Dr. Onagro

Conto de Paulo Sandrini
01/03/2003

Eu e Franz, rapidamente e em surdina, desatamos os burros e partimos numa viagem longa, a princípio sem destino. O destino ficaria ao arbítrio dos asnos. Como passaríamos muito tempo juntos, talvez a vida toda, Franz sugeriu que usássemos capacetes para que não enjoássemos muito facilmente um da cara do outro, o que se acontecesse, com certeza, comprometeria nossa convivência. Falo dos capacetes porque me vem a lembrança de que naquele dia, naquele momento, segundos antes de os colocarmos pela primeira vez na cabeça, antes de partirmos, percebi, ali, comparando junto aos jumentos, que o rosto de Franz e alguns de seus trejeitos possuíam um aspecto eqüídeo. Contudo, nada lhe diria a esse respeito, porque, lógico, tais constatações a gente cuida de não deixar escapar boca afora, ainda que Franz (tempinho depois) tenha se revelado um brincalhão, que poderia bem ter aceito numa boa a minha observação; todavia, às vezes ele também se revelava imprevisível e dava uns coices por mínimas coisas que fossem. Nessa ocasião ainda, antes que eu colocasse meu capacete, percebi que Franz também me perscrutara, ainda que obliquamente. Talvez, supus eu, na minha quase total insegurança, esteja ele notando em mim características que eu desconheço em minha própria figura, e se fosse mesmo isso ele também nada me revelaria. Deu-me apenas um risinho cínico, que me deixou cismado, e prosseguimos viagem.

Franz, Doutor Franz, meu amigo, era médico. Trazia a sua valise junto de si, sempre às mãos. Mas a partir daquele momento, daquela viagem, Franz decidiu que não mais seria médico de profissão (o que realmente não seria mais possível porque a viagem não teria volta), exerceria, a partir de então, seu ofício somente por dom, quando encontrasse alguém em real necessidade. Com certeza, haveria muitos vilarejos e aldeias durante a nossa viagem, e por isso mesmo muita gente, desses lugares esquecidos pela civilização, precisando das prestezas de um doutor como Franz. Eu, ao contrário do meu companheiro, jamais exercera profissão alguma. Sempre fora um indolente (assumido). Meu sonho era viajar por aí sem destino. Um desejo comum entre eu e Franz, coisa da qual nem desconfiávamos antes, apesar da proximidade (éramos vizinhos desde sempre), mas que descobrimos num dia em que eu estava na frente de casa (sem fazer nada como sempre, esperando que um dia a vida realmente começasse para mim) e Franz voltava exausto e de saco cheio de mais uma emergência no Hospital Metropolitano e resolveu parar para conversarmos, parecia querer desabafar, divagamos então sobre vários assuntos, foi aí que ele me revelou seu desejo, e eu lhe revelei o meu. Apesar de sempre próximos, nunca havíamos estreitado nossa amizade. Nos atínhamos ao coleguismo. Aquela coisa de se falar com freqüência, mas sem intimidade alguma. Contudo, depois dessa longa conversa no portão da minha casa e dos nossos anseios se desvelarem com tal intensidade e coincidência, ficamos exultantes a ponto de, feito dois moleques, no dia seguinte, roubarmos os dois jumentos que a família de Franz (bem mais abastada que a minha) possuía e, como já disse, partirmos nessa viagem sem volta.

Agora, definitivamente, o sonho era realidade para nós dois e poderíamos nos tornar realmente amigos. Poderíamos. E até que nos dois primeiros anos isso foi acontecendo. Fomos passando de colegas a amigos. Franz se revelara, como já disse, um brincalhão, que às vezes me dava uns coices, mas tudo bem. Era um tipo boa gente. A viagem seguia dentro das expectativas. Ou seja: uma grande e inesquecível aventura, até ali. Vagar, dormir e comer nos locais mais insólitos. Ter ao alcance da vista as mais pinturescas paisagens. Perscrutar a vida nas mais distantes paragens. Era isso. E era tudo. Não necessitávamos mais nada. Todavia, uma mudança começou a ocorrer lá pela metade do terceiro ano. Lembro-me bem do dia e do momento em que comecei a percebê-la. Foi num dia cinzento, chuvoso, mas de muito calor. Logo após um atendimento (depois de vários outros que Franz fizera durante toda a viagem) a uma senhora que sofrera um ferimento grave, uma enorme mordida nas nádegas quando alimentava os porcos, num desses muitos vilarejos perdidos que cruzávamos. Era costume de Franz tirar seu capacete para descansar (e essa era a única condição para quebrar o nosso trato de somente tirar o capacete de três em três meses na frente um do outro para evitar que enjoássemos um da cara do outro) depois de prestar socorro a vítimas e doentes. Assim ele o fez e fomos nos dirigindo até um paiol, cedido pelos moradores a nós, em agradecimento ao socorro da vítima, para que pudéssemos nos recuperar da viagem. E foi no decorrer dessa pequena caminhada, das proximidades da pocilga até o paiol, que a cabeça de Franz me pareceu ter ganhado um aspecto deformado. O rosto parecia ter esticado. Suas orelhas pareciam maiores que antes. Digo ter parecido porque não tenho certeza (e o tempo arrasta as certezas) se isso foi ou não uma ilusão de ótica proporcionada pelo cansaço da viagem, ou também porque eu realmente, depois de mais de três anos de viagem e muitos outros como vizinho, não apreendera bem a compleição do meu amigo, principalmente seu rosto, que ficava a maior parte do tempo, assim como o meu, resguardado por um capacete. Contudo, essa talvez ilusão de ótica ocorrendo paralelamente ao desabafo de Franz dizendo não suportar mais tocar em pessoas, dividir espaço com elas, nem mesmo olhar para suas caras e que ainda iria fugir para um deserto, e em seguida chacoalhando a cabeça freneticamente parecendo um jumento quando tenta abanar as moscas das orelhas, me fez perceber que algo mudaria na nossa convivência. Ouvindo isso, constrangido, é óbvio, me senti impelido a perguntar se ele queria então, por não suportar mais a convivência com pessoas (e eu, ao que tudo indicava, ainda era uma pessoa), continuar a viagem sozinho, somente com seu jumento. Não tive como não perguntar isso a ele, visto ele ter demonstrado grande exasperação no seu desabafo. No que ele me respondeu, Você não é como os outros, como as outras pessoas, se pensa que é, está enganado, amigo, e só por isso é que eu suporto continuar convivendo com você dia a dia nessa viagem, que é passagem pr’alguma coisa, só não sei o quê. Na seqüência, Franz olhou bem pra mim, como que me medindo, e deu aquele risinho cínico, típico de sua figura, seus dentes pareciam maiores.

Dormimos por algumas horas e acordei com Franz se remexendo, agitado, no meio da palha. Quando fui perguntar a ele se estava sentindo alguma coisa, ele se levantou, me encarou como que perguntando, Está estranhando o quê, e se retirou numa corrida desabalada. Apesar disso, e porque ainda estava sonolento demais, vesti meus sapatos calmamente e fui até a casa da família da senhora atendida por Franz e perguntei por ele, disseram-me que ele não havia ido até lá, fiquei um tanto preocupado, no entanto seu jumento permanecia amarrado, e eu concluindo que Franz não havia ido longe aceitei o convite da família para uma refeição. Era fim de tarde e ainda chovia bastante, quando Franz retornou todo ensopado, e ao perguntar a ele aonde havia ido, ele respondeu, Correr por aí e fazer minha refeição, aliás muito frugal. No canto de sua boca havia fiapos de capim. Ele, ainda agitado, quis partir em seguida. Eu disse que estava chovendo e que iria escurecer logo, mas não adiantou. Não consegui dissuadi-lo. Partimos sob a chuva forte. Franz estava mesmo impaciente. Reforçou o fato de não conseguir mais ficar perto das pessoas. Seu jumento, ele me disse, era o seu melhor companheiro. Ao perceber que me chateara, pediu desculpas. Todavia, essa foi uma de suas últimas gentilezas. Franz, a partir dali, se tornou um indivíduo totalmente áspero. Também não quis mais vestir seu capacete, dizendo que sentia a cabeça apertada. Quebrou o trato. Não retruquei. Continuei usando o meu. Pelo menos Franz não se enjoaria da minha cara. Eu suportaria a dele, que agora parecia sofrer leves alterações, a cada dia um pouco diferente. Um lento espetáculo de mutação. Franz já não se alimentava como antes. Não atendia mais aos necessitados dos vilarejos e aldeias. Só adentrava esses lugares no intuito de roubar feno, alfafa ou encontrar um pasto viçoso para suas refeições. Corríamos perigo (chumbo grosso e cães ferozes no nosso encalço) nessas empreitadas, pois eu nunca deixava Franz sozinho nessa sua busca desenfreada por comida. Às vezes, também, ou melhor, muitas vezes, empacávamos nos pontos do caminho em que Franz encontrava seu matinho frugal. Eu fui ficando exasperado com essa rotina e cheguei até pensar em continuar sozinho. Mas o fato era que Franz realmente não estava bem, por isso não percebia nada de errado ocorrendo consigo. Continuava com seu comportamento constrangedor. Mas decidi por continuarmos juntos. Eu seguia sofrendo para encontrar minhas refeições, porque Franz não podia e já não devia freqüentar lugares em que habitavam pessoas. Sua aversão a elas agora era total, e a das pessoas em relação a ele, com certeza, também seria. Não sei por que ainda ele suportava ficar em minha companhia. Sua valise, ele já a havia abandonado lá no paiol, depois do atendimento feito a senhora mordida nas nádegas pelos porcos. Passei, então, a carregá-la comigo. Se Franz mudasse de idéia, ela estaria ao seu alcance. Mas ele me dizia que nunca mais, nunca mais seria médico de gente. Nunca mais. Por isso eu poderia me desfazer a qualquer hora daquela maleta inútil, segundo ele. Dali em diante, vi que não teria mesmo jeito. Franz não retornaria a ser o que era. No entanto, ele ainda seguia em minha companhia. Pelo menos até o dia em que descíamos por uma estrada sinuosa e íngreme, quando meu jumento passou por cima de uma cobra que cruzava o caminho, se assustou e saiu desembestado, só indo parar num buraco, depois de tangenciar (parecendo mesmo um automóvel sem freio) uma curvinha apertada e cheia de pedregulhos. Fiquei muito machucado. Desacordado não sei por quanto tempo. Quando acordei me vi todo ensangüentado. Ralado. Com uns bons pares de ossos quebrados. Vi também Franz, pouco mais adiante, com o meu jumento. Franz chorava. Chorava muito. Desesperado, alternava o uso de instrumentos cirúrgicos pegos de sua valise e a língua, lambendo os ferimentos, para tentar salvar o animal, que estava totalmente debilitado. Franz xingava, urrava, parecia soltar pequenos zurros. Chacoalhava a cabeça como um muar, nervoso. Muito nervoso. Eu não conseguia me mexer. Não podia me levantar para ajudá-lo no seu desespero. E Franz também não iria me ajudar, mesmo eu implorando por socorro. Dando sinais de que poderia morrer ali. Insisti em chamá-lo. Mas ele parecia não querer me ouvir. Só depois de o animal expirar é que Franz veio até a mim. Seu olhar era rancoroso. Parecia não mais conseguir emitir palavras. Apenas sons estranhos. Chacoalhava furioso a cabeça. Arrastava um dos pés para trás. Arreganhava os lábios e mostrava os dentes, girando a cabeça e jogando-a para trás. Até se virar de costas para mim e soltar uma pernada violenta, simulando um coice, que atingiu em cheio minha caixa craniana. O que fez com que eu desmaiasse novamente.

Depois desse dia, nunca mais o vi nem tive notícias a seu respeito. Um casal de velhos que passava pelo local me socorreu. Fiquei com eles por uns três meses, até me recuperar plenamente. Eles foram bondosos. Me arrumaram até um outro jumento para que eu prosseguisse minha viagem. Com os instrumentos médicos abandonados por Franz, segui fazendo curativos, lembrando como ele fazia e às vezes improvisando. Cheguei até a salvar algumas vidas. Contudo, venho adquirindo o estranho hábito de dormir em pé.

Paulo Sandrini

É autor de Códice d’incríveis objetos & histórias de lebensraum e mestrando em Estudos literários (UFPR).

Rascunho