Penso que uma das finalidades primeiras de um suplemento literário como o Rascunho seja descobrir novos talentos. Tarefa nada fácil. Eu mesmo, isoladamente, recebo uma boa dezena de livros de autores novos por mês, para analisar. Não tenho tempo, ainda que os receba com carinho e os guarde sempre. Sou como a Xuxa, pois, que dizia ter um quartinho com absolutamente todos os presentes que ganhava dos pimpolhos. Não tenho, no entanto, o dinheiro nem os cabelos louros da Xuxa, o que é pena.
De vez em quando, porém, eu dou uma olhada nestes livros, quase todos de poetas e poetisas. Caramba! Como são prolixos estes poetas de hoje em dia. E como adoram rimar amor com dor. Há livros de contos, também. A maioria deles começa com “era uma vez”. E quase sempre se revelam obras de extrema vaidade e exibicionismo. É preciso repensar o verbo criar. Romances de autores novos, obviamente, recebo poucos. Romance é trabalho de fôlego e por isso não satisfaz de imediato a vaidade do autor em potencial. Além disso, editar um romance é tarefa para Hércules, o que desanima o iniciante que prefere começar com algo mais fácil.
O fato é que eu me deparei com o livro de um iniciante: Alexandre Soares Silva. Por vias tortas foi que cheguei até ele. Conheci o autor pela internet, num site no qual ele assinava uma polêmica coluna. Eu lia e pensava que era uma pessoa no mínimo interessante e que escrevia bem. Sabia que ele tinha publicado um livro, mas até então não me havia interessado em analisar o trabalho dele. Lia Alexandre Soares Silva falando com naturalidade de Conan Doyle a Chesterton e me intrigava cada vez mais. Soube que ele havia escrito um livro infanto-juvenil, além do romance. Continuava sem tempo para me dedicar à decifração do romance do novo autor. Há um adendo nesta história: o título do livro. Convenhamos: não é nada animador ler um livro chamado A coisa Não-Deus. Parece tese de faculdade do interior. Hoje eu entendo o porquê de um título destes, dentro da proposta de ironia e cinismo em estado bruto de Alexandre Soares Silva, mas penso que um bom trabalho de editor poderia mudar um título de modo a aproximar o livro dos leitores.
A figura do novo escritor sempre me fascinou. Até porque eu de vez em quando cometo lá minhas crônicas e, nestes momentos criativos (cada vez mais raros), fico a me perguntar o que leva uma pessoa hoje em dia a escrever e mais: a querer escrever bem. Olho para os lados e vejo a chamada “nova geração”: quase todos herdeiros do pior da tradição beatnik. Mirisola, Clarah Avernuck, Fernanda Young fazem o gênero modernosos que querem chorar e fazer rir ao mesmo tempo. Não conseguem. Patrícia Melo segue os passos de Rubem Fonseca, sem nem um terço do talento dele. Simone Ostrowski tenta o romance de idéias, mas luta para não tornar sua narrativa um soporífero. Isso sem contar aqueles que experimentam neoconcretismos e outras escatologias do gênero. Neste universo, Alexandre Soares Silva me chamou a atenção por ser destituído de qualquer necessidade de se firmar como um literato. Ele escreve e escreve bem e tem o que dizer — pode haver algo melhor?
Vou usar uma palavra perigosa agora: humildade. Não a humildade cristã, aquela do Sermão da Montanha, por favor. Falo de uma humildade que se revela, sobretudo, nos homens que mantêm a cabeça ereta e o nariz na linha do horizonte. Humildade daqueles que não se deixam guiar por vaidades menores, como noite de autógrafos (com o indefectível vinho de garrafa azul) e tietes mandando cartas com cinco milhões de beijinhos impressos. É difícil, no cenário da atual literatura brasileira, encontrar um autor que esteja imune a estas vaidades e que, por conseguinte, mereça o adjetivo de humilde. Humilde, já se disse, que não encontra ecos no poeta que vende seu jornalzinho de rimas no meio da rua ou no romancista de barba por fazer que bate de porta em porta em editoras de fundo de quintal para publicar a história da sua própria vida; por outra, é humildade que encontra ecos em Machado de Assis e, hoje em dia, em Dalton Trevisan. Alexandre Soares Silva parece caminhar alheio às necessidades do jovem romancista, que vê nas letras impressas antes um modo de aumentar sua auto-estima. Ele sabe que a literatura está muito acima dos fardões de imortalidade. “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”, de que fala o próprio Machado de Assis, é outra.
Travando contato com Alexandre Soares Silva, conheci um lado não muito alegre da profissão de escritor. Era o que eu queria, já que estava cansado de figurões do mainstream literário escrevendo qualquer coisa para cumprir deadlines e ainda assim achando por bem vestir o chapéu pontudo de artistas. Queria alguém que fosse realmente bom, bom mesmo, verdadeiramente bom, mas que estivesse alheio aos caprichos que a literatura pode conferir a uma peça que tenha mais nome do que prosa (não vou dar exemplos, não se preocupem). E achei.
Ele editou seu livro A coisa Não-Deus pela pequenina Beca. Uma editora que muitos dos leitores do Rascunho só estão conhecendo agora. E não é de se surpreender. Como a Beca existem dezenas, centenas de editoras no Brasil, de gente disposta a investir em autores novos, na esperança de encontrarem um best-seller. Conversar com os donos destas editoras é curioso. Ou são idealistas em busca de um novo gênio das letras brasileiras ou são ingênuos que sempre citam o exemplo de Paulo Coelho como justificava para a perseverança no meio editorial. Diferentemente das editoras como a Companhia das Letras, a Record, Rocco e Objetiva, estas editoras não dispõem de uma assessoria de imprensa nem de qualquer influência para fazer seus lançamentos chegarem ao grande público. Contam com o mito da propaganda boca-a-boca somente. E quase sempre perdem ao apostar nisso.
O fato de Alexandre Soares Silva ter sido editado por uma editora pequena talvez o colocasse no limbo onde se encontram tantos outros escritores talentosos (ou ao menos com sério potencial). Salvou-o a extrema capacidade de se comunicar e de sobressair num meio tão dispersivo como é a internet. A capacidade de ser escritor além das fronteiras de seu brilhante (nossa! Eu usando o adjetivo brilhante!) romance. E a ciência de que seu oficio é, sobretudo, escrever, e não apenas ser um nome na capa de um volume escondido numa livraria ou biblioteca quaisquer.
Depois de alguma insistência e uma desconfiança natural, chegou-me às mãos A coisa Não-Deus. Eu havia escrito que trocara o romance de Nelson Motta, O canto da sereia, pelo Moby Dick de Melville no sebo e ele pedira simplesmente que eu não fizesse isso com o livro dele. Imagina! A coisa Não-Deus, apesar do título algo pernóstico, como já se disse, tem que ter lugar reservado na estante de qualquer um que queira, daqui há uns cinqüenta anos, analisar esta geração criada com babá eletrônica e que se faz expressar por meio de hipertextos. Isso, claro, se não quiser cair na bobagem de reduzir tudo a meia-dúzia de Fernanda Youngs e quetais.
Antes de falar das qualidades literárias de A coisa Não-Deus, contudo, é preciso fazer uma ressalva que nem culpa do autor é. A diagramação do livro é deveras sofrível. Eis o problema de se editar um trabalho dedicado como este por uma editora pequena. Não é nada de se morrer, não. O pessoal da Beca, contudo, poderia ter se esmerado mais no que diz respeito não só á divisão dos capítulos do livro (algo bastante primário), mas, sobretudo, no que diz respeito à divisão silábica. É incômodo ler um livro no qual as palavras estão dividias erradamente. Nada que ofusque o que o livro tem de melhor, ou seja, a narrativa de Alexandre Soares Silva.
A coisa Não-Deus conta a história da Coisa Não-Deus, isto é, de Julio Dapunt — a única alma, em todo o Universo, que vai morrer. O portador da má notícia para nós, humanos, é um cronista que está à beira de uma lareira, numa poltrona, e que de repente, em sonho, se vê transportado para o Paraíso, onde este segredo divino (ou seria demoníaco) lhe é confiado. Poderia ser apenas mais uma narrativa “surrealista” (muitas, muitas aspas, por favor), mas pela pena do escritor se torna uma deliciosa crônica de um Paraíso extremamente original, com anjos cheios de personalidade, com acontecimentos que se valem do pitoresco que poderia haver se promiscuidade entre o mundo espiritual e o material houvesse. A coisa Não-Deus é um trabalho de criador, de um tempo em que literatura era feita por gente que tinha uma história verdadeiramente interessante para contar. Outra coisa que não seus casos sexuais, suas decepções amorosas, suas divagações suicidas, seus casos com gente famosa e suas escaladas no Everest ou no Edifício Chopin. É, vale repetir, o trabalho de alguém com imaginação o suficiente para fazer o leitor crer que uma viagem a um Paraíso cheio de anjos pitorescos é possível.
Que não espere o leitor mais incauto uma literatura como a de Mônica Buonfiglio, que também fala de anjos. Nem tampouco espere o leitor um libelo cristão de Paraíso para os que foram bondosos em extremo na terra, um Éden habitado somente por aqueles que não cometeram qualquer pecado quando vivos. A coisa Não-Deus, com um humor finíssimo, subverte esta imagem que atravessa os séculos já no primeiro parágrafo:
O Paraíso não é um estado de espírito. É um lugar. Se você der dois passos pra fora, está fora; se der dois passos pra dentro, está dentro. Uma vez lá dentro, você pode pisar à vontade na grama, dar cambalhotas, pode até se machucar dando cambalhotas, porque o chão não é de ectoplasma, não é de nenhuma espécie mística de fog, não é de gelatina amorfa; é matéria, pura e sólida e dura matéria. Mesmo os Anjos são matéria. Se você perguntar a eles se acreditam em algo que não seja matéria, eles vão rir da sua cara. Logo, eles não só são matéria, como são materialistas; e não só são materialistas, como são ateus.
Os anjos de Soares Silva, contudo, têm mais a nos dizer do que um ateísmo que pode chocar os mais ortodoxos. Não, eles não falam de religião no decorrer do livro. Até porque estão mais ocupados admirando as moradoras das cidades do Paraíso, como Grace Kelly. Os anjos são seres garbosos, cheios de vaidade no que diz respeito às suas asas e a sua Graça se revela justamente na espirituosidade (não confundir com espiritualidade) eterna. O autor explica muito bem como são os anjos de seu livro, que não se parecem em nada com os de Rafael ou de qualquer loja esotérica:
Anjos são mais diferentes uns dos outros do que nós seres humanos somos uns dos outros. Não existe uniformidade no bem; não no verdadeiro bem. O caminho espiritual consiste em expandir o seu ego, e não, for Christ sake, transcendê-lo; expandi-lo até que ele se transforme em algo único, caprichoso, específico. Espíritos elevados são, no verdadeiro sentido da palavra, excêntricos.
Por isso, em A coisa Não-Deus é possível encontrar anjos bêbados, anjos apaixonados por barcos construídos dentro de garrafas, anjos taradinhos por algum outro espírito elevado, anjos que descem a Terra para espiar mulheres tomando banhos ou ainda anjos que gostam de se aproveitar de indefesas vaquinhas no pasto.
A figura principal do livro, contudo, não são os anjos, e sim Julio Dapunt. Ele é um menino comum aqui no mundo espiritual. Estuda letras na PUC e é tímido como o quê. Este ser aparentemente desprezível, no entanto, carrega em si uma chaga que pode fazer o Universo entrar em colapso. É que sua alminha veio com um defeito de fabricação. Logo, ela vai morrer. Todos os outros seres humanos são eternos. Podem nascer camponeses num século para serem aristocratas no outro ou operários no outro ou ainda heróis mais adiante. Dapunt, não. Ele tem data de validade. E ao tomarem conhecimento disso, por puro acaso, os anjos que administram a Vida tentam, de todos os modos, compensar o homem para o qual a eternidade é realmente um conceito improvável — o único.
Quem nos conta esta história é um cronista no qual não se pode confiar de modo algum. E não é para se confiar mesmo. Ele está sentado numa poltrona e é assim uma pessoa meio vagabunda, desleixada mesmo. Pelo menos é a impressão que me passou. Uma pessoa que é capaz de dormir sentada não me passa credibilidade alguma. Ele dorme e sonha que é levado ao Paraíso e que lá recebe dos anjos a incumbência mística de escrever esta crônica do único homem que deixará de existir para sempre.
Tudo, absolutamente tudo em A coisa Não-Deus é fictício. Parece uma coisa meio óbvia de dizer, mas não é. Tendo em vista o que se produz hoje em dia em literatura, esta necessidade de se ser mais e mais realista, é preciso ressaltar esta que é a grande qualidade de A coisa Não-Deus: tudo, absolutamente tudo ali descrito, saiu da imaginação prodigiosa do autor, de sua capacidade de fazer associações as mais diversas, de criar imagens de ironia duplamente destilada, capaz de embriagar até mesmo o leitor mais cheio de pudores pelo que não lhe é perceptível de bate-pronto.
Com este livro, de acesso restrito por conta da precariedade da distribuição, em se tratando de uma pequena editora, Alexandre Soares Silva, formado em letras, tradutor por ocupação, com 35 anos, dá uma pequenina lição (sem querer, claro, que ele não é de querer dar lição em ninguém assim tão vulgarmente) nos milhares, talvez milhões de escritores que diariamente se aventuram a se sentarem defronte a uma tela de computador (há quem prefira ainda a máquina de escrever e quem não largue o bico-de-pena por nada deste mundo) a fim de conquistar a imortalidade por meio das belas-letras. Como? Fazendo, simplesmente, jus ao axioma de Aldous Huxley em Contraponto: não há substituto para o talento.
A coisa Não-Deus, se não for encontrado nas livrarias, pode ser adquirido diretamente com a Beca Editora, pelo telefone (0xx11) 3802.5467. Ou pelo e-mail [email protected].