Poder criar destinos deve ser uma das principais vantagens do escritor. Fazer com o personagem — que sai de sua cabeça e pousa em uma tela ou num papel em branco — o que bem entender. Sentir-se um deus. Ter o controle da vida e da morte — e até mesmo além dela, em alguns casos. Nada que não queira ficará impresso. Nem no papel, nem na personalidade das criaturas. Brincar de deus é bacana. E, para isso, escrever é bem menos perigoso do que dar uma de cientista louco, criar um Frankenstein incontrolável e acabar perseguido ou morto, sabe-se lá.
Tudo é permitido quando se tem uma lauda em branco pela frente. Por isso as pessoas que têm o domínio (e dom, por que não?) da escrita inventam amores impossíveis, viagens pelo mundo, fantasmas, reis, escravos, prostitutas, milionários, assassinos. Ou pessoas comuns, que têm vidas comuns, ambições comuns e amores comuns.
Mauro Pinheiro inventou um desses. Pedro Paulo tem uma vida bem enfadonha em Quando só restar o mundo. Um tédio quase letal, como o de milhares de pessoas a sua volta. Trabalhava no mercado financeiro, no Rio de Janeiro. Tinha uma vidinha medíocre, em cores pastéis, com trilha sonora repetitiva e sem graça. Era um homem com destino marcado. Seria eternamente descontente com o trabalho — era preguiçoso demais para sair do emprego, por mais que detestasse tudo aquilo — e o último homem da estirpe Vergueiro Chagas — todos varões de sua família tinham problemas de fertilidade; quando conseguiam engravidar suas mulheres, namoradas ou amantes, só vingavam os menininhos. Mas nem foi por isso que Dalva, a namoradinha, deu no pé. Ela só quis arriscar coisas mais interessantes na Bahia. Ele preferiu ficar quieto em seu canto.
O desemprego rondava sua porta, como a de milhares de pessoas a sua volta. Ele não deu muita atenção. Pelo menos até que a corretora em que trabalhava fechasse as portas. Foi só então que tomou uma decisão que parecia poder mudar tudo o que já estava escrito em seu destino ordinário. Pegou o carro e resolveu ir para a Bahia atrás da namoradinha.
As primeiras 30 páginas do livro levam a um mundinho bastante conhecido da maioria dos leitores. Algo como “Como é chata a vida de quem tem de trabalhar onde não quer para ter um mínimo de dignidade ao envelhecer e poder viver o que não pôde na juventude”. Não é muito original, mas é honesto, coerente. Em nenhum momento se pretende uma obra profunda ou intelectualóide. É literatura de entretenimento. Agradável.
Há poucos personagens importantes na história: Pedro Paulo, Serena e Jeferson. Os dois últimos, na verdade, são a escada para que o protagonista encontre um rumo na vida — apesar de os dois (mãe e filho) o levarem por caminhos tão tortuosos quanto reveladores — mais para Pedro Paulo do que para os leitores. Mas há muitos secundários que ajudam a obra ficar mais interessante. “Adriano morava no quarto andar de um prédio antigo a uma quadra da praia. Quando entrei, estava sentado à mesa e cortava fotos de umas revistas. Perguntei o que estava fazendo e o velho me disse que era exatamente aquilo que eu estava vendo: recortando fotos de revistas” (p. 12)
No decorrer da trama, o que se vê é a transformação do protagonista. De um homem sem perspectivas e com um destino monotonamente branco e preto, passa a herói e articulador de grandes planos de fuga. É que, enquanto vai do Rio de Janeiro para a Bahia encontrar Dalva, a namorada, o moço esbarra na morenice sensual de Serena. Na verdade, esbarra mesmo no filho dela, Jeferson, um garotinho simpático e conversador. Resolve dar carona para a duplinha.
Arrepende-se já no início, quando descobre que a mulher está sendo perseguida. Imagina que possa ser um ex-marido ciumento ou alguma coisa a ver com drogas. As duas coisas, na verdade. Quer abandonar mãe e filha em alguma cidadezinha qualquer no meio do caminho. Mas não consegue. Ou não quer. Resolve, então, aproveitar a chance para tomar atitudes inusitadas. Pegar as rédeas da situação e dominar o tal destino estéril. “A partir desse dia, livres dos mosquitos, das lanhas do mato e da ira do sol na pele começamos uma fase de harmonia com a selva. Acordávamos cedo e comíamos aipim, tomando um café mal filtrado em uma velha camiseta. […]” (p. 104).
Não há como negar que toda essa situação evoque a empatia entre o personagem e o leitor. Afinal, todo mundo já deve ter sonhado em dar um rumo diferente para sua vida. Encontrar um grande amor em uma viagem sem destino certo, viver uma aventura, se dar muito bem numa fuga alucinante — mesmo sem saber dirigir assim tão bem. E isso é o que faz o leitor continuar acompanhando o protagonista. A vontade de saber o que o criador reservou para sua criatura. Ou o que ela vai fazer quando só restar o mundo.