Não pára, não!

Fabrício Carpinejar encontra virtudes na poesia de Sebastião Uchoa Leite
Para Carpinejar, Uchoa Leite usa a desorientação como método
01/04/2003

Dedicado aos amigos Rogério Pereira e Paulo Polzonoff Jr.

Nunca entendi como o comportamento de intelectuais aparentemente pacatos se torna agressivo em bando. Como pessoas lincham outras, que nada fizeram, sob o escudo de uma torcida de futebol, e depois voltam para casa, desobrigados com o destino, a segurar suas crianças no colo, a rir com amigos e a beijar sua esposa. Essa dupla personalidade me assusta, assim como o jornalismo que escolhe a polêmica antes de valorizar o que verdadeiramente presta. Entendo um pouco por dia e me esforço por acompanhar o debate literário, que está tão perto da violência física. Não guardo a paciência do búlgaro Elias Canetti, Prêmio Nobel de 1981, que levou 35 anos para escrever Massa e poder, no qual tece em 11 capítulos as múltiplas reações humanas diante da autoridade. Tendo às costas as experiências de duas guerras, ele retrata como perfis bem equilibrados se dissolvem na multidão. Um de seus pontos de estudo é a massa negativa, a massa da destruição, onde é criada uma rede paranóica em que os inimigos são classificados pela aparência. “Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente.”

A crítica O separador de sílabas, da edição de março do Rascunho, merece resposta para ampliar o debate. A hostilidade não convence e o sectarismo impede a livre interpretação. Não participo do quadro da Defensoria Pública, longe da qualificação para exercer a advocacia. Sei que todos que tentarem apartar uma briga, sempre vão apanhar mais do que os contendores. Só que omissão é também opinião. Não é a única vez em que tentaram matar Sebastião Uchoa Leite. Recordo que o autor recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Murilo Mendes, em 2001, e um importante jornal do Rio de Janeiro chegou a comentar, de forma equivocada, que a premiação havia sido póstuma. Não é também a última vez que ele ressuscita. O que me incomoda no texto é a paranóia criada em torno do concretismo, marcando seus filhos e netos (quem traçou a árvore genealógica?) com uma marca na testa e maldição nos ombros. Não há poeta que não se declare favorável ao movimento. O assunto nunca passa em branco. Isso já está ficando chato. Se a reiteração acontece, a conclusão dos concretistas é que sua tendência é a mais importante da última metade do século 20. Será?

Paranóia
Assim como um integrante de uma torcida adversária, Sebastião Uchoa Leite acabou emparedado ao sair do estádio. E ninguém ouviu o contraditório. Afinal, o que está se falando? Dos livros dele, creio que não. O concretismo canaliza a raiva de outros estados ao egocentrismo de São Paulo, uma inveja enrustida ao modelo autônomo da USP e da Folha de S. Paulo. Não estamos mais falando de literatura. É um amor/ódio que não se esgota no sotaque, evidenciando uma defesa da produção regional às suas dificuldades de ser reparada fora do eixo. Não é possível encontrar ingênuos nas trincheiras. Cabe evitar maniqueísmo. As musas concretistas realmente vivem em uma sala de espelhos, pouco abertas ao diálogo e aos talentos que não escrevem um poema em vários idiomas. Com exceção de Cabral e Drummond, já consolidados, esqueceram a maioria dos autores que poderiam fazer sombra. Em qualquer canto, a intolerância tem apressado a cadeia alimentar. Ao ser amigo de um poeta, alguém está assumindo indiretamente seus inimigos. É bom se cuidar! Se me aproximo de Carlito Azevedo, Alexei Bueno se afasta. Se cumprimento Haroldo de Campos, Bruno Tolentino cospe no meu prato. Não adianta pedir bolachas de sal ou oferecer biscoitos, o vinho branco envelhece na boca. A coisa está ficando séria. Coloco a mão na respiração para conferir se estou vivo. A poesia virou um circo de horrores, uma guerra santa, até o Papa lançou seus poemas. Noto duas possibilidades: partimos para a solidão em grupo (o pior dos isolamentos). Ou respeitamos as diferenças e tentamos entender a mensagem que não foi escrita pela vaidade de nossa letra. Pela lógica, há mais lugar fora da cova do que dentro dela.

O mundo é bão, Sebastião!
Sebastião Uchoa Leite lança seu décimo livro: A regra secreta, motivo do alarde e sirenes, pela nova coleção Alguidar da editora Landy. Não é sua melhor aparição (continua sendo a antologia Obra em dobras, que reúne os seis primeiros livros), mas tem seu valor e coerência de acordo com uma forma de pensamento. O escritor se posiciona com desconfiança perante a própria escrita. Não está criando nenhuma realidade, fabulando sobre o possível. Mira de lado, como um vesgo que tudo vê sem denunciar a direção dos olhos. O que alguns entendem como desleixo é desconforto crítico. Seguindo a linha desarmônica de A espreita, sua posição não é de um autor em campo, mas de um treinador, ocupando um espaço intermediário entre o livro e o leitor, como que prevendo os passos do verbo. É um voyeur lírico, antecipando-se na imaginação da leitura. O silêncio tem a estratégia de persuasão. Saber mais é saber menos. A erudição articula o abismo. O escritor não está ali para ostentar sua fé na literatura, mas para pô-la à prova, em atitude cínica e irônica. Quem o lê ao pé da letra não o lê. É preferível esperar sentado. “O filósofo sabia mas/O saber/ Preferia calar”, senha que em sua estréia tinha semelhante nomenclatura: “tempo de meu silêncio enquanto falo (Dez sonetos sem matéria, 1959). Por um adensamento crítico e aguçamento das lacunas, sua obra passa a ter a equivalência de um ensaio. Um ensaio que esconde mostrando. A melhor forma de guardar o segredo é contando. A explicitude carrega algo de ilícito. “Um gosto desagradável/ de cadáveres/ A melancolia do mal/ Já cantada/ A torto e direito/ Só sabe/ Do arfar/ Do susto/ Do embrulho-enigma de tudo.” Ele deflagra o jogo entre ficção e cotidiano, presentes em versos como: “Vergonha/ de não ter/ uma verdade” e “Sou o que sou./ Ou minto? Será isso/ uma regra secreta?” Ele dissimula a todo momento, confunde com indícios, provoca a interlocução com a veracidade das mentiras. “Lá estive ligado/ Todo o tempo/ Até a desmemória de tudo/ E monitorado/ Sonhei com a consciência/ De me desligar/ De tudo o que não eu mesmo.” O poeta se sacrifica no alheamento voluntário. Faz uma crítica à insuficiência lírica. “Não sei rimar exceto/ com ‘disfarçados urinóis’.” Coloca um cruzamento de citações, uma estrutura de alusões, fragmentos e paralelismos, orquestrando autênticas ilusões. São diferentes linguagens e correntes temáticas como cinema, quadrinhos e poesia, que espremem situações prosaicas e clichês, extraindo o banal do mais banal. A descrição funciona para despistar. Os poemas já começam no final. Como afirma João Alexandre Barbosa: “Uchoa Leite propõe um enunciado que já surge problematizado pelas relações entre sujeito e objetos líricos”. O escritor não tenta salvar ou converter um lugar-comum em preciosismo literário. Portanto, adere à pobreza da matéria lingüística, sob “o suor do pânico”. Em Antilogia (1979), antecipava sua aversão ao verso, procurando o fedor refinado de muitos fedores, por entre vias de urina. Ele se submete ao desagradável para adquirir o real. Em seus versos, o leitor escreve mais do que o autor. Nesta insana metalinguagem, as palavras de Uchoa Leite sobre François Villon cabem perfeitamente em sua algibeira: “há um processo de acumulação lexical e imagética que consiste em associar tudo que pode provocar repugnância”. O ambiente é o do espião, do homem acuado, saltando referências às portas cerradas, às fechaduras, às trancas e aos enigmas. O maior movimento em cena é o de abrir e fechar, de lacrar e deslacrar. “Fechar portas/ sem deixar frestas.” Processo de vigília e censura, de susto e rompante, de esconderijos à sombra de uma consciência atormentada e enfastiada de conselhos dos clássicos. Uchoa Leite usa a desorientação como método. Não economiza sarcasmo com o mundo, incluindo seu jeito de dizer, sendo presa e predador ao mesmo tempo. Poesia feita das margens, da periferia de uma voz, fascinada com o incêndio e o tamanho do desastre.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho