Escritores são de Marte, gramáticos são de Vênus

Artigo em duas partes escrito por ocasião da morte de Napoleão Mendes de Almeida, em 1998, e só agora publicado
Marte e Vênus/Andrea Mantegna 1497
01/04/2003

Parte 1: Andradinos e Napoleônicos

Uma batalha silenciosa está sendo travada ao nosso redor, sem que nos demos conta. Uma batalha pela posse da língua. De um lado, em maior número, o povo brasileiro em sua quase totalidade; do outro, constituindo um grupo menor, mas nem por isso frágil, os gramáticos. Duas facções armadas até os dentes, comandadas por generais de primeiríssima linha, cujo objetivo é decidir se o português deve usar terno e gravata e ser fiel às normas de etiqueta, ou se deve correr descalço pelas ruas e pelos campos, quando não estiver pegando jabuticaba no pé. Trocando em miúdos: Mário de Andrade e a patota modernista versus Napoleão Mendes de Almeida e os acadêmicos do vernáculo.

Durante muito tempo alinhei-me com o povo, principalmente porque, dessa forma, estava me alinhando não só com Mário, mas também com todos os filhos do modernismo, de Manuel Bandeira a Guimarães Rosa. De Macunaíma a Grande sertão: veredas, respeitando-se as diferenças de matiz que há entre um e outro, refaz-se a Viagem de Descoberta do Brasil, de 1924, por meio da observação atenta da voz popular, da fala impura de imigrantes e sertanejos, ao se acolher literariamente o regionalismo, o arcaísmo e a gíria. Pregões de rua, relato oral, paródias cantadas, etnografia, etnologia e folclore, tudo isso é muito valioso tanto para a poesia quanto para a prosa de ficção. Como bem nos lembra Telê Porto Ancona Lopez: “Na presença da voz popular firma-se o reconhecimento, por parte do poeta culto, da dignidade da criação que existe fora da esfera erudita”.

Nesse pingue-pongue com certeza fútil para os que não nutrem grande interesse pela literatura — o coloquial versus a norma culta —, o que está em jogo não é apenas a pertinência ou não do trema ou do hífen nos compostos, mas, no meu caso, a procura do equilíbrio pessoal. Não há como suportar, por mais paciência que se tenha, ter de passar a toda a hora de um extremo a outro, hoje entre os que pretendem ser os donos da língua, amanhã entre os que desejam ser seus mais fiéis servidores.

Das trincheiras dos escritores, durante anos observei com um misto de curiosidade e ceticismo a figura do professor Napoleão Mendes de Almeida. Nessa época eu o via como o grande inimigo da verdadeira criação literária. Durante décadas Napoleão publicara a coluna Questões vernáculas n’O Estado de S. Paulo. Era também o autor da Gramática metódica da língua portuguesa, que esgotou mais de quarenta edições, e do Dicionário de questões vernáculas, além de ter criado o único curso de português por correspondência que de fato funciona. Esse curso sobreviveu à sua morte, mas eu o fiz em dois anos, quando Napoleão ainda era vivo, e posso dizer que me foi muito útil. O curso de latim, também por correspondência, tive que deixar para outra oportunidade. Mas adianto-me, é melhor voltar aos dias em que eu ainda via Napoleão como o inimigo número um dos escritores. Estávamos em guerra, ele e eu. Em lados diferentes. Porém numa guerra é difícil deixar de reconhecer e respeitar as qualidades de um grande general, mesmo que este faça parte das hostes inimigas. Ainda mais em se tratando de luta pacífica, envolvendo tão-só a inteligência e a erudição dos contendores. Neste caso torna-se questão de ética profissional honrar e homenagear um grande adversário, principalmente quando de sua morte (1998).

Do meu posto de observação, observava-o. Ele detestava Drummond, Graciliano, Rosa, todos os autores que admiro até hoje. Fazia-me torcer o nariz sua defesa inflamada, beirando às vezes o retórico e o panfletário, de certas particularidades gramaticais a meu ver fúteis, somada à sua conhecida ojeriza aos modernistas. No verbete Ensino do vernáculo, do Dicionário de questões vernáculas, podemos ler: “Escritor é o que tem forma e conteúdo; aquela terá quem conhecer o idioma; este, quem tiver erudição e, principalmente, cultura. Se somente a forma, temos o frívolo; se somente o conteúdo, temos o técnico; se as duas coisas, temos os escritor; se nenhuma delas, teremos o… modernista.” Logo adiante, no mesmo verbete do Dicionário, enquanto critica duramente um professor (cujo nome prefere omitir) por falta de ética profissional, Napoleão aproveita para atacar mais uma vez o modernismo: “Continua o iconoclasta, que chegou a candidatar-se a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras: ‘Ter por haver tem a consagração de um de nossos maiores poetas, … — ‘Tinha uma pedra no meio do caminho’ (As reticências estão em lugar do nome de um dos escritores julgados de vanguarda, por explicável coincidência um dos mais encontrados em modernos livros de leitura que se intitulam Livro de português, Português através dos textos, Português dirigido).”

Em contrapartida era — e ainda é — difícil não levar a sério justamente seu lado menos sisudo, mais histriônico e esculhambador, ao vê-lo, por exemplo, no verbete Língua portuguesa, descer a lenha na miscigenação lingüística da casa grande com a senzala: “Contaminados pela aversão ao dicionário e à gramática, aversão adquirida nas próprias faculdades de letras e de jornalismo em que colaram grau, noticiaristas encontramos que não se limparam em anos de escola das impurezas léxicas e sintáticas das cozinheiras e das babás. Se para elas a própria expressão processos sintáticos é desconhecida, como deles exigir que demonstrem tê-los estudado um a um e os apliquem cuidadosamente para evitar que o leitor se enfade com a própria notícia diante de desacerto de redação? A cultura do vernáculo no Brasil está sendo feita nas cozinhas, onde a contextura do período e do emprego dos vocábulos deixa de obedecer a receitas para constituir, quando muito, num trivial insulso, servido em mesa desarrumada. (…) Para justificar seu descaso à língua, ou acobertar sua ignorância, que muitas vezes é apenas pouca vontade de esforçar-se por sabê-la, os que são pouco diligentes no escrever procuram acobertar-se com o falso argumento de atribuir à língua vivacidade, não lembrados de que vivacidade de um idioma não se manifesta com enxertias bastardas, com estropiamento de sua sintaxe, com mutilação dos seus verbos, com demonstração de patriotismo doentio de dialetos, com emprego das armas de comunicação para transformar o idioma em algaravia de bárbaros, em terreno destruído pela ignorância de cultivo. Jornalistas medram, desassombrados, no trabalho de introduzir praga daninha nas colunas de que dispõem.”

Ou ao vê-lo, neste outro exemplo, descer a chibata nos vendilhões do templo que insistiam — e insistem — em usar abusivamente o artigo um: “Onomatopaicamente, um é a voz do habitante da pocilga; sendo em latim suinum adjetivo que significa relativo ao porco, a suinização da língua é o ato de em nosso idioma a todo o momento intercalarem, quer por ignorância, quer por influência do francês ou do inglês, o indefinido um”. O pontapé inicial do quebra-quebra foi a pergunta de um leitor. Resposta: “Sem dúvida, ‘São Paulo é uma cidade limpa’ não é frase castiça; o uma está de mais.” Seguem-se às chibatadas três regras para o correto uso do indefinido, sendo a última a que sugere que o suprimamos, “com elegância, antes de substantivo com função predicativa do verbo ser, se tal supressão convém à harmonia: ‘João é homem de mérito’, (…) ‘São Paulo é cidade limpa’. Mesmo sem o um, a afirmação do funcionário da prefeitura parece continuar errada.”

Ou neste outro exemplo, do verbete Redação: “‘Quem faz a língua é o povo’ significa: A língua é feita por soldados que invadem territórios sem escolas. Em países de escolas como a Inglaterra, a Alemanha, a França, a Itália e outros, cuida-se de conservar, não de deteriorar o vernáculo. Quem apregoa a inutilidade da gramática, baseado em ‘Quem faz a língua é o povo’, é cooperador da barbarização massificante de nossa gente. ‘Uma raça cujo espírito não defende o seu idioma entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser por ele absorvida’ — é afirmação hoje tão desacreditada por certos professores quanto para eles é desacreditado o seu autor, Rui Barbosa. (…) Se uma das primeiras preocupações de Hitler ao tomar a Polônia foi impor aulas diárias de alemão com prejuízo das do vernáculo, em nossa terra vemos nossa gramática e nosso vocabulário desprezados, não por ditador alienígena mas por derrotistas indígenas. (…) Umas poucas dezenas de locutores, de dirigentes, de artistas de televisão poderiam expurgar o idioma de todas as mazelas e diminuir de muito o trabalho de corrigir do professor de português. (…) ‘Nosso idioma é difícil’ — afirmam. Pergunto: Não será melhor dizer ‘Nosso idioma é desprezado’?”

Dizeres estes que também ecoam neste trecho do verbete Vernáculo: “A imposição de regras em lugar de sua explanação trouxe sua abolição, e a gíria substitui o vocabulário, o erro perverte o comportamento lexiológico, a incompreensão tomou lugar da sintaxe. (…) Não sabemos como fazer concordar este comentário, feito por um professor de matemática: ‘A maior dificuldade que meus alunos enfrentam ao estudar a matéria é não conhecerem português’, com esta deslavada confissão feita por um pretenso professor de português em aula de escola superior: ‘A língua é o que o povo fala; a gramática é o uso popular’.”

Napoleão, por onde passava, não deixava pedra sobre pedra. Mas, diabos! por que gramático tem de ser tão radical? Uma possível resposta envolve fatalmente um pouco de abstração. Vamos a ela.

A língua é muitas vezes comparada a um organismo vivo, em constante mudança e adaptação ao ambiente. Acho o exemplo apropriado — a essência da língua, como a da vida, é informação —, mas os que se utilizam dele precisam aprender mais biologia. A gramática da vida é armazenada no genoma, o conjunto de todo o DNA de um organismo. Se o DNA não preservasse eficientemente a informação original, teríamos câncer com freqüência ou não seríamos a cópia mais ou menos fiel que somos de nossos antepassados. Por outro lado, se o DNA fosse copiado perfeitamente todas as vezes, não haveria evolução e a base para a criação de espécies novas, mais adaptadas ao ambiente, já teria desaparecido. Os mecanismos de reparo do DNA permitem um meio termo entre estes dois extremos. Na natureza, sob a ação de pressões ambientais, as mudanças que ofereçam uma vantagem competitiva são selecionadas e transmitidas às gerações seguintes através do DNA. Voltando à minha comparação, o falar do povo, os experimentalismos, os estrangeirismos e os meios de comunicação produzem as mutações no padrão da língua. As pressões ambientais derivam de mudanças sociais, políticas e tecnológicas. Nesse contexto os gramáticos são o mecanismo de reparo, as enzimas do DNA lingüístico. Protegem a língua dos ataques da mutação desenfreada e garantem sua estabilidade. Sem eles, desfigurado pelos barbarismos, o português viraria um caçanje. Mas, como as espécies, a língua precisa evoluir senão morre. Se os gramáticos cumprirem seu papel, no entanto, apenas as mutações que se provarem resistentes ao tempo e eficientes no novo ambiente serão introduzidas na língua oficial. O conservadorismo dos gramáticos é necessário para evitar a proliferação de estruturas exógenas, para que o tumor não entre em metástase.

O parágrafo acima é brilhante. E radical. É a resposta de um amigo, José Colucci Jr., que me foi enviada por e-mail, à minha indagação eloqüente e azeda: “Por que gramático tem de ser tão radical?” Do lado de cá do campo de batalha, instigado por essa resposta sóbria, poética, e seguindo a orientação de Oswald de Andrade, que me dissera que deixasse de antropofagizar apenas os europeus e também começasse a pôr no caldeirão mais iguarias nacionais, decidi deglutir o professor Napoleão. A parte mais dura da empreitada seria me despojar de meu uniforme de combate e tentar vestir o do inimigo, a fim de entrar em seu território sem ser notado. Ou pior: uma vez lá, estaria correndo o risco de ser alvejado por meus próprios compatriotas.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho