Pedra que rola não cria musgo

Um surfista viaja rumo à América do Sul; um irlandês percorre a Irlanda em companhia de uma geladeira
01/04/2003

Tem que acontecer alguma coisa, neném,
Parado é que eu não posso ficar.
(Raul Seixas)

Esta resenha fala de livros de caráter duvidoso, com pretensões filosóficas e/ou humorísticas, e portanto fadados ao esquecimento. Mas, por motivos que cabem apenas ao leitor, podem se tornar inesquecíveis. E se você acha literatura de viagem uma grande porcaria (começando por Jack Kerouac, On the road), nem perca seu tempo. Ou compre a briga comigo.

Um belo dia, cansei. Olhei para meu emprego, e achei-o uma merda. Olhei para a minha casa, e achei-a chata. Olhei para as minhas relações, e achei apenas fracasso pessoal (com culpa exclusiva minha). Olhei-me, e não me vi. Crente que o problema não estava em mim, caí na estrada. Nem as palavras certeiras, “mas o problema está em você, não adianta trocar de cidade”, serviram para me segurar. Queria apenas ter feito isto uma vez, e ter sossegado. Mas não, lá vamos nós de novo, aos 32 anos, ver qual é a deste mundo. Sair meio que sem destino, sem saber onde ficar, sem saber ao certo o que buscar, apenas a vontade de estar longe de tudo e de todos, de novo.

Deve ser por isto que adoro literatura de viagem. Não a do turismo babaca, resort e excursão, ou a do falso aventureiro, que sobe o Kilimanjaro junto com 36 carregadores de equipamentos. Viagem mesmo é aquela sem muito destino, apenas a vontade de “queimar” chão, conhecer e conhecer-se. Isso porque a maior parte da viagem é mental, não se mede em quilômetros.

E o destino não é tão importante mesmo. A direção, talvez sim. Mas, como já disse aqui há alguns anos, citando (de memória) Robert Pirsig, “apreciar o caminho é talvez mais importante que apenas alcançar o cume”. Eu acrescentaria: vai que você morre antes de chegar ao fim. Aproveitou o meio, cara-pálida? Para viajar, não é necessário muito objetivo. Só o tesão, a vontade, já basta. Mesmo porque, repito-me, um objetivo externo é desculpa para um objetivo interno, pessoal.

Veja o exemplo do norte-americano Allan C. Weisbecker (um ilustre desconhecido na Ilha de Vera Cruz, paciência). No outono de 1996 (nossa primavera), o cara se encheu de tudo. Vendeu a casa onde cresceu, quase tudo o que tinha, meteu três pranchas de surfe e sua cadela em um F-350 adaptada para servir de motorhome, e saiu em direção ao Sul, em busca de seu velho camarada de ondas e comparsa de tráfico de drogas, Christopher, que tinha sumido quatro anos antes. (Outro aviso aos navegantes: o Sul, a América Latina, é considerada a terra do esquecimento para os norte-americanos. Go to the south é perder, perder-se, para não ser achado).

Este é o início de In Search of Captain Zero — A surfer’s road trip beyond the end of the road (já vejo os narizes de metade dos colaboradores deste jornal torcendo-se ao ouvir as palavras surfista — road trip — além do fim da estrada. Eu avisei no começo!!). E por que o saco de Weisbecker explode? Afinal, ele tem um grana legal, vinda das vendas de seu único livro até então, Cosmic Banditos (a história romanceada de seus tempos de traficante) (mais narizes retorcidos) e dos direitos autorais de roteiros para o cinema e a televisão (entre eles, Miami Vice). Não, ele não se aposentou como traficante e vive de rendas. Ele mora em uma casa legal, na beira de uma praia em Long Island, com ondas o ano inteiro. Ele tem uma namorada mais que legal, bonita e inteligente. E ele pega onda quando quer, sem horário de trabalho fixo para incomodar. No entanto, falta algo. E ele acha que ir ao Sul, em busca de seu amigo, é a solução.

O livro é bom e chato ao mesmo tempo. Um Zen e a arte de manutenção de motocicletas para surfistas. (Lembro-me de um comentário de uma amiga a quem presenteei Zen, logo antes de ela sair do Brasil para ficar pelo menos dois anos fora: “Gostei, mas as partes sobre motocicletas são chatas demais, e aquela filosofia toda também é meio chata”. Mas são dois terços do livro, e as partes de que eu mais gostei! Cada macaco com a sua sentença). Quando Weisbecker pende para o lado técnico do surf, é um pé no saco, principalmente para quem não surfa. Quando fala do que vê e sente, é maravilhoso.

Weisbecker cruza os Estados Unidos até a Califórnia, dali desce pela Península de Baja, no México, e vai cruzando os países centro americanos até a Costa Rica, tentando refazer o caminho de Chris meio que por afinidade. “Putz, ele gostaria de ter visto estas ondas, de ter almoçado nesta cidade” etc. E onde ele acha ondas boas e gente legal, ele pára. Pois acha que ali seu amigo parou. E, na maior parte das vezes, ele acerta. E vai encontrando novas pessoas, e revendo a própria vida no meio do caminho.

E ele acaba achando seu amigo (está na cara desde o começo do livro, não corto nenhum clímax aqui), em uma cidade que fica realmente além do fim da estrada. O que acontece, não direi. Digo apenas que a viagem só faz sentido para quem viaja, e para mais ninguém. Weisbecker percebe isso da pior maneira, mas percebe. Ele compreende também que não precisaria ter viajado tanto, ainda que tenha sido um tesão. Percebe que seu objetivo inicial, encontrar Chris, era errado. E entende também que a estrada afeta cada um de maneira particular. Não há receita de bolo, nem conclusão.

O oposto
Trocando de saco para mala, ou diria melhor, de prancha para geladeira, há um outro lado da viagem. E talvez o mais respeitável de todos. Viaja-se por viajar, sem objetivo algum, apenas a vontade de estrada, por mais nonsense que possa parecer. Explico-me melhor: ou porque se fez uma aposta, bêbado para caralho (com o perdão da palavra, mas este é o único superlativo adequado para descrever o estado do cidadão). Afinal, só bêbado para caralho, e com a ressaca subseqüente, que se aceitaria como verdadeiro um pedaço de papel escrito com garranchos: “Eu, o abaixo-assinado Tony Hawks, aposto cem libras esterlinas que darei a volta ao redor da Irlanda com uma geladeira, viajando apenas de carona, em prazo não superior a 30 dias”. Ridículo? Ridículo, sim, e também sublime e maravilhoso. Se a vida é nonsense, isto é apenas o nec plus ultra do nonsense, o que talvez, por distorção, seja senso puro.

Tony Hawks é um comediante inglês. E ele realmente cumpriu e ganhou a sua aposta, como nos mostra o livro Ao redor da Irlanda com uma geladeira (e se alguém duvida disto, o livro traz fotos para provar). Não há objetivos filosóficos em sua viagem. Não há busca interior (Caminho de Santiago, vade retro!). Apenas uma aposta, por sinal inútil, pois só a geladeira custa 130 libras. Fora a grana da viagem. Mas uma idéia que pode ser resumida na frase de um DJ irlandês, que entrevista Hawks no dia de sua partida de Dublin: “Um idéia completamente sem sentido, mas uma puta idéia genial!”

Hawks mete o pé e a geladeira na estrada, e conhece a Irlanda e os irlandeses. E descobre que as idéias aparentemente imbecis são as melhores. No caminho a geladeira é batizada, pega onda (de verdade, tem foto!), conhece o rei mais pobre do mundo, é tratada como celebridade, exerce sua influência como tal e consegue bebida de graça para Hawks todos os dias (e muita bebida), e o coloca em contato com mais gente que ele jamais poderia imaginar. E Hawks, que parte com um rascunho de roteiro, percebe que as melhores coisas acontecem de improviso, basta estar atento a elas. Que o planejamento mata qualquer chance de espontaneidade nas pessoas (a quem me conhece, juro que estou tentando assimilar a lição).

E qual é o motivo principal de Hawks? Uma frase apenas: “Se eu tivesse…”. Hawks não quer envelhecer pensando, “Ah, se eu tivesse encarado a sério aquela aposta…”. Ele encara e vai. Corre o risco de se estrepar, e não se estrepa. E se desse errado, pelo menos teria tentado. Não ficaria remoendo para sempre o “se eu tivesse”. E o resultado é um livro despretensioso, divertidíssimo, hilário e revelador.

Hawks não parou com as apostas imbecis por aqui. Seus livros seguintes contam como ele desafia a seleção de futebol da Moldavia para uma partida de tênis, e como ele tenta emplacar um hit nas paradas de sucesso de qualquer país do mundo, no caso, a Albânia. Por quê? E por que não, se a aposta vale a pena? (E sempre por 100 libras, afinal, a aposta não é o mais importante mesmo.)

Enfim, dois livros de viajantes, viajadores, viajandões, às vezes. Um com pretensões filosóficas, outro humorísticas. Se alcançam o que pretendem, cada um que de o seu veredito. Eu já dei o meu, e escrevi esta resenha.

P.S. Crente de que, quanto mais formos o que falamos, melhores seremos, este que vos fala meterá a mochila nas costas e seguirá qualquer vento, ficando um tempo sem endereço. Meu nobre objetivo? Quanto menos invernos, melhor. Até depois!

Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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