Contrabandistas na rua de mão única

Comunicado apresentado no Festival Vida & Arte, realizado em Fortaleza em janeiro deste ano.
01/02/2003

Faz algum tempo que uma idéia implicante e fora de hora começou a me aporrinhar e, desde então, não tem me deixado em paz. Cada vez que me distraio, olha ela aí à espreita. Essa idéia diz respeito à literatura brasileira de modo geral, mas o que mais me incomoda nela é sua componente mais próxima, que se refere à literatura brasileira contemporânea. Mais precisamente, à literatura que tem sido feita pelos escritores da minha geração. Penso que a melhor forma de apresentar e dissecar essa idéia fixa é prendendo-a com alfinete, feito borboleta, no quadro de avisos, para que todo o mundo a veja. É enfiando-a numa pergunta muito simples e até singela: por que a literatura brasileira contemporânea é tão pouco traduzida e lida no exterior? Antes de seguir em frente, vamos fechar um pouco esse conceito de exterior: o planeta é imenso, por isso fiquemos restritos apenas à Europa e às Américas.

Muita gente — inclusive muitos escritores — ainda acredita na tola certeza difundida por nossos pais e avós, certeza que rezava que a determinação pessoal e o trabalho bem feito mais cedo ou mais tarde são sempre reconhecidos e premiados. “Dê duro na vida, meu jovem, porque só assim você sairá vitorioso.” Outra certeza muito difundida tempos atrás e ainda hoje em voga é a de que todos os profissionais de sucesso são talentosos: “Se fulano ganha cinqüenta mil reais por mês é porque ele é excelente profissional”. No entanto, sabemos de muitos profissionais que deram duro na vida e jamais saíram do lugar e de outros tantos que, apesar da remuneração milionária, não passam de picaretas. Mas por ora vamos deixar de lado o sucesso financeiro, tão raro no mundo dos bons livros, e trabalhar apenas com o sucesso autoral, que se traduz sempre em respeito irrestrito por parte da comunidade intelectual. Transplantando as duas crenças mencionadas para o mundo dos livros, temos o seguinte enunciado: “Se tal escritor é famoso e bem-sucedido, é porque tem talento e trabalha duro”. É esse argumento, porém invertido, que está na base de todo julgamento mais severo quanto ao valor de nossa atual literatura. Ou seja, quando certos críticos dizem que no Brasil, depois de Drummond e Cabral e Rosa e Clarice, não apareceu mais ninguém de valor, eles estão se baseando no fato de que, se quase ninguém da geração mais nova tem obtido sucesso com seus livros, então é porque os integrantes dessa geração não têm talento nem estão se esforçando muito, conseqüentemente seu trabalho não vale nada mesmo. O raciocínio é límpido, qualquer débil mental está apto a entendê-lo. Por isso mesmo é tão rasteiro. E pensar que tudo começou com a premissa: “Dê duro na vida, meu jovem, porque só assim você sairá vitorioso”. Por mais que o esforço e o trabalho árduo sejam a única forma de se atingir o sucesso, muito cedo ficou claro para mim que ao sucesso não interessam todos os indivíduos que se matam de trabalhar. O sucesso é osso duro de roer, não pensem vocês que bastam ir chegando assim, sem mais nem menos, com as mãos calejadas e o rosto sujo e suado. A primeira coisa que o demônio do sucesso faz, quando os maratonistas finalmente cruzam a linha de chegada, é revistar seus bolsos. À procura de quê? Da sorte, claro. O sucesso — assim como Zeus, Jeová e Alá — só premia os que lhe pagam pedágio, e a moeda corrente, nessa esfera de realizações, é a frágil e dissimulada sorte. Talento e perseverança são sempre importantes, mas só se vierem junto com o beijo benfazejo do destino: a sorte. No caso do escritor, ter sorte não é apenas encontrar um bom editor com um bom sistema de distribuição, ou receber uma polpuda herança que lhe permita escrever em tempo integral. É algo que vai muito além disso. Algo impalpável e enigmático, difícil de se definir.

Outro erro grosseiro dos leitores mais ingênuos é acreditar que tudo o que é mau fatalmente vai parar na lixeira e tudo o que é bom jamais é esquecido. Para esses leitores, toda obra literária, desde que de qualidade, mais dia menos dia acaba sempre reconhecida e incensada por todos os críticos do país. Não aconteceu com Machado? Não aconteceu com Bandeira? Então! Eu sei, os críticos às vezes se atrasam. Foi o que aconteceu com Sousândrade e Oswald. Ah, mas apesar de tardarem não falham nunca! Por isso, podemos dormir tranqüilos. Se determinado romance ou poema não está nas livrarias, é porque não merece estar lá. Se está lá, é porque hoje, graças aos críticos que nos abriram os olhos, ele tem qualidades tão visíveis que até os cegos conseguem perceber.

São essas duas premissas furadas, de natureza religiosa — a certeza de que todo esforço é sempre premiado e a de que toda obra-prima é sempre reconhecida —, que, a meu ver, têm atravancado o ingresso da literatura brasileira na Europa, nos Estados Unidos e nos demais países latino-americanos. Essas premissas nos induzem a crer que nossa literatura recente não tem valor, caso contrário o mundo todo já teria se curvado diante dela. Afinal, certa justiça impera no planeta, ao menos no campo artístico. Afinal, pessoas cultas e sensíveis jamais permitem que fatores lingüísticos, étnicos e econômicos interfiram no seu modo de se relacionar com a arte. Afinal, o gênio humano não conhece raça nem nacionalidade, é algo que paira acima das questões menores, cotidianas, a que só a plebe ignorante dá atenção. Afinal, os leitores mais refinados da França, da Alemanha e da Itália estão sempre atentos ao que acontece no mercado editorial do mundo todo. Estão sempre atentos porque são fanáticos por boa literatura e não querem perder nada, nadinha. Estão sempre atentos — a atenção triplicada — principalmente ao que acontece nos países subdesenvolvidos, de onde quase não chegam notícias. Por isso estudam português, búlgaro e coreano. Estão sempre atentos ao que acontece nos países subdesenvolvidos porque se algo de valor surgir aí, sem que ninguém perceba, jamais, repito, jamais, como todo fanático que se preze, irão se perdoar por isso.

Refém da realidade
Antes de começar a redigir este depoimento eu conversei com alguns profissionais da área editorial: dois editores, dois agentes literários brasileiros e um agente literário italiano. Para que se sentissem à vontade para soltar a língua sem medo, prometi sigilo absoluto quanto às identidades. O importante é que são cinco profissionais que anualmente participam das principais feiras de livro do Ocidente, seja comprando seja vendendo títulos (do lado brasileiro, mais comprando do que vendendo, claro). As três perguntas que fiz a eles, básicas para se entender o problema, foram:

1. A boa literatura americana e européia entra mais facilmente no Brasil do que a boa literatura brasileira entra na Europa e nos EUA: isso para você é fato ou folclore?
2. Qual gênero ficcional as editoras estrangeiras mais procuram (quando procuram) no Brasil: romance, conto, poesia ou infanto-juvenil?
3. O que nós, jovens escritores, podemos fazer para que nossa literatura seja traduzida e lida na Europa, nos EUA e até no restante da América Latina?
Reunindo todas as respostas, peneirando as impurezas e eliminando as

Reunindo todas as respostas, peneirando as impurezas e eliminando as coincidências e redundâncias, o resultado geral foi a gritante unanimidade: a literatura brasileira, produzida num país subdesenvolvido que não tem sequer a sorte de falar um dos dois principais idiomas do momento, o inglês e o espanhol, é a maior refém da perversa realidade econômica de sua terra natal. Está mais do que claro que, no mundo globalizado, literatura e hortifrutigranjeiros, carne bovina e produtos manufaturados são a mesma coisa. A Terceira Guerra Mundial, essa que estamos vivendo, está sendo tratava no ministério da economia, nas bolsas de valores, nos portos e nas alfândegas dos diversos países em conflito. A ordem é exportar o máximo possível e importar o mínimo, nem que para isso seja necessário desmerecer o produto do concorrente, taxá-lo de todas as maneiras, trapacear e sabotar. Laranja, sapatos, livros: tudo isso é munição na guerra por novos mercados.

Nessa contenda de formato contemporâneo, contar com a boa vontade do inimigo é o cúmulo da ingenuidade. Os profissionais com quem conversei me alertaram para a questão da língua e da falta de infra-estrutura por parte das editoras brasileiras. Uma vez que o português não é muito falado na Europa, quando os editores de lá recebem livros nesse idioma ficam sem saber o que fazer com eles, pois encontrar quem os leia sai muito caro. Traduções do inglês e do espanhol, por exemplo, não custam tão caro quanto traduções do português. Por isso, no mercado editorial internacional até os japoneses se saem melhor do que nós, porque o Japão possui a estrutura editorial adequada, que faz com que seus livros já cheguem parcialmente traduzidos às mãos dos editores europeus. No nosso caso o que acontece? As editoras de pequeno e médio porte não têm cacife nem para investir pesadamente em literatura, quanto mais para bancar a apresentação de seus ficcionistas no exterior. Para quem não sabe, o dossiê de apresentação consiste em resumo da obra e pelo menos dois capítulos (no caso de romance), biografia do autor e resenhas da obra publicadas na imprensa, tudo traduzido para o inglês ou para o espanhol. Isso significa sempre mais investimento do que o desejado.

Já as editoras de grande porte, acostumadas a lançar pelo menos meia dúzia de novos autores todo ano, quando vão ao Salão do Livro de Paris, à Feira do Livro de Londres ou à de Frankfurt, levam na bagagem, devidamente apresentados, apenas seus títulos mais bem-sucedidos comercialmente. Essas editoras estão carecas de saber que a qualidade literária vem muito depois do demonstrativo de vendas. Se tal romance não teve boas resenhas, mas vendeu cem mil exemplares e foi adaptado para o cinema, esse interessará aos editores internacionais. Mas se tal romance, apesar de ter tido excelentes críticas, vendeu só mil exemplares, esse está fora. E está fora não só por ter vendido mal, mas também por se tratar de obra muito sofisticada e cheia de sutilezas difíceis de serem traduzidas. Os livros que, depois de saltar todos os obstáculos, conseguem fecundar o mercado europeu e o americano são os que alimentam e realimentam a idéia pré-fabricada que o Primeiro Mundo faz de nós. São os romances entupidos de anedotas exóticas e pitorescas sobre traficantes, favelados, índios, pais-de-santo, bruxos, sambistas e prostitutas. Assim, perpetua-se fora do Brasil o conceito de que aqui não há escritores talentosos, de estilo refinado, em sintonia com outras realidades menos estereotipadas. Perpetua-se o lugar-comum de que aqui há apenas, na melhor das hipóteses, bons contadores de histórias, ótimos resenhistas da miséria e do crime. O outro lado da moeda, em que aparece o Brasil mais civilizado e onde estão os nossos engenheiros, arquitetos, cientistas e políticos competentes, este lado não interessa.

O primeiro passo para que nossa literatura seja respeitada e consumida na Europa, nos Estados Unidos e no restante da América Latina é justamente quebrar esse círculo vicioso. É mostrar, nem que seja à força, que literatura brasileira é muito mais do que a representação grosseira e banal da malandragem que caracteriza o povo, da fome no Nordeste e das chacinas nas periferias. É mostrar que a briga é entre pugilistas da mesma categoria, que a nossa inventividade literária vibra na mesma freqüência da inventividade do resto do mundo, que a rua tem que ser de mão-dupla e não este beco sem saída que conhecemos bem.

Guerrilha e contrabando
Chegamos finalmente à idéia fixa sobre a qual falei no início, que diz respeito exatamente a este estado de coisas. Tenho lido os novos autores que surgiram do lado de lá do Atlântico — Nick Hornby, Will Self, Michel Houellebecq e quejandos —, também tenho lido as mais recentes revelações da América Hispânica, tipo o chileno Alberto Fuguet e o uruguaio Rafael Courtoisie, e, sinceramente, não tenho dúvida de que a nossa prata é do mesmo valor. Por que, então, essa rua de mão única? Por que o desinteresse das editoras estrangeiras? Por que quase nada do que é publicado aqui acaba traduzido, lido e estudado no exterior? Briga de mercados, com certeza. Para muitos, globalização é isso: a Europa e os EUA nos vendem seus livros e… Nada de e, o acordo pára por aí. Como fazer com que nossa melhor literatura vença as barreiras alfandegárias, a flutuação cambial e a desvalorização monetária infligidas a ela pelos europeus, norte-americanos e demais sul-americanos? Já que não podemos contar com as editoras, penso que nós mesmos é que devemos arregaçar as mangas e partir para o ataque. Penso que devemos nos tornar guerrilheiros ou contrabandistas e agir sincronizadamente. Para cada Houellebecq que entrar no Brasil, temos que dar um jeito de contrabandear um Marcelo Mirisola, ou um Luiz Ruffato, ou um Marcelino Freire para a França. Para cada Hornby que der as caras por aqui, temos que enfiar um Altair Martins, ou um Jorge Pieiro, ou um João Anzanello Carrascoza na Inglaterra. Para cada Fuguet que se escafeder para cá, temos que catapultar um André Sant’Anna, ou um Ronaldo Bressane, ou um Joca Reiners Terron para o Chile. E assim por diante, sem titubear.

Eu sei, se comparada com a literatura de vinte, trinta anos atrás — quando os gigantes ainda andavam sobre a terra —, a dos moços de hoje não parece ser das melhores. Mas isso vale para o mundo todo, não só para o Brasil. Se não temos mais Guimarães Rosa nem João Cabral de Melo Neto, a Europa, os EUA e o restante da América Latina também não têm mais Samuel Beckett nem Italo Calvino nem Julio Cortázar nem Eugenio Montale. Se olharmos com atenção, veremos que o mercado editorial brasileiro nunca esteve melhor: temos bons autores, boas editoras e, vá lá, o pequeno mas merecido público que nos prestigia. O problema é que escrevemos para nós mesmos, geração após geração, como se vivêssemos numa imensa bolha que jamais se rompe. Minha idéia fixa me aporrinha para que eu vá atrás justamente de formas alternativas de se estourar essa bolha.

Quando digo que nós mesmos, escritores, é que devemos arregaçar as mangas e ir à luta, isso significa buscar caminhos tortos para que nossa literatura chegue a outros países. Tenho pensado seriamente em, a partir de agora, começar a publicar edições bilíngües — em português e espanhol — de meus livros. Dessa forma eu teria como dialogar com os outros escritores de minha geração, ao menos na América Latina e na Espanha. Mas sei muito bem que vai ser difícil convencer um editor a bancar esse projeto, por isso não descarto a possibilidade de eu mesmo editar o primeiro livro. Pagaria alguém para traduzir os textos, faria uma tiragem pequena, de quinhentos exemplares, e a usaria como cartão de visita. Enviaria o livro às boas revistas literárias de língua espanhola, aos novos escritores de talento que estão surgindo por aí, no México, na Argentina, no Chile. Seria um investimento a fundo perdido, como todos os investimentos de poetas e prosadores que vivem se autoeditando do Oiapoque ao Chuí. Essa é o tipo de atitude que só dará certo a longuíssimo prazo, sei disso, mas vale a pena tentar. E se mais e mais autores comprarem essa briga, nosso movimento, mesmo feito assim improvisadamente, vai ficar muito parecido com as ações guerrilheiras, mas sem mortos nem feridos.

Eu trabalho numa pequena editora, chamada Callis, que todos os anos participa das feiras internacionais do livro. Nosso catálogo é exclusivamente de títulos infanto-juvenis, mas Miriam, a dona da empresa, cansada de ser questionada pelos colegas estrangeiros sobre a nova literatura brasileira, pensou em fazer o seguinte este ano: aproveitar sua ida à Feira de Guadalajara e levar também um catálogo só com os novos contistas e romancistas brasileiros. Assim poderia apresentá-los condignamente — com foto, capa dos livros, pequena biografia em espanhol e assim por diante — e oferecê-los, a princípio, aos editores de língua espanhola. Miriam propôs isso aos sessenta e tantos pequenos editores da Primavera dos Livros, evento anual restrito a São Paulo e ao Rio de Janeiro, do qual a Callis participa. Boa parte deles topou. Miriam não está cobrando nada por isso nem quer comissão alguma, quer apenas que no futuro a avisem caso fechem negócio, só para saber qual foi o resultado da cartada. Talvez não dê em nada. Ao menos foi uma tentativa coletiva de furar a bolha, algo mais valioso até do que as tentativas individuais.

P.S. Antes que me esqueça, segundo a enquete que fiz o gênero predileto dos editores internacionais é mesmo o infanto-juvenil. Em segundo lugar vem o romance. Poesia, essa nem pensar.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho