“Você gosta da atuação de O’Toole em Lawrence da Arábia? Hoje, o próprio Peter a considera pesando mais para uma overacting… ”
Esse trecho de carta recente do amigo Gerald Glaser foi o que me veio à memória, na noite de 23 de março, quando a figura esguia de Peter O’Toole surgiu no palco do Kodak Theatre, para receber das mãos de Meryl Streep o chamado “Oscar de consolação” da Academia de Holywood, pelo conjunto das suas atuações no cinema. Glaser foi repórter fotográfico da Vogue em Roma, onde eu o conheci há mais de vinte anos, bebendo e fotografando — sem prejuízo de nenhuma das duas atividades. Era — e ainda é — um dos melhores amigos do ator, irlandês como ele e, como o astro, participante meio louco daqueles bons tempos ainda da dolce vita que se prolongaram pela década de 70. Saudades.
Quando a Record lançou T. E. Lawrence: morte num ano de sombra, em 2000, juntamente com a segunda edição brasileira de Os sete pilares da sabedoria, eu enviei dois exemplares para Londres: o primeiro para Gerald e o segundo — aos seus cuidados — para o “Lawrence” cinematográfico. Sei que Glaser não entende patavina de português, mas ele me respondeu com entusiasmo, dizendo que Peter havia achado bela a capa (o retrato do verdadeiro Lawrence, magnificamente por Augustus John). Em retribuição, mandou-me uma das suas fotos do amigo, nas roupagens branco-douradas do herói de Akaba.
Não foram poucas as vezes em que conversamos sobre T. E. Lawrence, sobre o filme de David Lean (que ambos admiramos) e sobre o seu protagonista, de quem Gerald foi companheiro de farra na juventude e mesmo depois, sendo o seu compatriota já uma “celebridade”. Irlandeses até a medula, na boa época geralmente se encontravam sem outro objetivo além das aventuras etílicas que sempre foram o “esporte” nacional da terra de Joyce. Foi por Gerald que fiquei sabendo que Peter O’Toole levou mais de vinte anos usando meias verdes, não por superstição, mas porque perdeu uma aposta, num pub qualquer. Pura questão de honra, o ator levou ao pé da letra a coisa: andou de meias dessa única cor, por duas décadas de peças mal combinadas. “A aposta era sobre escrever de trás para frente, algo que Peter (ou Pee-tah, na voz anasalada, com sotaque de Glendalough) é capaz de fazer sem maiores dificuldades do que encontra para inventar apostas malucas” — garantia Glaser.
Na noite de gala do cinema, tentei conciliar essa imagem com a do setentão agradecendo com as palavras de praxe — todas as sílabas perfeitamente destacadas — e também me fiz a pergunta do ex-fotógrafo da Vogue: — “Você realmente gosta daquela atuação dele?”
Na madrugada pós-Oscar, terminada a noite de vaias e aplausos nervosos, a falta de sono me fez rever Lawrence of Arabia em DVD duplo, lançado no ano passado com todas as honras, em tela widescreen e com a metragem restaurada nos 218 minutos originais da produção que hoje custaria 280 milhões de dólares. É ainda um filme fascinante, e em nada envelhecido nestes tempos de alta tecnologia e facilidades digitais etc.
David Lean filmou sem deserto de computador, sem camelos virtuais e com árabes de verdade, no Marrocos e na Jordânia, fazendo varrer as dunas depois dos inumeráveis ensaios, sob um sol de 50 graus à sombra (que chegou a derreter o negativo da película dentro das dezenas de câmeras) — e tendo que recuar, a cada tomada, com pessoal e equipamento, para filmar num deserto de areia imaculada, cujo “retoque” levava horas. Foram dois anos de trabalho quase enlouquecedor, mas valeu a pena. O filme é quase perfeito e, indiscutivelmente, o “melhor épico” já produzido pelo cinema, na opinião unânime da crítica — dessa vez endossada (o que raramente acontece) pelo gosto do público, que adora a saga de T. E. Lawrence roteirizada pelo mestre Robert Bolt.
No DVD, Steve Spielberg — que financiou a restauração — aparece para dizer que Lawrence é o seu “filme favorito” e, claro, não menciona a quase única restrição que pesa sobre a obra-prima: será que Peter O’Toole foi a melhor escolha para o papel do aventureiro enigmático? Ele o encarnou tão bem quanto o teria feito — imagina-se — Marlon Brando, uma das primeiras escolhas dos produtores? Brando chegou a fazer testes na Inglaterra, mas foi descartado em face da maior semelhança física do estreante O’Toole, com aquele olhar esgazeado que de fato lembra a expressão do verdadeiro Lawrence, nas fotografias abundantes da sua aventura.
Lean temia os “tiques” de Brando, com toda razão, mas a escolha final, pelo caminho da semelhança etc., não deixou de lhe trazer também os tiques da formação teatral de Peter, naquela encarnação crispada demais, ou “excessivamente nervosa e despida de humor”, conforme reconhece o próprio ator, na autobiografia que acabo de ler (para a conclusão deste artigo prometido a Rogério Pereira). Por ela ficamos sabendo que Peter O’Toole abandonou a escola com treze anos, em 1945, para trabalhar num armazém onde aprenderia a “arrebentar barbante sem tesoura”, até encontrar ocupação mais digna, como assistente de fotógrafo no Yorkshire Evening News (quando Gerald também se iniciava na profissão).
O jovem Peter logo iria abandonar as lentes para se engajar — com a sua inquietude — na Marinha. Mal esquentara os beliches pequenos demais para ele (1,87m), e já se declarava enjoado da mesmice do mar, para cair nas águas da Real Academia de Arte Dramática… A qual ficaria de imediato sabendo que estava lidando com um jovem irlandês cheio de iniciativa, conforme conta o próprio ator: “Um dos meus primeiros papéis foi o de um velho camponês georgiano, numa peça de Tchekov encenada pelo Bristol Old Vic. A mim cabia entrar, com o passo arrastado, e dizer: ‘Dr.Ostroff, os cavalos chegaram’, e sair pelo outro lado. Mas isso não era para alguém como eu, nos verdes anos. Resolvi que aquele camponês era, na verdade, Stalin… e assim o interpretei: entrei coxeando levemente, como Stalin, e até dei um jeito na maquilagem, de modo a lembrar a figura dele. Entrei, portanto, com toda a coragem e o ânimo de um estreante exaltado, fervendo de ódio contra a aristocracia russa… até que ouvi alguns sussurros e risinhos, me distrai e fitei, furioso, o Dr. Ostroff, a quem anunciei o seguinte: Dr. Horse (cavalo), os ostroffs chegaram!”
Cavalos, aliás, sempre estiveram presentes na vida do filho de Constance e Patrick O’Toole, corretor de apostas, alto, magro e chegado a um copo como todos os homens da família:
“Quando meu pai voltava das corridas, depois de um dia de sorte, a sala ficava toda iluminada, como num conto de fadas. Quando ‘Patty’ perdia, porém, tudo era escuridão e silêncio fúnebre. Ou seja, a velha maldição dos celtas: ou casamentos ou velório!”
Celta de Connem ara — “ a região mais selvagem e sem horizontes de toda a Irlanda”, segundo ele. O’Toole saiu desse país dos quadros de Jack B. Yeats para só voltar como o astro polêmico do super longa-metragem: “Lawrence! Fiquei obcecado por aquele homem. Isso não foi bom. Eu fui me tornando Lawrence — cuja família era irlandesa, vocês sabem. Dia após dia, suas estranhezas foram me penetrando e isso sem dúvida que atrapalhou minhas interpretações imediatamente posteriores. Tive, mesmo, uma espécie de desajuste emocional, depois do filme. Naquele programa antigo de Harry Craig, na BBC, ele chegou a dizer que eu estava meio mutilado para outros papéis, mas nem Craig nem ninguém pode saber o que é passar dois anos e três meses fazendo o mesmo personagem, naquelas circunstâncias de filmagem, terríveis. Só para ter uma idéia, numa cena do filme eu vi um close do meu rosto com vinte e sete anos e depois, oito segundos após, outro close quando eu estava com vinte e oito anos! Oito míseros segundos e dois anos da minha vida tinham se escoado para o fundo da escuridão atrás da tela. Você não sabe o que é ver isso, concretizado, embalsamado em película para sempre…”
Lembro de Gerald Glaser ter dito que, nos anos imediatos após as filmagens, seu amigo ficara visitando o túmulo de T. E. Lawrence, em Moreton, sempre que estava na Inglaterra e podia programar algum final de semana em Dorset (próximo também de Clouds Hill, o chalé do último repouso do herói da Arábia). Nesse envolvimento “extra-filme” — e do qual se tornou consciente o bastante para se “libertar”, um dia, de Lawrence — talvez esteja uma das pistas em favor da overacting que torna a atuação de O’Toole um pouco menos equilibrada do que o “tom geral” da narrativa cinematográfica do perfeccionista Sir David Lean.
Passados quarenta anos, a visão retrospectiva enseja, no videodisco de restauração completa da obra, talvez uma avaliação mais justa do personagem composto pelo astro que encarnou também Lord Jim, sob as ordens de Richard Brooks (e neste momento eu lembro do poeta pernambucano Tomás Seixas, que acusava Brooks de ter transformado o Lord Jim de Conrad num “Jim das Selvas atooleimado”)… além de Beckett e outros homens estigmatizados pela dúvida e pela angústia — essas marcas que são exclusivas do animal humano (o único que sabe que vai morrer). E isso sem falar nas atuações teatrais, que são as preferidas pelo ator:
“O teatro não tem a fixidez do cinema. O teatro é a Arte do Momento. Sou apaixonado pelo efêmero e odeio a permanência. Representar é transformar palavras em carne e por isso eu adoro as peças clássicas, porque é preciso saber interpretar… transformar todo o corpo num instrumento musical tocado por você próprio. Isso é mais, bem mais do que o behaviorismo que é tudo que você obtém do cinema. Meu Deus, o que são filmes, afinal? Apenas uma porra duma série de fotografias animadas, e mais nada. Mas o teatro! Ah, ali se pode encontrar a impermanência que eu amo. É um reflexo da vida, de certo modo. É como… construir uma estátua de neve… longe do deserto.”
Aos 72 anos, Peter O’Toole aparentava até mais do que isso, na noite de cerimônia do Oscar. Está bem gasto o ator — longe do deserto da alma de Lawrence e do seu próprio retrato quando jovem que aceitou o papel (recusado por Albert Finney) do herói “imortalmente moço”. De algum modo, ele ainda mantém algo do velho aplomb de celta apostador no cavalo bravo da vida — considerando o tanto que bebeu do seu cálice, no sentido figurado e também literal, a vida que levou, as marcas na mão esquerda (no colégio, as freiras irlandesas lhe batiam nesta mão, para “obrigá-lo a não ser canhoto”) e outros sinais do talento desenvolvido para, mais do que ambidestro, tornar-se o ator, ambíguo e intenso, do único superespetáculo ao mesmo tempo grandioso e intimista da história do cinema.