das maiores especialistas em Cervantes do país, e com as velhas ilustrações de Gustave Doré, que se não são das melhores são no mínimo oportunas.

A editora Hedra vem se notabilizando pela publicação de obras excelentes, muitas raras ou fora de catálogo, outras relativas a estudos literários e artísticos de altíssima qualidade e de pequena circulação. Esse trabalho também contempla a reedição comentada de traduções e tradutores importantes da língua portuguesa, e é esse projeto que lançou as Metamorfoses de Ovídio em tradução de Bocage e agora lança o Quixote dos viscondes de Castilho e Azevedo, publicado pela primeira vez em 1876. Essa tradução tem grande interesse para a história da recepção do Quixote no século 19 e serve para relativizar muitos critérios de gosto ou fidelidade ao texto que possamos ter. Mas para quem procura algo semelhante ao prazer que só o corpo a corpo com o texto cervantino oferece, essa edição oferece muitos problemas. A começar pelo fato de ser a mesma tradução que circulou pela editora Abril durante um bom tempo, e obstou a muitos leitores penetrar esse universo ficcional imperdível, incapazes de desfrutar da prosa melíflua e ao mesmo tempo simples de Cervantes por causa das torções sintáticas e do léxico precioso dos viscondes. Nada mais estranho a Cervantes, que dizia escrever da mesma maneira que falava, ou seja, sem muitos artifícios e com o mínimo possível de ornamentos. A título de comparação, temos a Divina Comédia de Xavier Pinheiro, do final do século 19 e com prefácio de Machado de Assis, e a de Cristiano Martins, publicada por volta dos anos 50 do século 20. Entre essas duas, um fato: a de Martins conseguiu de tal forma dar precisão, simplicidade, clareza, contenção e fluidez à poesia de Dante que tornou a de Pinheiro praticamente ilegível. Cada época cria o seu Quixote —eu disse. Talvez tenha faltado acrescentar uma coisa: cada época cria também os limites de leitura dos Quixotes passados. E nisso reside a malícia da proposição. A edição da Hedra traz também estudo de Nicolau Scevicenko e ilustrações raras de Salvador Dali.

Algo semelhante já tinha ocorrido com o Quixote de Almir de Andrade e Milton Amado, que, em relação ao dos viscondes de Castilho e Azevedo, deu maior contenção e simplicidade à prosódia de Cervantes, e a Ediouro relança agora em edição de luxo. Mas o fato vem se repetir com a nova leitura proposta por Molina, a meu ver a melhor de todas. Nesse movimento, a editora Revan lança também uma adaptação do clássico da literatura espanhola, assinada por Ferreira Gullar. O autor dessa versão dispensa maiores apresentações, e nos oferece um trabalho de qualidade em âmbito didático, similar ao que já tinha feito com outros clássicos, como as Fábulas de La Fontaine. Uma série de dons Quixotes caminhando em um mesmo tempo cruzam as fronteiras do esquecimento e de lança em riste parecem provar que a poesia decididamente venceu a história. E com isso nos mostram outra verdade mais preciosa: que esta mesma história é diversa, múltipla em seus registros, inapreensível por qualquer tipo de rótulo, e que as obras humanas não se superam, apenas se sucedem. Afinal, o fato de sermos contemporâneos não quer dizer que vivamos em um mesmo tempo. Felizmente. Viva Miguel de Cervantes.

Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho