A poesia de José Kozer nasceu no exílio. Um exílio não apenas geográfico, mas lingüístico e cultural. Cuba, uma metáfora; idioma, história, clima, mitologia. O paradiso caribenho, síntese de vieja Espanha e África dos tambores, menos rum e charutos que o sentido da mistura, a vocação para a mescla. Elegia tropical, prato mulato, cabarés, santería e folhas de hortelã. Uma revolução, o busto de Martí nos selos, ruidosos alto-falantes, fardas verde-oliva e um bloqueio: claustrofobia. O poeta cubano desembarca nos Estados Unidos em 1960, diaspórico, e no entanto ele nunca saiu de Havana. Em versos longos, pletóricos, namora as imagens da Ilha: seus pássaros e árvores, seu mar escuro e as casas em estilo italiano. Um exemplo disso é o belíssimo poema Dom: “Um homem não é uma ilha qualquer, Cuba:/ é uma ilha rodeada de água por todos os lados, menos por/ um: já eram velhas as pilhérias do Velho antes de ser/ velho, se foi ao sabor do vento./ (…) houve assim mesmo alegrias/ numerosas, terraços, vime, rangidos, sonolência/ vivificante, um grande silêncio repentino atrás das/ persianas: Onan, Onan, sou rapaz. Age a Ilha em mim,/ é perpétua”.
Escrever na língua materna na rotação do traslado, sob o ritmo da máquina (puro animal) e o espectro de Whitman, novo casulo da crisálida. A borboleta: uma poética em mutação que recusa o estático, o linear, a geometria do mármore. A arte verbal de José Kozer é dinâmica, inquieta, uma dança descontínua que explora as possibilidades do movimento. Sua escritura não é tecida no espanhol clássico, casto, mas em um idioma mesclado, “impuro”, somatória de outros códigos lingüísticos, esperanto do exílio: ouvimos em contraponto o falar cubano, o hebraico da sinagoga, o iídiche familiar, o inevitável inglês de Nova York e a herança literária de Quevedo e Cervantes. Além dos timbres do shofar, das castanholas andaluzas, da guitarra habanera e do piano de blues ouvimos também ecos da língua de Rilke, Trakl e Celan. “Toda escritura é ocultamento”, disse o poeta, e precisamos descobrir, nessa floresta de signos, suas várias camadas de som e sentido. Aqui é Babel, a torre mítica, vozes no espelho da Voz.
Texto andrógino — O vocabulário de Kozer, matéria plástica, incorpora Góngora e a botânica, o Oriente e o mambo, a Cabala e o lupanar. Essa mescla, mestiçagem de termos eruditos e populares, de arcaísmos e neologismos, do léxico cubano e caribenho faz da obra de Kozer uma ópera ao mesmo tempo barroca e moderna. A sintaxe fundada nessa língua criolla é outra máscara, outra persona do autor camaleão: um tecido feito de silêncios e rupturas, de elipses e parêntesis, de frases descontínuas que fraturam o discurso e pequenas colagens verbais que alteram o sentido habitual das palavras. As inusitadas construções verbais de Kozer abrem novas possibilidades de leitura, além da lógica gramatical, pela combinação analógica dos termos. Assim, por exemplo, em O mendicante: “Frutais estatuetas,/ caudal; estojos e arquitraves, caudais:/ resvala pela pura farinha do ar a/ espiga a uma configuração de pães, tortas de azeite;/ e as águas resvalam (rosa) (erva-doce)/ (camomila) à redondez sem asas de um/ jarro: uma xícara me queima as mãos, ouço/ verter, vejo minha cicatriz, ouço crepitar/ a queimação em minhas impressões digitais”.
A associação de idéias, em Kozer, nunca resvala na escrita automática dos surrealistas; recorda, antes, as técnicas de colagem e de montagem da pintura e do cinema. É uma arte rigorosa, construída como um mosaico, mandala ou rosácea. As unidades léxicas são coladas como azulejos para fazer surgir o desenho proposto na escritura. Assim também no poema Prelúdio: “vivo vocábulo o animal, o rubro vivo da letra tateia a saga de/ sua forma: égua? alimária? pégaso roto de esporas? (…) uma cegonha rasante do céu fazia tremer um campo de/ papoulas, um martim-pescador roçava tábula rasa, peixes”. Jorro e jogo verbal, colcha de retalhos, toalha rendada, tapete ornado de arabescos: cores, linhas, volumes, arte de fiandeira.
Kozer não busca o breve, o conciso, o reduzido; ao contrário, ele é caudaloso, florestal, oceânico. Seus versos são longos, “bárbaros”, como os de Gerard Manley Hopkins, e muitas vezes não têm divisões em partes ou estrofes. É quase um amálgama de prosa e poesia, texto andrógino, analógico, poroso. No entanto, não devemos nos enganar: o poema longo, para Kozer (leitor do Princípio poético, de Poe) é um paradoxal conjunto de peças curtas, cascata ou fluxo seminal de haicais. Mandala, símbolo único formado por inumeráveis formas geométricas, triângulo dentro do quadrado dentro do círculo, que um súbito golpe de mão desfaz em pó, indício da impermanência: nada perdura, nada deve perdurar, e as formas cambiantes recombinam-se em outras formas, na saga circular do universo.
O menor é o maior — Como notou Eduardo Milán, o autor cubano “busca uma origem que não seja de ouro”: o menor é alçado à posição de maior, os grandes eventos cedem lugar ao cotidiano, à experiência partilhada por todos os homens. Kozer não faz o elogio de Orfeu, Guevara ou do moderno Jeová do mercado globalizado: em seu Olimpo estão os sapateiros, as costureiras, as lavadeiras, e também os místicos e os poetas. Em sua teogonia, Kozer elabora pequenas narrativas em que resgata a vida doméstica da viúva Chu, o incêndio de um celeiro por dois irmãos, a figura de seu pai, vestindo “terno azul listrado e sapatos de duas cores” e o suicídio de Kleist, culminando no encontro de Jacob Böhme com Deus. Sua fabulação, porém, não cai na armadilha discursiva, no romance em versos, na hagiografia do excluído; a trama é recortada, desfiada, como se o autor buscasse o inacabado, o desfeito, a pérola irregular.
A visão do poeta está menos centrada na ação dramática, no suposto núcleo temático, do que na paisagem que presencia os eventos. Assim, por exemplo, em Madame Chu: “Madame Chu (ao amanhecer) guardanapos de linho, chá verde (ou chá / do Ceilão) e uns pãezinhos à base de gema (levíssimos)/ marmelada de vacínios./ E como uma natureza-morta um ovo duro em seu cálice/ pequeno de porcelana (toalha orlada com uma franja/ de cruzinhas vermelho amarelo vermelho) gravada, dois limões./ Modorra, ainda: ontem à noite brotaram de seu sonho uns escaravelhos/ difusos, passou um porta-voz do Imperador diante de sua/ janela (cobrindo-se de glória com um monólogo) e um/ leque/ se desfez”.
Neste poema, os objetos presenciam, testemunham a ação, que é mínima, sugestiva, como os passos de um ator de teatro Nô dançando em círculos. Kozer desconfia dos grandes gestos, da eloquência, da oratória: uma vespa que pousa no cristal do espelho é para ele ação suficiente. Para minar a retórica e sua falsidade, o poeta adota uma nova objetividade, constrói uma visão de mundo despida de uniformes e do sinal de continência, a partir da observação do menor: “rastro de uma poeira que aspira a ser (gris)”. Lente angular que focaliza o farelo, o fiapo, o pó.
Avesso do sublime — Edmund Wilson, em O castelo de Axel, apontou duas vertentes na poesia simbolista: a “sério-estética”, representada por Mallarmé e Verlaine, centrada na musicalidade, no jogo intelectual, nas impressões diáfanas e sinestesias; e a “coloquial-irônica”, de Laforgue e Corbière, que incorpora o humor, o grosseiro, o sexual e a fala cotidiana. Em Kozer, em seu barroquismo mestiço, notamos a presença destes dois movimentos, um solene, cerebral, outro picaresco, buscão.
Em Amor para uma jovem aspirante a poeta, o poeta utiliza um estilo coloquial bem-humorado, com indisfarçado viés erótico: “Em Fontainebleau vida minha/ tomaremos uns canecos de cerveja/ sob um guarda-sol (Cinzano) uma tacinha/ de curaçau, menina, e beliscaremos/ uns petiscos (passe-me o caroço / da azeitona). Depois/ ao trabalho firme, que se intitule o poema/ ‘Fuzilamentos de um cavaleiro cor siena’/ onde haja uma dama e seu amor que morra/ nas guerras napoleônicas. Para/ um dia de trabalho é suficiente: subamos/ em Fontainebleau até o aposento, ponhamo-nos/ a esboçar arvorezinhas nuas no início/ da primavera, despedidas/ sob o pálio dos amantes de Teruel, Verona/ e com suma grandiloqüência (Vigny) “J’aime / la majesté des souffrances humaines”. Nesta peça paródica, o poeta faz uma contraposição entre elementos do cotidiano, da realidade imediata e o “sublime” de uma concepção kitsch do que é “poético”. O contexto temático insinua ainda a sedução subliminar da jovem pelo poeta “eminente”, metaforizada no final do poema: “marcha a infantaria por onde quer e/ Napoleón épouse Marie-Louise, executados/ como cachos num abraço”.
O humor é o avesso do sublime, como notou Bakhtin em seu estudo sobre a cultura popular na Idade Média, é a irrupção do corpo e seus dejetos em oposição à diafaneidade clássica. O humor pesado, grotesco, desafina a harmonia pura, enlevada, dos coros monocórdicos, carnavaliza a ordem do discurso, que reflete a ordem social, e coloca em evidência os rostos do populacho. O humor exagerado, de “mau gosto”, conforme Bakhtin, produz imagens “ambivalentes e contraditórias, parecendo disformes, monstruosas e horrendas”. Em Kozer, a lente histriônica por vezes torna-se áspera, corrosiva, brutalista, aproximando-se das noções do crítico russo. Assim, por exemplo, nas peças tanáticas que o autor dedicou a “Madame Lamort” (Rilke). Temos aqui uma sombria associação entre o sensual, o grotesco, o escatológico, que recordam as alucinadas metáforas pictóricas de Bosch e Goya. O poema A morte se disfarça de morte é talvez o mais expressivo da série, que o autor chamou de Vestígios: “Provável que não exista o cravo de papel/ da China que adorna sua lapela, a nuvenzinha (fuligem) do/ olho mais que provável que não exista: seu olho desatento,/ olho da Desouvinte. Clama, e verás. Implora, e o que ouves?/ Tira-o da manga de sua túnica com jarreteiras de urina/ e verás cair escória de vermes fornicando no meio do/ ar sua inexistência: Generala, seu nome. Úvula; ouve seu/ silêncio. Parturiente, vede brotar dela por partenogênese o fio extremo de uma saliva semeada de cinza”. Em outra peça, A morte usa cartola, temos essa imagem que teria agradado a Hyeronimus Bosch: “Andrógina, tem o falo dos cavalos, coroa de espinhos na glande, firme seta/ de sarça e cravos (formigas) ao penetrar,/ alcançar a medula em uma incursão/ (instantânea) por toda a espinha dorsal./ (…) Um a um, e todos pela mesma argola, incompletos: entrevados mutilados/ histerectomizadas zarolhos peitoextirpadas, e os membros/ todos de minha seita isentos de prepúcio:/ damos menos de comer à Infatigável;/ come menos sua imperecível tropa de/ vermes”.
Escrever sobre a Dama da Foice, ritualmente, como um mistério medieval, alegoria encenada: por detrás do sarcasmo, da falange dantesca de íncubos que sodomizam os danados, o fundo da dúvida religiosa, haverá vida ultraterrena? Após a dissolução, a ceia dos vermes, veremos o trono de Deus ou apenas extinção, silêncio da escritura, ausência de nomes e formas, tudo é um círculo? Temos aqui outra camada de significados, outra seiva ou húmus que é a demanda do divino, roda ancestral de toda cultura humana, esfinge reencarnada.
Toda a obra de Kozer é no fundo um único poema, ou antes um único, imenso verso, em busca desesperada da linguagem total, do signo primevo, que é a própria divindade.