O mar é bem ali

Conto de Rinaldo de Fernandes
01/03/2003

De minha janela, no alto do prédio, olho a tarde sobre o mar estourando. O sol bate nas paredes, nos vidros dos ônibus na avenida distante, na outra ponta da praia. Um som de rádio vem da janela aberta de um quarto de segundo andar, logo ali embaixo. E há, na rua, o barulho do trator revirando o barro do terreno baldio nos fundos do açougue, onde havia o cercado com os porcos pequenos e as galinhas.

Lembro bem agora. Quando foram pôr os porcos no caminhão, houve muito berro, zoada, os carregadores tropeçavam para pegar os bichos escapando das mãos. As galinhas arrepiavam-se, tontas, mas cacarejaram pouco na hora de ir.

Agora vejo o trator arrastando pedaços de tábuas podres, velhos caixões. Até que era bom ficar olhando ali os porcos se mordendo, as galinhas cuspindo a terra com os pés. Mas não há mais porcos nem galinhas. Eu sei, vão erguer um outro prédio. Eu sei ainda que a poesia do mar não está naquela gaivota pesando no vôo, mas na grandeza muda, verde. Minhas mãos, velhos falcões, às vezes também querem lançar-se no espaço — e batem asas despedindo-se das pessoas que andam no calçadão lá embaixo. As pessoas olham aqui pro alto, como se dissessem:

— Quem é aquela?

Sou uma velha poeta que perdeu a paz morna de mãos alisando os cabelos, num fundo conforto. Os dias passam, comem a minha pele, me destroem. E eu contemplando as árvores que restam nessas avenidas de postes altos, os telhados escurecidos lá de perto do porto, essa Fortaleza onde só fazem prédios, prédios. Contemplo também o bem-te-vi magro, quase líquido, pingo, que vez por outra pousa ali no fio da corrente elétrica. Deste quarto eu vivo, desta paisagem gasta. Giro neste espaço, amassando papéis, lendo velhas revistas, algum jornal e os meus poetas preferidos. Neste quarto sem cor eu vou indo, às vezes bebendo, às vezes deixando. Este quarto, escrevi uma vez, é um barco trepado num abismo.

Já escrevi também coisas assim: perdi ano passado minhas mãos mansas, que mimavam-me o rosto e os dias — perdi minha mãe. Hoje, desmanchada, sou vapor. Hoje não existo. Sem minha mãe, caiu tudo. Pode pousar ali no fio bem-te-vi, canário, cotovia — isso é só um alívio para os dias que me restam. Pode o verde daquele oceano entrar aqui, deitar-se na cama comigo — não adianta. Minha mãe era a água necessária. A água boa desta planta caída. Minha mãe era o mar onde eu bebia.

A idéia me veio sábado passado. Eu moro neste edifício com as paredes quebrando o reboco, neste quarto miúdo, e não dou conta do que se passa por aqui. Ouço falas, tosses, pancadas; gemidos nos corredores escuros — e não reparo bem nessas coisas. Mas dei para me importar, há coisa de dez dias, com uns passos ao pé da minha porta. Sim, alguém vinha, principalmente nas tardes, pisar aí no corredor. Os passos surdos chegando-me até a beira do tapete. Não tenho olho mágico na porta. Então, olhei pelo orifício da fechadura — não vi nada. Esforcei-me no buraco, mas não deu para pegar quem era. Aí rodei a chave rápido, abri a porta — e a coisa já sumira, deixando apenas o resto de um cheiro que não identifiquei na hora. Aspirei, provei, mas não deu para saber que cheiro era.

Fiquei pensando nessa coisa. Principalmente nos momentos em que eu não lembrava de minha mãe ou estava olhando o mar, lendo as gaivotas. Aliás, com as pisadas, comecei a ficar nervosa, a manter a porta fechada, a verificar se a chave estava mesmo passada. Já disse, sou uma velha só nesta cidade, neste prédio — plantada nestas paredes. Quando não agüento mais esta porcaria de vida, mando nome. Meto a boca ali na janela, berro alto — porra! porra! As pessoas, passando no calçadão, voltam a olhar aqui pro alto:

— Quem é aquela?

Mandei porra pelo buraco da fechadura e o diabo que rondava a minha porta não respondeu. O nome desse bruto agora é ninguém, eu disse com raiva. Nin-guém. Ninguém chegava às vezes às três da tarde, às cinco. Eu estava já quase cochilando, depois da novela das oito, e ouvia-o bater em paredes, se mover na escada. Ganhava coragem, abria a porta ­­— e nada. Esse ninguém, essa coisa, já está me enchendo o saco — bradei uma noite. E voltei a me perguntar: quem é ele? Ele é um vento, um grande filho da puta que, devo confessar, me põe medo. Principalmente quando o ouço nas madrugadas, aí pelos corredores apagados, arrastando objetos que não entendo, que jamais decifro.

Bem, como eu dizia, a idéia me ocorreu sábado passado. Encorajei-me, decidi deixar a porta de minha quitinete aberta o dia todo. Esse vestígio, esse ninguém que viesse, entrasse, sentasse aqui comigo na cama. Podia conversar, olhar ali o pedaço de mar tremendo. As gaivotas em seu passeio branco, largando riscos na água. Eu também puxaria conversa:

— É, isto aqui não deixa de ser um local bom de se morar. Calmo, vento entrando…

— Ah, sem dúvida.

— Você mora há muito tempo aqui no prédio?

— Sim, tem seis anos. E você?

— Desde que minha mãe morreu, ano passado.

— Ela morreu?!

— É, eu não gosto de falar… Mas, enfim. Ela tinha câncer, coitada. Vivemos dez anos juntas num quarto do centro. Eu sou filha única. Sou professora do primário aposentada. Maurício, meu noivo durante oito anos, fugiu com uma comerciária. Quase que me enforco. Meu pai morreu em 71, pegou um pau-de-arara, não resistiu, um homem já com 62 anos. Metido em sindicato, mesmo depois de se aposentar, queria mudar o mundo. Minha mãe brigava com ele, eu o achava bonito. Homem bom, me dava livros, dei para poeta.

— Ah, você é uma poeta?!

— É, escrevo aí umas bobagens.

— Você escreve sobre o quê?

— Sobre a vida, as pessoas, as paredes. Sobre as gaivotas aí rodando nas tardes. Sobre minha… Ah, meu caro, você está vendo ali a nuvem escura sobre o mar?

— Sim, estou.

— Depois daquele escuro, vem um azul. Minha mãezinha evaporou pra ele…

— Ah, que bonito, você é mesmo uma poeta!

— Sou, não estou brincando. Você quer ouvir, rapaz, algum poema meu?

— Pode ser.

Fechar-se para o mundo/ em paredes de vidro/ é ser visto de fora/ sem ser visto de dentro…

— Muito bom! Muito bom mesmo!

— Eu já falei, sou uma poeta, gosto muito de poesia. Gosto sempre de ler os meus poetas. Manuel Bandeira, Cecília Meireles. Florbela, a espantosa Florbela. Quanta mulher no teu passado, quanta!/ tanta sombra ao redor! mas que me importa?… Ah, meu caro, que beleza! Que poesia poderosa!

— Fala aí algum poema que você escreveu pra sua mãe.

— Não, esses não.

— Por quê?

— Não.

— Mas por quê?

— Porque não gosto, são secretos, meus.

— Ah, vai, leia um poema sobre ela!

— Não, não insista.

— Ora, o que é que tem?

— Não, esses não, agora não.

— Leia, quero ouvir.

— Quando você vier um outro dia, eu leio.

— Leia agora, vai.

— Não, hoje não, um outro dia.

— Agora.

— Outro dia.

— Agora.

— Amanhã, juro que amanhã eu leio, quando você vier… Ou você não vem amanhã?

— Claro, amanhã eu venho.

Deixei a porta aberta, mas ninguém entrou. Mesmo assim, continuei com ela escancarada durante três dias. Passei a achar que os pés, agora dando toques espaçados no corredor de baixo, eram de pessoas chegando da rua. Sei que nestas quitinetes tem muita gente impaciente. Tem muita gente desempregada que anda no centro, roda, não consegue ficar sentada em casa. Entendo que o desemprego come o mundo, mas eu não sei o que dizer. O que eu vou falar? Quem vai me ouvir? Meu pai talvez dissesse alguma coisa, se enfiasse em alguma discussão por causa disso, ele era assim. Eu não — vejo, calo. Sinto. É, deixei a porta aberta durante três dias. Na tarde do segundo dia, senti um mau cheiro. Fui, vi na escada o saco de lixo rompido, as sobras de um macarrão grudadas na parede, os absorventes soltos pelo chão. Voltei, sentei-me na cama, a porta aberta, esperando algum movimento, esperando esse nenhum. Muito bom o vento que passava, movia a cortina. O vento do meu mar é verde, eu lembrei que havia escrito isto certa vez, vendo pela janela as ondas espumar. Ah, eu queria que uma gaivota daquelas viesse, pousasse aqui no fio de roupas. E a minha velha, coitada? Estas mãos são as dela? Este dedo indicador é. A unha do mindinho, também. Ah, bosta de vida! A porta aberta durante três dias — e ninguém entrou.

Foi anteontem, à tardinha, que ouvi os pés trotando na escada. A porta estava só encostada. Fui, escancarei-a. E, afinal, o vi. Sim, era ele, estacado diante de mim. Afastei-me um pouco. Ele veio, pisou o tapete, entrou pela minha porta. Quem é você? — perguntei. Ele não gemeu resposta. Balançou o rabo, suado na barriga pelo esforço da subida. É, meu caro, aqui são quatro andares, tem que ter pernas… Me diz o teu nome!… Você andava perdido aí nesses corredores sujos?… Hein, garoto?… Vem cá!… Ele entrou nos meus braços, cheirou-me as mãos. Quando ele roncou, quis dobrar-se para sair, eu corri, atropelando-o, bati a porta. Passei rápido a chave, a mão no peito descompassado. Você fugiu ali do açougue, escondeu-se, zanzou solto por aí, não? — voltei a interrogá-lo. E olhei bem para ele, para o pequeno porco de focinho avermelhado, olhos mínimos e inquietos, orelhas em pé, assustado comigo. Aí, batizei-o:

— Ninguém.

Ninguém agora dorme no canto, no tapete que lhe estendi. Come no prato, gira pela quitinete, faz graças apertadas. Barriga alva, acho que só lhe falta mesmo é uma boa lama. Às vezes, ele vai, cheira a porta. Mas, a porta, eu tranquei. Eu tranquei bem a porta. E a chave — botei num poema ontem — eu dei para o bico de uma gaivota, que a atirou nas águas…

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho