Por Paulo Polzonoff Jr. e Rogério Pereira
Alguidar, como nos mostra, entre tantos, João Cabral de Melo Neto, é um utensílio usado em tarefas domésticas: “Catar feijão se limita com escrever:/ jogam-se os grãos na água do alguidar/ e as palavras na da folha de papel;/ e depois joga-se fora o que boiar”. Pois bem: é de tal subterfúgio que nasce a coleção Alguidar, da Landy Editora, coordenada por Frederico Barbosa, que aproveita a deixa e inaugura a série de livros de poesia ao lado de seu amigo Sebastião Uchoa Leite. Vêm às ruas A regra secreta (Uchoa Leite) e Cantar de amor entre os escombros (Barbosa). A intenção deste texto era analisar ambos os livros, mas diante do pouco ineditismo dos cantares de Barbosa — o livro não passa de um amontoado de escombros catados aqui e ali em obras anteriores — deixemo-lo, por ora. Vamos, pois, ao A regra secreta.
Pintar a poesia com um verniz (de má qualidade) intelectual, mesclá-la com cenas do cotidiano — palavras de uso corrente e lugares-comuns — e tentar atiçar a sanha do leitor com enigmas injustificáveis é a essência da poesia de Sebastião Uchoa Leite, um filho que carrega nos olhos as remelas da poesia concreta. (Vejam como o casamento entre os irmãos Campos e Décio Pignatari resultou em muitos filhos; alguns temporãos). Os resquícios do concretismo são o guindaste que tenta sustentar este A regra secreta — décimo livro de Uchoa Leite, e que prova que o tempo só faz bem ao vinho e a alguns afortunados. Uchoa começou a engatinhar na poesia na década de 60 e até agora ainda não aprendeu a andar.
Mas para não tornar esta conversa aborrecida demais (como o livro em questão), nada melhor que injetarmos um personagem, para nos ajudar a entender o processo “criativo” do poeta que nasceu em Timbaúda, Pernambuco, em 1935, mas que vive no Rio de Janeiro desde 1965. Imaginemos um jovem mancebo (perdão pelo lugar-comum) de seus 15 anos a sonhar com a poesia (atire a primeira granada quem não cometeu seus versos nesta fase romântica da vida; eu [Rogério], confesso, tenho um poema concretista desta fase insana da vida — tinha apenas 13 anos, perdoem-me, por favor, quando escrevi a palavra FOME, preenchendo as letras com as palavras arroz e feijão: concretismo em sua essência. Ah!, a vergonha corrói-me.)
Mas nosso personagem é um jovenzinho de seus 15 anos. A ele é compreensível — tendo acabado de descobrir que pode juntar duas palavras numa mesma frase — que se interesse por poesia concreta, só para exemplificar. Ainda mais tendo ele, de uma hora para outra, percebido que a diferença entre o lixo e o luxo é somente uma vogal, como acontece a cada instante com todo concretista de plantão. Tudo contribui para que o jovenzinho seja corrompido, desde aquela menina ali da segunda fileira da sala de aula, de cabelos longos sem lavar e saia comprida, que adora poetas concretos e compensa cada antiverso com um beijo, até a professora que adora quando ele, o jovenzinho de 15 anos, escreve numa redação “pré-conceito” em vez de “preconceito”, porque ela tem certeza de que ele entendeu a necessidade dos prefixos (pré-fixos) na morfologia das palavras. Este encanto é compreensível num garoto a estourar espinhas no banheiro. Mas é muito incompreensível que um senhor a beirar os 70 anos se entusiasme com a ultrapassada bobagem concretista, como é o caso de Uchoa Leite. (Em tempo, a poesia de Uchoa não é toda concreta, mas a herança é uma pedra de toneladas).
Um olhar cabível, que ajuda a entender porque a poesia concreta (ainda que diluída) faz a cabeça de um senhor como o festejado Sebastião Uchoa Leite, é o histórico. Quem nasceu em 1935, aos 15 anos, via brilhar/nascer uma geração que tinha, somente na poesia, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes e Paulo Mendes Campos — só para ficar com os mais conhecidos. Se por ventura este jovenzinho de 15 anos, aspirante a poeta, se soubesse sem talento (e uma investigação não muito minuciosa basta para descobrir isso), nada mais inteligente do que silenciar a princípio, esperar a banda passar e daí sim despontar já para uma geração decadente como um tipo de precursor tardio (sic). É mais ou menos o que Uchoa Leite fez: na década de 60 enveredou pelos sonetos, mas, diante do fracasso, teve paciência (seu grande mérito) para deixar o tempo escorrer e descobri-lo, entediado, como um capim no meio do terreno arenoso.
A regra secreta já nasce torto na orelha (que ao contrário do que dizem os pobres de espírito, tem, sim, muito a dizer sobre o miolo do volume), em que somos agraciados com uma bela mostra, escrita pelo amigo Frederico Barbosa, do que se tornou boa parte da poesia hoje em dia, isto é, um monte de ecos que tentam comunicar coisa alguma. Sobre A regra secreta, é a própria orelha do livro que faz a crítica mais ferina. Escreve o amigo de viés cômico: “(…) Desde então, [Uchoa Leite] vem construindo uma obra ímpar no panorama poético lusófono, singularizada pela desarticulação do imaginário poético centrado na metaforização e pela sobreposição de imagens em que a intertextualidade irônica exerce um papel fundamental”. Ganha um brinde quem souber, exatamente, o que Barbosa quis dizer com tantos ecos e palavrinhas caçadas em teses uspianas para acadêmico dormir. Por falar nisso, não é por nada, não, mas “obra ímpar” é lugar-comum de fazer corar os mais assíduos leitores de orelha.
Revestir o livro de um pretenso “olhar crítico aguçado” é regra básica das artimanhas de Uchoa Leite: A espreita (Perspectiva, 2000) vinha adornado com uma interminável apresentação de João Alexandre Barbosa, orelha de Haroldo de Campos, e posfácio em espanhol de Adolfo Montejo Navas. Um cozidão crítico para tentar justificar a cadavérica poesia. Ao introduzir peso crítico (na opinião dele, é claro), Uchoa tenta encontrar guarida para suposta intelectualidade e enigmas desnecessários, como no poema de título sugestivo: um enigma de Ludwig, de A regra…: “Quase às vésperas da morte/ (1827)/ Ele escreveu/ (em 1826)/ Em cima do/ ‘Quarteto em fá maior opus 135’/ a anotação/ ‘Muss es sein?/ Es muss sein’/ (‘É preciso? É preciso’)/ Já totalmente surdo/ Que queria dizer/ Nosso herói pós-romântico?/ Jamais se soube”. Uchoa Leite transforma a poesia num vazio absoluto, sem lirismo, significação, objetivo, coisa alguma. Como disse o crítico inglês Terry Eagleton: “os poemas são ruins quando não carregam informação suficiente”. Uchoa Leite dedica-se à poesia da falta. E nele falta tudo.
Inesgotável é o repertório de absurdos de A regra secreta. Se a orelha já nos presenteia com tal exemplo de “criatividade” (milhares de aspas, por favor), era de se esperar que as primeiras páginas, aquelas que nos dão informações técnicas sobre o livro e nas quais o autor faz suas dedicatórias, também nos dessem algum material de pensamento. E, nisso, Uchoa Leite não decepciona mesmo. Afinal, na página 3, ele não tem pudor algum em dedicar o livro aos críticos Davi Arrigucci Jr., João Alexandre Barbosa e Luiz Costa Lima. Como ocorreu em A espreita, tal estratagema deve constar no Manual do Poeta Mirim, dos Irmãos Campos, no item “Como Receber Críticas Positivas Escrevendo Qualquer Coisa”. Vale a pesquisa: alguns destes críticos já escreveram sobre A regra secreta? Como diz aquele quadro do programa de televisão: estamos de olho.
A atitude é mais do que ingenuidade. Mostra, mais uma vez, o quanto a poesia de hoje necessita do apoio da crítica para existir, uma vez que não tem apelo próprio algum. E o quanto, para conseguir tal apoio, o poeta (termo nada exato) pode passar por cima de uma etiqueta básica. Uchoa Leite, no entanto, pode estar coberto de razão e quem sabe o próximo livro dedique-o ao Rascunho e a todos os colaboradores do jornal. Seria histórico. Pense nisso, Sebastião. Mas achamos que não merecemos tamanha deferência. Afinal, como é que ninguém pensou nisso antes, não é mesmo? Machado de Assis deveria ter dedicado o seu Dom Casmurro a Sílvio Romero. E Guimarães Rosa seu Grande sertão: veredas a Wilson Martins. Há, contudo, algo que separa estes nomes do de Uchoa Leite e do de qualquer pessoa que dedique livros a críticos: a honestidade intelectual.
E eis que viramos a página de A regra secreta como se entrássemos num desses circos de horrores. O espetáculo que temos diante de nós é muito parecido com o da mulher que vai virando um monstro. Na primeira parte do livro, Memória das sensações, Uchoa Leite mostra uma de suas intenções: enganar a quem as letras ainda são um mistério lúdico, destes que se desvendam com o tatear sobre uma peça de presunto, como na famosa propaganda. Num texto em prosa (e não venha nos dizer que é prosa poética, pelo amor de Deus!), Uchoa Leite se deleita com um recurso para lá de adolescente. Pois aqui retomamos a figura do jovenzinho de 15 anos que, assim, do nada, descobriu que podia escrever o que lhe viesse à cabeça, todas as imagens desconexas que são próprias da idade, e ligá-las umas às outras sem o auxílio desta coisa barroca e ancestral que é a pontuação. Mais tarde, amadurecido, vale acreditar que o jovenzinho descobrirá que o recurso utilizado é um lugar-comum ao qual os teóricos dão o nome de fluxo de pensamento ou fluxo de consciência. E que a ausência de pontuação não encanta nem choca ninguém (excluindo-se aí os ingênuos e uspianos, sempre atrasados, pobres). É justamente isso o que Uchoa Leite faz: escreve sem pontos, conectando palavras de duvidosa aliteração.
A mulher que se transforma em macaca nem saiu da jaula providencialmente instalada para ser rompida a qualquer momento quando Uchoa Leite, algumas páginas mais tarde, mostra a que veio realmente: ensinar os leitores de hoje a separar sílabas. Deve ser esta a real utilidade da poesia concreta. Não sabemos a quantas anda o ensino fundamental hoje em dia, mas nos lembramos bem das aulas de separação silábica (tarefa que agora o computador executa com maestria). Havia quem tivesse dúvidas nos rr e ss. Deste mal, ainda bem, Uchoa Leite não padece (às vezes). E no poema memória das sensações 4: vertigo 3, ele mostra que, aos oito anos de idade, mais ou menos, prestou bastante atenção ao que a professora lhe ensinara: A/ VER/ TI/ GEM/ É/ UMA/ LIN/ GUA/ GEM/ DA/ MAR/ GEM/ OU/UMA/ FOR/ MA/ DE/ NÃO/ PO/ DER/ DA/ LIN/ GUA/ GEM/ DO/ COR/ PO. Ao que o homem sentado ali na última fileira, de cabelos espetados, diz, com um ponto de exclamação saindo da boca: “Genial”. Enquanto cá recorremos ao primeiro verso de Cabral que encontramos para não cairmos no mais profundo tédio.
É sabido de todos que a poesia concreta é um movimento assassino. Sua proposta estava em matar o verso. O que Uchoa Leite, por sinal, faz com competência (sejamos justos) dentro da proposta de gosto mais do que duvidoso, é bom lembrar. Se no poema acima citado ele mostra que sabe separar sílabas como um bom aluno de oito anos, o mesmo não se pode dizer do poema memória das sensações 6: a insídia. E o leitor procura, na ausência de uma explicação pueril, já que a infantilidade parece ser a tônica de A regra secreta, o verso. Lê-se a desconstrução da palavra (pausa para rir do jargão desprezível) a fim de encontrar algum sentido melódico no poema que tem um verso só de consoantes: ntr. Em não encontrando, lê-se crendo estar diante do nosso jovenzinho de 15 anos, aquele que não suporta mais figurar de forma pejorativa nesta crítica e que, depois desta participação, despede-se. É que só alguém que tem um processador de texto à sua frente e que não sabe o que fazer com as teclas pode compor algo como “ins/ ídi/ aco/ ntr/ aoc/ orp/ oem/ sio/ uco/ mou/ mve/ nen/ odo/ pró/ pri/ oco/ rpo”. Se ainda fosse um aforismo de grande criatividade, vá lá, mas Uchoa Leite não fez senão descobrir que juntando as letras que formam a frase e as dividindo por três, terá uma conta exata: dezessete. O que nos manda para os oito anos novamente, para aquela época em que resolvíamos os problemas do dono da banquinha de feira, lembra? Joãozinho tem dezessete laranjas. Cada laranja vale três maçãs. Se Joãozinho trocar as laranjas por maçãs, quantos poemas de Uchoa Leite terá?
Ah, que saudade da aurora de nossas vidas! Relembramos estes versos ao ler o poema A história presente, de Sebastião Uchoa Leite. Algo como: abril/ anil/ azul/ perpetuamente em festa!/ brazil?/ não tenha dúvida. Versos que nos transportam para o pátio de um colégio de freira, às segundas-feiras, geladas todas elas. Cantávamos o Hino Nacional daquele modo que só os moleques sabem cantar, fazendo paródias inventadas no domingo à noite. E o Hino da Independência, então? Aquele do japonês tem muitos filhos… Este poema (termo nada exato) de Uchoa Leite, contudo, lembra mais a música da breguíssima dupla Dom & Ravel, aquela do meu coração é verde amarelo branco azul anil, rimando com Brasil, claro. Uchoa Leite é bem capaz de dizer que se apropriou da visão policromática da nação em formação sob um prisma gilbertofreyreano e camaracascudiano (como transformam nomes em adjetivos, estes uspianos) para compor um poema que põe em dúvida o hedonismo e a soberania nacional. Ou qualquer besteira de igual monta. Para o leitor, contudo, vale a lembrança das paródias impublicáveis.
Em Variações sobre Fernando Pessoa, e não restando mais o recurso retórico de evocar o jovenzinho de 15 anos, que se despediu há alguns parágrafos, resta-nos lamentar. Um senhor com seus 68 anos ainda a evocar o lugar-comum do poeta fingidor e misturando, para tanto, um Platão de secundarista, é deveras triste. Choremos, pois. Porque fica evidente que o poeta não sabe ler a seus semelhantes sem cair na exegese da adolescência, aquela que se faz nas agendas de menina, com papéis de bala misturados a bilhetes dos namoradinhos.
Em entrevista à revista Cult de abril de 2000, Sebastião Uchoa Leite prega uma poesia menos séria. Ele reclama do excesso de reflexão que estaria vendo na poesia contemporânea, em detrimento daquilo que supõe serem as grandes “qualidades” de sua poesia, ou seja, crítica, ironia e corrosão. A questão que Uchoa Leite não consegue enxergar, contudo, não é a orientação do poeta, se mais sério ou mais cômico; é o modo como expressa tal seriedade ou tal lado palhaço. Bruno Tolentino, sério que é, assim expressa com volúpia até; por outro lado, fazendo graça, temos Carlos Drummond de Andrade, rindo da tristeza da vida que o obriga a ver pernas de mulheres. Nenhum poeta, contudo, de cara fechada ou com o riso estampado na fronte, jamais deixou de lado a lírica, a capacidade de inventar sentidos novos para as palavras e de lhes conferir ritmo, tarefa na qual Sebastião Uchoa Leite falha, ao escrever como alguém que pelas palavras nutre certo desleixo apenas. Sua infantilidade não nos remete às metáforas e ao modo de ver o mundo docemente ingênuo, do qual nos fala José Paulo Paes em célebre ensaio; é, por outra, “arte” feita pelo malandrinho lá do fundo, que escreve com a ponta do compasso na madeira da carteira. Tem o valor de uma traquinagem, somente, e não de alguém que vê o mundo com o olhar colorido do descompromisso.
É óbvio que não podemos ser injustos. A regra secreta traz um excelente poema (maravilhoso, até): O enterro de um amigo. Ah!, mas trata-se de uma tradução feita por Uchoa Leite de El entierro de un amigo, do espanhol Antonio Machado (1875-1939). Mas vale a leitura do livro. Portanto, recomendamos: arranque a página 43 (e se apreciar a poesia do também espanhol Jorge Guillén (1893-1984), fique com as páginas 49-53, e leve o poema O ar). O resto destrua em pedaços mínimos e os jogue num alguidar com água. Com certeza hão de boiar. Para sempre.
P.S. Impossível não reproduzir a explicação para a criação da coleção Alguidar. Preparem-se: “A Coleção Alguidar foi criada para apresentar ao público obras de poesia ou prosa inventiva de autores brasileiros e portugueses contemporâneos. Publicando autores já consagrados, ou inéditos de qualidade, tem como norma a exigência e o rigor. Busca revelar o vigor de uma literatura feita com inteligência, fornecendo ao público leitor da língua portuguesa o ‘biscoito fino’ que ele merece (…)”.
Então tá, né. Tragam-nos uma bolacha água e sal.