A sedução do Oriente

Uma incursão pelo tanka, sua história e sua magia
01/04/2003

Gostaria de começar esta breve digressão sobre a constante sedução que exerce sobre nós, ocidentais, as coisas e loisas do Oriente, confessando, antes de mais nada, que aqui está apenas um aprendiz. Aprendiz em mínimo grau — é preciso que se frise. E não vai aqui modéstia, este vício ocidental com que, de modo escuso, lambemos o próprio umbigo, e que em oposição à — altiva — humildade, é só uma coisa viciosa e perversa — pois aprendiz em ínfimo grau das artes do extremo Oriente e, dentre elas, sobretudo da invariavelmente sublime engenharia do poema japonês, proporia, logo de início e antes de mais nada, uma reflexão aqui sobre a “plasticidade” do budismo.

Não é sem propósito, como se verá, esta quase-provocação, assim de imediato e a sangue quente, em que penso/peso a aderência da síntese (ou seria síncope?) do nipo-poema, a aderência desta poesia aos possíveis dogmas senão de uma religião, ao menos de uma clara e visível religiosidade. Religiosidade aqui, nos expliquemos, no sentido epifânico da palavra.

Um exemplo em technicolor?

Ao contrário de Jesus Cristo — que embora também se irritasse com os que lhe imploravam milagres nunca deixou de fazê-los — os “milagres” atribuídos ao Buda são muito escassos e, dentre eles, este, contado pela tradição:

Precisando atravessar um deserto baixo causticante meio-dia, do alto de trinta e três céus, trinta e três deuses apressam-se em enviar ao Desperto, cada um deles, um guarda-sol. Para não desagradar a nenhum dos solícitos deuses, sabem o que faz o Buda? Recusa os guarda-sóis?

Não, amigos, por pura gentileza, por absoluta cortesia, para não magoar nenhum dos trinta e três deuses dos trinta e três céus, o Buda multiplica-se em trinta e três Budas, todos absolutamente idênticos e cada qual protegido por um guarda-sol. Lá do alto, cada um dos trinta e três deuses vê atravessando o vasto deserto a imagem de seu Buda protegido com o guarda-sol que acabara de enviar.

Em que tradição religiosa, amigos — ainda que o budismo não seja uma religião, mas uma doutrina —, esta tomada aérea de cinema americano?

E — doutrina ou religião —, não conheço nenhuma outra que tenha fecundado um número tão grande — e massivo — de poetas, como o Budismo. Para um San Juan de la Cruz, da tradição crística, temos, só para ficar num exemplo, ainda que numeroso, Bashô e mais uma centena de discípulos — conhecidos e desconhecidos. Aí, clara e translúcida, a essência de uma conjunção feliz e em todos os sentidos luminosa, entre a prática do budismo, ou de sua variante zen, e a poesia.

Indissolúveis, poesia e vida, poesia e a possível transcendência de nossa precariedade, ninguém melhor que os poetas orientais para colocar em prática o que Hölderlin haveria de propor muitos anos mais tarde: o imperativo de que devemos habitar poeticamente o mundo. Já haviam habitado o nosso velho e caduco mundo aqueles brincantes filósofos-poetas, brincantes filósofos-carpinteiros, brincantes filósofos-pintores de olhinhos puxados e passinho miúdo…

Tão filósofos e tão poetas que acabaram inventando os koans, instrumentos de inscrição oral, utilizados pelo zenbudismo para “passar” mensagens, recados, instruções, numa “pedagogia” toda própria e pessoal com vista à chamada iluminação búdica, propósito e objetivo de velhos ou novos monges, cônscios de que Deus é dentro e de que o paraíso (o chamado nirvana) pode ser bem mais o trecho do destino que nos foi dado viver sobre a Terra.

Cômicos uns, trágicos outros, intrigantes todos, os koans são pequenos racontos, poemas em prosa de delicada tessitura “moral” e quase sempre de fino estilo. Colecionador obsessivo dessas historietas imantadas de delicadeza e sabedoria, apresento duas delas só para ilustrar este nosso encontro pelas sendas do Oriente.

Velhíssimo e muito doente, o Mestre um dia decidiu morrer. E, dentre mais de cem discípulos, escolheu um para que lhe testemunhasse a morte iminente. Acontece que o discípulo escolhido, de nome Teiju, vivia num mosteiro a milhares de quilômetros dali e não haveria tempo hábil para que o monge mensageiro conseguisse avisá-lo do derradeiro desejo do mestre.

— Nem que eu vá no dorso do mais célere condor, receio que Teiju não conseguirá chegar a tempo — manifestou o mensageiro ao Mestre agonizante.

— E nem quero que ele chegue a tempo. Quero-o para testemunhar a minha morte. Não para testemunha do meu fim…

Teria a platéia paciência para mais uma demonstração desses endiabrados filósofos-poetas? Este koan, por exemplo:

Tarde da noite, em meio a torrencial tempestade, o monge-pedinte dos Himalaias, em busca de abrigo, bate ao portão do primeiro mosteiro que encontra no caminho. Atende-o velho monge de fixo sorriso.

— De que ri, senhor? De que ri, se tudo é chuva e fome e cansaço? Se tudo é ausência do Buda em meio ao vazio da alma humana…

  Olhando demoradamente para o forasteiro, o portão do mosteiro entreaberto, também ele já encharcado da chuva que cai copiosa em meio a raios e trovões, o velho monge mantém o imutável sorriso.

— Preciso entrar, senhor. Preciso entrar — avisa, incisivo, o monge-esmoleiro quase como um pedido de socorro.

— Não. Eu que preciso sair.

— Como assim, senhor?

— Há vinte anos, dia após dia, noite após noite, persigo a ausência do Buda em meio ao vazio da alma humana. O resto é pura e duvidosa iluminação. Pode entrar que eu preciso sair.

  Cerrando os portões atrás de si, o velho monge joga as chaves num precipício e pega a lamacenta estrada. Do lado de dentro, o viajante esmurra e esmurra o portão já então trancado…

 O que querem nos “ensinar”, digamos, estas parábolas orientais cheias de vida e alegoria? A rigor não pretendem nos ensinar nada. Mas haverá sempre uma lição a extrair delas — por mais ambíguas que elas sejam. Ambíguas, sim, amigos, jamais hesitantes, mentirosas ou marcadas pela hipocrisia… Eles, os koans, são a mais pura verdade…

Voltando à poesia lato sensu, poesia no sentido estrito da palavra, não estaremos muito longe também dos koans. O tanka, a renga, o haicai surgem da necessidade imperiosa de expressar o Buda interno, e não impelidos pela volúpia de um nome, como é o velho e contumaz vezo de nossa vaidade escriba. E por falar desta anonimidade preciosa em todos os sentidos é que lembro aqui este tanka, pérola zen de Teitoku (1571-1613), que traduzo do inglês:

Em matéria de poema
Estes não precisam de instrutor:
A rã e o rouxinol
Coaxam e trinam
Waka waka noite e dia

Ou se vocês me permitem, um tanka de minha própria lavra, chamado justamente Anônimo, do livro Pequeno tratado de brinquedos, editado pela Iluminuras, de São Paulo, e há alguns anos esgotado. É assim:

Eu e a minha mestra
Saímos caçar cepilhos
Só colhemos grilos
Tarde voltamos com fome
Jantamos os nossos nomes

O tanka, forma poética composta de cinco versos e 31 sílabas, precede o haicai em mais de 700 anos. É do ano de 759 a primeira antologia publicada. As origens do tanka certamente se perdem na noite dos tempos, mas há uma lenda que diz, desde sempre, que no dia inaugural do mundo, os deuses Isanagui e Isanami se declararam amorosamente utilizando para tanto as 31 sílabas do waka, o primeiro nome que o tanka teve na História. WACA quer dizer poema do país de Wa, ou seja, “poema japonês”. WA era o nome do Japão. Daí Wa-ca.

Mas ali onde as lendas dão lugar aos registros históricos, sabemos que o waca era uma modalidade poética praticada apenas no palácio imperial, desde o início da era Heian. De cunho sobretudo amoroso, servia para cortejar cobiçadas princesas, numa manifestação quase sempre idílica e de cunho intensamente casamenteiro. Isto mesmo, amigos. E nem só os pretendentes masculinos das princesas eram tankistas; elas também, por força de responder às propostas amorosas, por meio às vezes da melhor poesia, elas próprias se fizeram grandes tankistas.

E assim como o haicai tem em Bashô o santo maior de sua devoção, por tudo o que inaugura e reinventa, o tanka tem Yoshikio Sato, conhecido por Saiguio (“o que vai para o Oeste”, em japonês.). Uma vez mais, indissolúveis se mostram a prática búdica e a prática poética, verdades que gozosamente se misturam: no Budismo, para quem não sabe, o paraíso fica a Oeste.

Da mesma forma que Bashô, Saiguio abandona promissor caminho samurai e se devota ao tanka. E tal como Bashô opta por uma peregrinação descalça, andando e reandando o país de Wa. Poesia e budismo se entrelaçam. O búdico é o poético. Nada mais búdica que toda e qualquer pulsão poética; nada mais poética que toda e qualquer pulsão búdica — para ficar num raciocínio bem periférico e que não toca nem tange a corda essencial.

Memória do círculo, registro da coisa inteira, caminho do meio, o Buda e a Poesia são uma só coisa.

E ninguém senão Saiguio, o pai do tanka, para compor esta pequena jóia que nos vem de lá, do País de Wa, e atravessa bem mais de mil anos para chegar aqui, a esta sala e a esta mesa em Fortaleza, no Ceará:

Cheio de clamores
pergunto às folhas lentas
em que noite de seda
vai dormir com elas
velho vento dentro?

Todo o budismo está aí com as suas quatro nobre verdades, fundamento de toda a doutrina que cinco séculos antes de Cristo, sob a figueira de Benares, fez do príncipe Gautama, o Buda, o Desperto, o Iluminado.

Com a reunificação do Japão sob severo shogunato (uma espécie de ditadura militar) tem fim a era Heian e começa a era Kamakura, com os samurais adotando a prática do waca como o melhor instrumento, o mais denso e o mais preciso, para que se despedissem da vida, nas tão sombrias quanto sanguinolentas cerimônias do harakiri (o suicídio samurai). Há preciosidades anônimas conservadas pelos registros da História e que certamente nos chegam profundamente modificadas. Um desses poemas (ou “atitudes” poéticas, conhecidas em japonês como jisei) é este que, mais uma vez canhestramente, tentei traduzir do inglês:

Castelo em chamas
Mestre arqueiro no terceiro céu
Onde reandarei o caminho
Adeus do guerreiro
De sangue a árvore do dia

Um samurai não capitulava nunca, preferindo a mais digna das saídas que era a prática do “suicídio do guerreiro”. E desse modo, integrado à vida samurai como um devotamento, a prática do waca se impõe, passando a se chamar tanka (que quer dizer poema curto) na era Meiji, quando o shogunato devolve o poder ao Imperador.

Não podemos deixar de lembrar aqui o kyoka, uma versão satírica do tanka e muito usado inclusive para grafitar muros com críticas ao governo e aos políticos, já naquela época dignos de toda crítica. Pouco ou quase nenhum registro temos desses kyokas, poemas anedóticos e de ocasião.

Mas o caminho do mais fino humor é o caminho por onde anda a poesia do Oriente. Graça, leveza, por vezes cortante ironia. Como o dia em que, reunidos ao mestre Bashô, um dos discípulos, desafiante e desafiador, lhe propõe o seguinte haicai:

Libélulas vermelhas
Tirai-lhes as asas:
Serão pimentas.

Ao que o mestre Bashô responde, cândido:

Estas pimentas!
Acrescentai-lhes as asas
E serão libélulas.

Relevante anotar que o tanka foi magistralmente praticado por mulheres, que nos legam com isso inestimável patrimônio de talento e sensibilidade. Entre elas, como esquecer de Akiko Yosano, verdadeira Leila Dinis de seu tempo, autora de tankas moralmente belicosos e que surpreenderam, por sua coragem, a mais que austera era Meiji. Aliás, Yosano fez história com suas audácias.

Menos audaciosas, mas muito mais sofridas foram as mulheres japonesas que, aos milhares, sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, sofrendo a perda de namorados, noivos, maridos, irmãos e filhos nos campos de batalha — nunca é excessivo lembrar. E, mais uma vez, foi o tanka a forma encontrada para expressão de seus sentimentos — fossem eles de luto, revolta, horror ou pânico.

Um dia haverá de ser escrita esta história quase secreta: a de mães que esperaram a volta de seus filhos por anos e anos, em navios que não chegavam nunca e nem nunca chegaram, ou de outras, ainda mães, que, nas noites geladas de Kyoto, cobriam o túmulo dos filhos mortos com estropiados casacos de lã para que não sofressem o rigoroso frio dos invernos de Honshu.

Nem uma obra-prima, claro, digna de Saiguio ou Yosano, mas está tudo lá, nos tankas atravessados pelos desastres da perda, mas ainda assim estoicamente apostando em que não nascemos para “ficar”, “permanecer”, ou para o cultivo de uma hipotética “imortalidade”.

Não, na alegria ou na dor, o Buda que mora na poesia nos ensina uma lição para além de toda mágica: o importante na vida não é “ficar”, é passar, é passar sempre e incessantemente.

Como no “microlusíadas” (para provocar/evocar Paulo Leminski, o maior poeta de meu Estado), no microlusíadas de Kobaiashi Issa, ao lembrar que seremos sempre os viajantes daquilo que se faz, protagonistas do recontínuo fazer-se, para lá da refazenda, muito além da montanha:

Ao Fujie sobes
Pequeno Caracol
— mas sobes!

Este texto foi lido pelo escritor Wilson Bueno durante o Festival Vida & Arte, em Fortaleza, em janeiro deste ano. Bueno é autor de Mar Paraguayo e de Meu tio Roseno, a cavalo, entre outros.

Wilson Bueno

É autor, entre inúmeros livros, do romance A copista de Kafka.

Rascunho