A professora Soraya Calheiros Nogueira, que leciona literatura brasileira nos Estados Unidos, conclui: os contos de Miguel Jorge e os de Julio Cortázar são reconhecidos no mundo literário pela complexidade de suas narrações e elaborações artísticas. O eixo fantástico, que os aproxima e também os separa, revela que o grotesco nas obras destes escritores estrutura-se, principalmente, sob a ambigüidade e a incerteza do discurso narrativo. Ambos exploram o grotesco, por meio da ambivalência do comportamento humano, cada qual com seu estilo próprio. Em Miguel Jorge prevalece uma preocupação social vinculada a um momento histórico específico vivenciado pela sociedade brasileira, na década de 1970. Seus personagens carecem de individualidade, representando, dessa maneira, a voz coletiva de um grupo reprimido durante o regime da ditadura militar no Brasil. Cortázar, por outro lado, evidencia mais um questionamento socioexistencialista nos seus contos, trabalhando o indivíduo e sua condição na sociedade. Por isso mesmo, a solidão e a falta de comunicação são constantes nos seus textos.
Miguel Jorge é um escritor brasileiro na mais correta acepção da palavra. E é difícil encontrar escritor sério no pântano festivo de inúmeras vozes que surgem nesse paraíso de tantas facilidades. Vive no Centro-Oeste do Brasil. Quer dizer: vive em outro mundo, seguindo as normas autoritárias do chamado eixo Rio-São Paulo, onde proliferam as mediocridades nacionais.
Miguel Jorge fala ao Rascunho sobre o livro de Soraya Calheiros Nogueira, O grotesco em Miguel Jorge e Julio Cortázar, e também de si diante da literatura, essa coisa mágica que ajuda a sobreviver e a tecer o tempo brasileiro com seriedade.
• O que lhe parece o livro O grotesco em Miguel Jorge e Julio Cortázar, escrito por Soraya Calheiros Nogueira?
Soraya Calheiros Nogueira, defendeu tese de PhD, em Vanderbilt, Estados Unidos, onde leciona, aprofundando-se em um estudo comparativo de contos selecionados de Julio Cortázar e meus, que, segundo afirmativa do professor Russel G. Hamilton, na orelha do livro: “são dois prosadores latino-americanos insignes no âmbito da manipulação imagística da linguagem, e com uma obra cuja atração estética transcende o Brasil e a Argentina”. A autora, intensificou sua proposta, orientada por ótimos professores, tendo, também, como consultora, Darcy França Denófrio, poeta e crítica literária, residente em Goiânia. É preciso lembrar que existe uma seqüência de informações e descobertas de novas leituras, que levaram a bom termo o desafio de Soraya, com ótimos resultados. (Um olhar incisivo sobre os contos estudados). Soraya converteu, então, em razões de estudo, a união dos nomes de Julio Cortázar e Miguel Jorge. Sua tese, transformada em livro, é notável por vários aspectos, e não cabe somente em uma fórmula, mas, sim, em vários e desdobráveis análises, que apontam para considerações de ordem técnica, lingüística, histórica, nos autores eleitos por ela. E, além disso, a própria palavra “comparar” já carrega idéia de valor. Por tudo isso, honra-me figurar ao lado de Cortázar, um dos escritores de minha preferência, senhor de uma literatura inquieta, singular, inovadora. Por isso, não é de se espantar que o livro de Saraya C. Nogueira, escrito com incrível lucidez e linguagem acessível, dimensionado por estudos teóricos de nomes famosos como, Kayser, Thonson, Bakhtin, tenha alcançado o reconhecimento merecido, aqui, e nos Estados Unidos. A razão da aproximação e afastamento do grotesco em Julio Cortázar e Miguel Jorge, aprofunda, também, uma reflexão a respeito da literatura feita na América Latina. A autora, em suas pesquisas, investe na complexidade das análises modernas, que são de fato tentativas de novas descobertas, e que se afastam das limitações de qualquer outro termo que cerceia a imaginação criadora do escritor. Acho, por fim, que há uma relação de tempo, entre Cortázar e Miguel Jorge, ambos expressando a mesma diversidade das questões humanas, embora, cronologicamente, nascidos em épocas diferentes. Soraya Nogueira encontrou esse paralelo em seus estudos, e estou feliz e envaidecido por fazer parte deste universo.
• Uma das conclusões da autora é que você e Cortázar são dois escritores que escreveram sobre a condição do homem na sociedade com seu comportamento ambivalente, construindo uma literatura carnavalizada. Como você recebe essa classificação?
Penso que Cortázar e eu, propomos, em nossa literatura, uma total subversão do conceito de tradição, a partir de técnicas vanguardistas, sem, contudo, desprezar essa mesma tradição. Para isso, há que se ter conhecimento de todo um passado literário. Assim, podemos retornar a Oswald de Andrade e sua teoria da Antropofagia cultural. “A devoração proposta por Oswald, contrariamente ao que alguns afirmam, é uma devoração crítica, que está bem clara na metáfora da Antropofagia.” (Leyla Perrone-Moisés, Flores da escrivaninha, p. 95). De acordo com esse cenário, qualquer outra palavra que não fosse “carnavalização” ficaria fora do contexto dos contos dissecados por Soraya. Por outro lado, o leitor deverá ter atitudes participativas para com o texto, e perceber na técnica e na linguagem usadas, uma visão crítica do nosso tempo. (O escritor faz a sua história). Por isso, a ironia, a sátira, a paródia, a carnavalização, com fundo moral, social, religioso, político etc. Essas são as armas utilizadas por quase todos os escritores modernos, além da natureza polifônica da linguagem, e da inconclusividade, recursos que permitem mais de uma possibilidade interpretativa. Sendo, assim, aceito esta conclusão como definitiva, como uma forma de recriação ou de invenção circunscrita à história. Pode-se dizer, também, de uma palavra aceita pelas vanguardas que defendem uma produção renovadora, aproximando-se do desejo de esgotar todas as possibilidades da escrita.
• Soraya também fala do insólito e do sobrenatural na sua literatura. E também observa momentos da literatura fantástica em sua obra. Esta observação está correta?
Uma das peculiaridades dos (as) ensaístas é a de percorrer caminhos que os escritores deixaram em aberto, no momento exato da criação, exatamente porque essa criação toma conta de todos os espaços e sentidos no momento da escrita. Na realidade, no ato de criar, o escritor mergulha num mar sem fim de sonhos, de fantasia, indo muito além da realidade que o cerca. O manejo com a palavra, que é um ser vivo, é algo provocador e exige habilidade, reflexão, tanto assim que, penso, o escritor deve usar de todos os recursos que lhes são disponíveis para realizar sua produção literária. A intertextualidade, a carnavalização, o grotesco, o surrealismo, a paródia, a metalinguagem, o discurso fantástico, são elementos viáveis que sustentam a projeção da inventividade. Segundo Fernando Pessoa, “a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”. O escritor instaura, por assim dizer, um mundo novo, fruto seu, de sua criatividade, lançando mão de todas as práticas que podem refazer o real. São apenas alguns pontos citados, que servem de apoio, para situar o compromisso de magnificar um, ou vários aspectos, das conclusões obtidas por Soraya Nogueira, em seu estudo sobre o grotesco em Julio Cortazár e Miguel Jorge. Penso estar corroborando com a exatidão de suas inventivas, acentuando aspectos do insólito, do sobrenatural, e do fantástico, com os quais concordo plenamente, para dar veracidade à minha literatura.
• Como você vê a literatura de Julio Cortázar. Há alguma semelhança com a sua?
Vou recorrer, antes de mais nada, às palavras da poeta e crítica literária Darcy França Denófrio, que no prefácio para o livro de Soraya, intitulado: Um diálogo Latino-americano, aponta aproximações e recuos nas obras do escritores em questão… “Dentro da perspectiva fantástica, que a autora considera ‘o eixo de união e de diversificação entre Miguel Jorge e Julio Cortázar’, ela busca a presença do grotesco em contos selecionados dos dois ficcionistas, apontando não só o que os aproxima, mas também o que os distancia, ressaltando as suas especificidades. Soraya revela, a partir de vários contos de Avarmas, de Miguel Jorge, e de outros tantos, de Cortázar, a maneira como o grotesco, a paródia religiosa (esta específica do autor brasileiro), o tema da animalização, da coisificação e aquele do delírio versus realidade se manifestam no estilo individual de cada um deles.” Por outro lado, fascina-me, em sua totalidade, a literatura de Cortázar, uma literatura que nos oferece um campo de visão dimensional, sustentada por relacionamentos universais. É natural, portanto, que se encontre em sua escritura, cenas de caráter fenomenal, por vezes caóticas, por vezes cinematográficas, mas todas elas com manifestações de modernidade, a par de uma linguagem elaborada, e que lhe confere particular personalidade.
• O que é ser um escritor na região Centro-Oeste do Brasil, distante do famigerado e ridículo eixo Rio-São Paulo?
É como se a gente inventasse um novo mundo, um novo horizonte, para minimizar as lacunas existentes ou impostas aos escritores que vivem em regiões distantes do eixo Rio-São Paulo. Mas, aí, também, chegamos numa reflexão do fazer literário como uma coisa maior, independentemente de regiões, ou das maiores proporções de poluição, de carro per capta, do acúmulo de pessoas que codificam os males das grandes metrópoles. O que importa é a literatura, a criação do texto literário. Como dizia Clarice Lispector: “Só pode ser escritor aquele que conhece e aceita esse percurso enviesado do real às palavras e das palavras ao real, aquele que sabe que o caminho é o indireto”. E isso independe de geografia, não é verdade?
• Sendo escritor do Centro-Oeste as coisas ficam mais difíceis na chamada política brasileira?
Não se pode esconder as dificuldades existentes, quando se refere a uma política cultural centralizada. Nesse caso, a alternativa proposta é respirar livremente, tendo consciência do seu fazer literário, das suas propostas para a construção de uma obra coerente com seu pensamento político, filosófico, histórico, e, claro, sem pensar num engajamento a priore, porque a arte requer liberdade, sem a qual não se têm a complexidade de uma visão global, além dos direcionamentos da pesquisa, dos achados, das descobertas e da continuidade. A obra vem antes de quaisquer outros recursos do ofício, numa implicação com a realidade vigente, aliada a uma explosão imaginativa. Por outro lado, o legado técnico que muitos autores deixaram, incluindo aí, James Joyce, Franz Kafka, Virginia Woolf, Proust, Faulkner, Henry James, Sartre, Camus, só para citar alguns, tem sido renovados, ampliados, reformulados, e é nesse complexo de idas e vindas, creio eu, que reside o maior ganho político da história literária, sem barreiras ou fronteiras, num aproveitamento com o todo das questões, sem pensar nas partes, ou nos gabinetes, onde, por vezes, imperam os desmandos, os privilégios, e a demagogia. Se existe a carne, existe o osso, e nós temos que nos defender de tudo, até da falta de leitores, do desinteresse das escolas pelos livros, da miséria cultural, e coisas que o valha. Os ídolos atuais, infelizmente, são os da moda da televisão. Aí, não tem jeito mesmo, tudo acaba indo à falência. O que se pode frisar mais sobre isso é que esta questão está na consciência de muitos escritores, mas sem possibilidade, muitas vezes, de botar para fora o que pensa. O grito entalado na garganta! Quanto a outra política, a global, ainda não sabemos dos benefícios da sua linguagem. Vivemos atados a ela, mesmo com a esperança aflorando à pele, como se numa camisa de força. Se um gato espirra em Pequim, Paris, Nova York, Turquia, Arábia Saudita etc., somos obrigados a secar seu nariz. Tudo me parece frágil e ameaçador. Há esperança? Sim, continuamos com ela, é a profissão brasileira. Por outro lado, existe a violência, nacional e internacional: massacre dos palestinos e judeus, a possível guerra contra o Iraque, a destruição das torres gêmeas, os ataques e contra-ataques terroristas. É necessário refletir sobre o nosso tempo e achar que estamos enfrentando mudanças, rápidas e irreversíveis, momentos de transição para novos tempos, quem sabe que para melhor?
• Existe literatura brasileira séria e consistente?
Roland Barthes afirma, em um dos seus ensaios, que “inumeráveis são as narrativas do mundo”. Parodiando Barthes, posso dizer que farta, cônscia, forte em substância é a literatura brasileira, sustentada por linguagem diferenciada, paisagem, cores, lendas, e pequenas coisas que lembram um vôo narrativo, numa experiência complexa e decisiva. Apenas uma visão simples e restrita da qualidade de nossos textos literários, como incontestáveis vínculos que chamam para a leitura e o aprendizado, numa diversidade de repertório e de estilos.
• Qual é o mais brasileiro dos seus livros e por quê?
Existem graus e diferenças na concepção de um livro e, entram aí, as atividades dos sonhos, as rememórias, as observações, os encontros, os achados, as lendas, as anotações, os poemas, envolvidos numa determinada teia de complexos, de tensões e de técnica, no sentido de que há uma obra por se construir. Nesta projeção, e respondendo a sua pergunta, gostaria de citar não apenas um livro, mas uma trilogia, com temática goiana, com reflexos de universalidade, enfeixando três romances: Veias e vinhos, editado pela Ática, em l98l, (Prêmio APCA, l982); Nos ombros do cão, que saiu pela Siciliano, em l991; Pão cozido debaixo de brasa, Mercado Aberto, l997, (Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional). Em um e outro sentido, embora sendo criações distanciadas, existe um elo de ligação entre eles, como por exemplo, a violência urbana, funcionando como suporte, ou fio condutor. Num apanhado sintético, e para não sair ileso da sua pergunta, nada fácil de responder, posso afirmar que o Veias e vinhos, no qual você botou excelentes brincos nas orelhas, ainda está, apesar dos anos de edição, coerente com a nossa época: uma família é assassinada, no Bairro Popular, em Goiânia, restando do massacre apenas uma menina que à época contava apenas com três anos de idade. E é a partir da visão da menina que inicio o meu romance, usando de várias vozes narrativas. Em Pão cozido debaixo de brasa, há a construção de um personagem adolescente, Adão, com as implicações existências próprias da idade. O garoto vai ser iniciado na vida sexual por Leona, sua professora, de trinta anos de idade, casada com um homem que só pensa em dinheiro. A professora, em sua paixão avassaladora, obriga o menino a assassinar o marido. No outro movimento, temos a figura de Felipa e João Bertolino, catadores de papel, que terminam por encontrar o “Césio 137”, abandonado no terreno baldio da Santa Casa de Misericórdia. Felipa e Bertolino acham que encontraram a luz azul que os transportaria para um mundo repleto de felicidades, quando, na verdade, encontraram o desespero e a morte. Nos ombros do cão tem uma relação com a violência militar, na década de 70, em plena vigência do famigerado AI5.O romance foi concebido a partir de Masael, líder estudantil, do Lyceu de Goiânia, menino ainda, contando apenas l5 anos de idade, perseguido e morto nos porões da ditadura militar, e até hoje desaparecido. Traço, no romance, uma relação de liberdade, figurada pelo menino, e da opressão, caracterizada por um político da direita, que contesta as idéias de liberdade, privilegiando o silêncio, a tortura, o medo, e a morte. Então, penso que essa trilogia está inserida dentro da vida e da história de nossa gente sofrida, por vezes humilhada, e muitas vezes ignorada em seu sofrimento. Isso faz parte, não somente da vida brasileira, mas, também, da visão crítica e histórica de muitos escritores.