Ernesto Sabato, na introdução de O escritor e seus fantasmas, avisa que sua obra pretende ser como conselho aos jovens escritores. Jovens escritores, afinal, são assim mesmo: capazes de perseguir seus ídolos nas letras em busca de palavras esclarecedoras, que, talvez, tornem seu exercício menos penoso.
Essa busca, como a maioria perceberá com o tempo, é quase sempre inútil. Porque, por mais bem intencionado que seja o conselheiro, jamais todas as suas palavras poderão ser tomadas inteiramente com verdade — porque a verdade só pode ser descoberta, às mais duras custas, pelo sujeito encerrado em sua solidão.
E Sabato, assim como os jovens escritores aos quais se dirige, tomou para si o fardo do claustro. Deitou-se sobre as questões que mais lhe atormentavam a vida de literato e produziu uma lista de aforismos, ensaios e recortes sobre a dúvida que paira incessantemente na mente dos escribas. Não a dúvida do que pousar sobre a folha em branco, mas aquela que diz respeito a qual fantasma dar ouvidos no momento em que se escreve.
Apesar do conselho prévio, a obra alcança um patamar mais amplo do que se pretende. O escritor e seus fantasmas é uma grande discussão sobre a viabilidade do romance no século 20, como também uma reflexão sobre o modernismo e, em último caso, uma ode aos grandes nomes da literatura mundial. Ao longo de suas páginas, Kafka, Joyce, Proust e Faulkner, entre outros, compõem um time que dá substrato teórico às proposições de Sabato: o romance está morto? O romance está em crise? O homem está morto ou em crise? Nada, como se descobre, é indissociável. Afinal, como demonstra o autor argentino baseando-se no sofista Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. Se há uma crise, essa crise é do homem, e é uma crise perene. O romance, portanto — e por conseqüência toda a literatura —, não está fadado ao fracasso, porque se destina a investigar e, quem sabe, resolver a crise antropocêntrica. E enquanto houver os homens, haverá o romance.
Condição humana
Físico de profissão — tendo abandonado a ciência na década de 30, depois de uma visão premonitória da bomba atômica —, Sabato repete, quase como um mantra, a faculdade máxima do romance: o gênero é o legítimo questionador da condição humana. Não à toa que a repetição da idéia tem relações com o misticismo. Para Sabato, a crítica do romance moderno é, também, a crítica da metafísica e da subjetividade. Assim, de um simples libelo acerca das questões pelas quais atravessou a literatura durante o século passado, o argentino transforma seu livro em uma comovente reflexão sobre a existência do homem.
Para tanto, o autor busca interseções da literatura com a filosofia. Seja citando Nietzsche ou Kierkegaard, Sartre ou Sócrates, para Sabato todas as artes que se ocupem da discussão sobre o homem são congêneres. Nesse momento, em que pé estará o escritor novato que talvez buscasse os “dez mandamentos” nas lições de Sabato? Além da perspectiva de como tecer suas primeiras obras, certamente. Mas imerso, ao mesmo tempo, em questões mais profundas que, acaso bem aproveitadas, poderão auxiliá-lo na árdua tarefa de escrever.
Perceberá, ainda, que talvez o ofício escolhido não seja dos mais simples. Um aviso: “Se recebemos dinheiro por nossa obra, tudo bem. Mas escrever para ganhar dinheiro é uma abominação. Essa abominação se paga com o abominável produto que assim se engendra”. É uma observação final. Não se pode escrever para alcançar a fama ou o sucesso financeiro, mas simplesmente porque não há outra opção. Afunde-se no instante, sonhe, vista-se do deus de si próprio. E a certa altura, tudo parece impossível, inalcançável. Mas ele mesmo se encarregará de provar o contrário.
Nacionalismo
A partir da reflexão sobre o romance moderno, Sabato lista suas maiores preocupações sobre o destino do gênero e, mais além, da própria arte. Desancando objetivistas como Alain Robbe-Grillet (cuja fórmula para escrever se assemelharia a uma descrição infinita das coisas), o autor depara-se com um cenário verdadeiramente perigoso: a arte nacionalista.
Esse tipo de nacionalismo nocivo — em que podem ser colocados, por exemplo, alguns escritores da União Soviética comunista e outros aos quais se refere como “ontólogos da ficção” — serviria para criar uma desigualdade entre autores importantes e medíocres, além de uma falsa visão sobre a realidade social. Algo, não por coincidência, parecido com o que tentam alguns artistas brasileiros ao insistirem na mania de “abrasileirar” tragédias universais, como se a fome, a peste e a desgraça fossem exclusividade dos miseráveis locais.
Mas, para além das alfinetadas (eufemisticamente falando) nos ontólogos, Sabato também procura se dedicar a tecer pequenos comentários sobre a riquíssima literatura argentina. Como a respeito de Borges, o enxadrista das letras, a quem em certos momentos parece discordar quando da extrema atenção à forma e ao estilo do texto. No fim, prefere enxergar no compatriota outra essência, essa escondida aos olhos da maioria, mas tão lírica quanto o senso comum diz sobre ele.
Já sobre Roberto Arlt, prefere colocá-lo ao lado do panteão de gênios, ainda que sua literatura seja visivelmente “social”. Justamente porque o pecado não é a crítica da realidade, mas a mania de sacramentá-la, especialmente no “terceiro mundo”, especialmente na Argentina.
Aliás, é terno perceber as ligações estabelecidas por Sabato entre literatura e música platina, especialmente o tango. Citando Enrique Santos Discépolo, o “existencialista do tango”: Vivimos revolcaos em un merengue/ y en un mismo lodo todos manoseaos (Vivemos mergulhados na confusão/ e em um mesmo lodo todos chafurdamos). Tudo, novamente, indissociável. Paralelamente, podemos estabelecer uma lógica entre a literatura brasileira e a bossa nova. E, por isso, o conhecimento acerca das artes argentinas é tão rico. Vivemos, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe.
A conclusão a que Sabato chega nessa comparação é que Santos Discépolo e Arlt são ambos produtores de fantasias mágicas e provocadoras. Realizadas por seres “corrompidos pelo mal metafísico”.
Implacáveis
O homem, objeto maior dos questionamentos de Sabato, vive cercado por demônios ou fantasmas. Escritores são homens do tipo que resolvem confrontar esses espectros implacáveis. Mas o que são, afinal, os fantasmas senão criações do próprio homem, sujeitos aos seus desmandos e sua cólera? Seriam os homens ou seus fantasmas deuses? Não. São mais que deuses. Afinal, como escreve Ernesto Sabato, um Deus não escreve romances.