Na era do terror
I
Um estranho ruído.
Um estranho cheiro.
Um estranho pó.
O país inteiro entra em pânico.
E podia ser
bem que podia
a última ressonância de uma nova sinfonia,
a última recendência de uma exótica flor, que se cumpre
liberando a ternura do pólen.
Mas é apenas
não a vingança dos humilhados
mas a explosão de uma bolha
— uma bolha de culpa.
II
No ar, uma onda de gás.
Uma faísca num posto de gasolina.
Umas minas ao acaso espalhadas pela terra.
Uma dose de veneno nos reservatórios de água.
Uma bala certeira na cabeça de um transeunte distraído.
Quando isso começar a acontecer,
os culpados irão buscar um meio,
tomar enérgicas providências,
as medidas cabíveis
pra evitar que isso tenha acontecido.
III
Aconteceu.
Mas ninguém é responsável.
Ninguém fez nada.
Não foi ninguém.
É o fato bruto,
o fato — sem sujeito,
o fato
brotando do breu.
IV
Não se sabe de onde:
pode vir de qualquer ponto.
Não se sabe quando:
pode ser a qualquer instante.
Não se sabe quem:
pode ser qualquer vivente.
A praia aonde você vai para um dia de lazer.
A hora extraída ao catre para um encontro de amor.
A pessoa que você ia encontrar nesse intervalo.
Agora,
no lugar da descontração,
a prontidão e a vigilância;
no lugar da tranqüilidade
a incerteza e o pavor.
E os nervos que não arrebentem.
V
Estoura a guerra,
uma guerrinha
pois que entre dois povinhos.
O gigante orça o acordo
e vende armas para os dois.
Não interessa quem vença:
interessa quem compre.
Ambos vão perder.
Ele vai ganhar.
Não é que precise desse lucro:
precisa é dessas mortes.
VI
É inimigo
e cometeu
um ato de terror
aqui, na nossa casa:
— vamos liquidá-lo.
Cometeu
um ato de terror
no outro lado do mundo,
mas é um aliado:
— vamos marcar uma Cimeira.
O que é mesmo que eles combatem:
o terrorismo
ou a divergência?
VII
O ato é o mesmo:
diferentes
não são bem os atores
mas as mentalidades.
Se apóia uma
e se combate a outra,
deve haver um mistério muito grave.
Há
e é de fato grave
mas nada misterioso:
— o ditame do interesse.
VIII
Sim,
há o carisma do líder,
a fortuna da classe que o nomeia,
o ouro,
o petróleo,
a tecnologia
e a permanente carência de povos e nações.
Mas o poder,
o poder real
— esse continua
na boca do fuzil,
na ponta do míssil, na ogiva do foguete
ou no estopim de uma bomba.
Varia o nome,
a forma,
a quantidade de cadáveres por segundo:
a eficácia é a mesma.
Você pode até discordar
mas é bom sair da frente.
Ou de baixo.
Se tiver para onde.
Ou providenciar um amuleto mais potente.
IX
Ao sair de casa,
arriscamos a vida.
Ao entrar no carro,
arriscamos a vida.
Ao passar pela rua,
arriscamos a vida.
Ao abrir o fichário,
arriscamos a vida.
Ao voltar para casa,
arriscamos a vida.
Arriscamos.
São horas diárias de tensão
por um, não de prazer, instante breve,
breve instante de alívio
para os que escaparem.
Mas então
já estragamos
o dia.
Amanhã será um outro dia.
Se puder amanhecer.
X
Adeus, privacidade!
Um olho eletrônico nos vigia até em nosso sono.
Prerrogativas, adeus!
Um tribunal bloqueia a porta por onde teríamos de entrar.
Adeus, segurança!
Uma bala nos espreita na esquina por onde ainda não passamos.
Antes, inocentes até prova em contrário;
agora, suspeitos até mesmo sem indício algum.
Só um jeito diferente de olhar
— coisa de apaixonado.
É o terror, a conta-gotas.
Adeus, direitos humanos.
Adeus, democracia.
A vida vale um enterro.
XI
Do alto de sua revolta
ele atirou uma pedra na lagoa.
As ondas se espraiaram
e cresceram,
se elevaram
e invadiram as areias,
invadiram a cidade
e derrubaram casas, prédios e palácios
e afogaram todas as crianças.
O governo, diligente,
convocou a população
para deter a fúria
com diques de areia e madeira.
As ondas enfim cessaram.
A pedra está lá no fundo
mas há mais outras nas margens.
XII
Do Ocidente ao Oriente,
a iniqüidade
em nome de Deus.
Do Oriente ao Ocidente,
o fanatismo
em nome de Deus.
Ingressamos no Inferno
e não vejo outra saída:
é devolver ao Nada
Moisés e Maomé.
O poema na Na era do terror integra o livro inédito Argumento – Poemitos globais