Aviso: vou sair em defesa de Saramago. Quem não gostar que pule fora agora. O velho português tem recebido cacetadas de todos os lados, muitas delas injustas. Parece haver por aí uma sina do Nobel. O escritor que ganha o prêmio deve se aposentar, ou leva chumbo em tudo o que publica ou fala. No caso de Saramago, que já tinha uma militância política e filosófica antes do Nobel, o chumbo vem ainda mais grosso.
Há uma grande incoerência nisso. Nos últimos anos, a classe literária tem criticado a academia sueca, acusando-a de premiar alguns escritores mais pela militância política que pelo talento. Bem, mas se um escritor foi colocado neste rol pela própria crítica, nada há mais que se esperar dele que continue botando a boca no mundo, principalmente com o respaldo do Nobel na prateleira. Não é de hoje que José Saramago, um comunista radical, expõe suas agudas opiniões. Com o Nobel, é natural que seja ainda mais requisitado para fazê-lo. E com o dinheiro do prêmio, sobra tempo para isso, já que não mais precisaria ganhar a vida escrevendo. Assim, o autor português pode gastar seus dias metendo o dedo em feridas como terrorismo, religião e os conflitos no Oriente Médio. Certo ou errado, o fato é que o português irrita muita gente com isso.
O mais engraçado é que, antes do Nobel, poucos davam bola para as opiniões de Saramago. É incrível que uma obra simples como A caverna (Companhia das Letras; 2000) tenha gerado mais debates que O evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras; 1991), de longe seu livro mais polêmico. A diferença é que A caverna veio depois do Nobel, razão suficiente para ser recebido com pedras na mão pela crítica.
Aliás, o debate sobre A caverna foi, na maioria das vezes, extremamente equivocado. A crítica buscava sempre o cunho político-social-econômico do livro, transformando o shopping center no centro das discussões. A obra foi resumida a viver em segurança e conforto dentro do shopping, ou em dificuldades fora dele. O próprio Saramago viu-se obrigado a dar o alerta, dizendo que A caverna era um romance de sentimentos simples, focado nas pessoas, independentemente se estavam dentro ou fora do shopping. E as ações principais e os personagens mais instigantes de A caverna estão realmente fora do centro comercial.
A polêmica que se tentou buscar em A caverna estava longe do shopping center. Antes dele, e muito antes do Nobel, Saramago escreveu a obra que realmente deveria ser discutida além do aspecto literário. Em O evangelho…, o autor fez Jesus Cristo casar com uma prostituta e disse que Maria não era virgem, descrevendo inclusive o momento em que Jesus foi gerado. Na época, diante da ameaça de excomunhão por parte da igreja católica, Saramago contra-atacou, afirmando ironicamente que não poderia ser excomungado, pois nunca pertencera a igreja nenhuma.
Mesmo com toda essa combustão, Saramago queimou-se menos com O evangelho… do que com A caverna e o recente lançamento de O homem duplicado, que tem recebido uma saraivada de críticas desfavoráveis.
É a sina do Nobel. O laureado é alvo de um olhar crítico dos mais pesados, quase que uma punição pelo prêmio. Até parece que se espera que um premiado escreva sempre obras-primas. Outra incoerência. Numa avaliação fria e lógica, se um autor recebe o Nobel é porque já escreveu seu melhor livro, ou porque o conjunto de sua obra tem o valor de uma obra-prima. Afinal, o Nobel não premia revelações. Sendo assim, um autor que levou o Nobel, com raras exceções, dificilmente escreverá algo melhor do que já tenha feito. Pode até fazer igual, mas melhor é difícil.
Saramago não foge dessa regra. Seu trabalho pós-Nobel é bom, mas não no mesmo nível de livros que o consagraram, como os excelentes O evangelho… e Ensaio sobre a cegueira (Companhias das Letras; 1995). Saramago tem uma carreira literária regular, provavelmente a mais consistente entre todos os premiados pelo Nobel nos últimos dez anos. Pode-se até discordar de seus pensamentos filosóficos e de suas crenças políticas, mas não há como negar-lhe um lugar entre os principais autores da atualidade. Também não há como acusá-lo de fazer algo diferente do que vinha fazendo antes de receber o Nobel. Saramago continua o velho ranzinza que sempre foi. Um escritor cuja essência está no estilo, em que a linguagem está acima da obra. E daí? Contanto que a obra seja boa, vale o esforço de uma leitura mais exigente.
O problema é que o Nobel parece gerar uma justificável inveja coletiva inconsciente. Afinal, quem não gostaria de embolsar um milhão de dólares? Essa inveja torna-se maligna quando se transforma num concurso de encontrar defeitos. E defeito é o que se consegue achar mais fácil na análise de um livro, seja qual for o autor. Até porque, em literatura, o que parece ser defeito para uns pode ser virtude para outros. O que não é defeito é um autor escrever um livro melhor ou pior que outro, o que também não significa que um desses livros seja ruim. No caso de Saramago, não há livro ruim, antes ou depois do Nobel. Em sua obra, há livro pior ou melhor que outro. Mas é injusto julgar o autor apenas com este tipo de comparação.
Se sobre A caverna a discussão equivocada colocou em dúvida a intenção de Saramago, com O homem duplicado é seu talento que está sendo chamado à prova dos nove. E na maioria das vezes a conta está errada.
Assim como A caverna, O homem… é um bom livro. Não é excelente, mas é bom. E ser um livro bom nos dias de hoje significa ser melhor que 90% do que se publica na indústria editorial, tão padecida. Ou seja, se é um livro bom, merece ser lido. Se é um livro bom de um autor que ganhou o Nobel, merece mais ainda ser lido. E para a maioria dos brasileiros, a oportunidade de ler um Nobel sem tradução é única e um bom motivo para debruçar-se sobre tudo que Saramago publica.
Mas O homem… não é bom apenas pela grife Saramago na capa. Para quem abre o livro em busca de qualidade, com certeza a encontrará, mesmo que por um caminho às vezes tortuoso. Saramago não é um autor dado a facilidades para com o leitor. Seu apego à linguagem é tão grande que resulta num esmero irritante a princípio, mas encantador à medida que o leitor desvencilha-se de suas teias. Saramago sempre foi assim. Chegou ao Nobel dessa forma e não seria após o prêmio que faria concessões.
O que irrita os críticos de Saramago é a sua paciência com as palavras. O texto é lento, sempre à espera do vocábulo ideal. Saramago prefere adiar a continuidade da trama enquanto busca a frase perfeita. Você pode talvez odiá-lo pelo excesso de vírgulas, mas tem que curvar-se à excelência que seu texto concede à língua portuguesa. Saramago mantém em O homem… esta mesma excelência que está presente em todas as suas obras. (“Mas nós não nos amamos, Talvez não, Pode vir a odiar-me, Talvez sim, Ou odiá-la eu a si, Aceito o risco, seria mais um caso único no mundo, uma viúva que se divorciou, Mas o seu marido devia ter uma família, pais, irmãos, como posso eu fazer as vezes dele, Ajudar-te-ei, Ele era actor, eu sou professor de história, Esses são alguns dos cacos que terás de recompor, mas cada coisa tem seu tempo, Talvez venhamos a amar-nos, Talvez sim, Não creio que possa odiá-la, Nem eu a ti.”)
O enredo de O homem… é um dos mais simples já apresentados por Saramago. Não há uma linha sequer que remeta ao surrado debate científico sobre a clonagem. Pelo contrário, a origem da duplicação é irrelevante no romance, que prefere a alegórica situação de um dia você encontrar alguém que seja simplesmente idêntico a você. Isto acontece com o professor de história Tertuliano Máximo Afonso, que descobre seu sósia num filme. Naturalmente que, no estilo Saramago, o encontro entre Tertuliano e seu duplicado, o ator de cinema António Claro, não acontece na primeira página. Antes disso, a vida tediosa do professor é dissecada e o leitor é obrigado a participar da busca pela identidade e pelo endereço do ator, além das divagações de Tertuliano sobre o futuro encontro com seu gêmeo. Nesse preâmbulo, há sim momentos de lentidão na narrativa, mas por baixo da linguagem arrastada permanece viva a grande expectativa do encontro entre Tertuliano e António.
Aqui, o leitor mais paciente perceberá que está sendo convidado a fazer parte da trama, a imaginar-se no papel de Tertuliano. A questionar-se sobre como estabelecer contato com uma pessoa idêntica a você, mas que nem imagina que você existe. E a esposa do sósia? O que se passará na cabeça de uma mulher que de repente descobre haver outro homem igual ao seu? Ou que encontra o sósia do marido, sem saber que ele existia, em frente a seu prédio, como nas divagações de Tertuliano:
“Imagina agora que quando estiveres a olhar as janelas te aparece a uma delas a mulher do actor, enfim, falemos com respeito, a esposa desse António Claro, e te pergunta por que não sobes, ou então, pior ainda, aproveita para te pedir que vás à farmácia comprar uma caixa de aspirinas ou um xarope para a tosse, Disparate, Se te parece disparate, imagina agora que alguém passa e te cumprimenta, não como este Tertuliano que és, mas como o António Claro que nunca serás.”
Pois o tão esperado encontro, que só acontece depois de duzentas páginas, é um surpreendente divisor de águas no romance. Os questionamentos de Tertuliano se acabam numa única derrota moral na duplicação: descobrir que nasceu alguns minutos depois de seu sósia. Ele seria a cópia, e não o original. (“António Claro pôs uma cara de pena e disse, Eu nasci meia hora antes, ou, para falar com absoluta exactidão cronométrica, pus a cabeça de fora às treze horas e vinte e nove minutos, lamento-o, meu caro, mas eu já cá estava quando você nasceu, o duplicado é você. Tertuliano engoliu de um trago o conhaque, levantou-se e disse, Foi a curiosidade que me trouxe a este encontro, agora que já está satisfeita, retiro-me,”).
Saramago impede que este seja o único desconsolo de Tertuliano com seu sósia. Ao contrário, em sua parte final o autor transforma O homem duplicado em uma gostosa historieta policial, em que não faltam acidente, morte e adultério involuntário. O desfecho do livro é instigante e com uma dose de ironia surpreendente em se tratando de José Saramago, que revela ao final do romance um humor menos azedo que o de seus críticos.