Está na moda falar mal de Rubem Fonseca. Assim como se usou, em determinada época, calça boca-de-sino, tatuagem de hena, tererê no cabelo e piercing na língua, falar mal de um livro novo de Rubem Fonseca está na moda. É in. Ainda que para isso faltem aos críticos na crista da onda números concretos. Basta dar uma olhada na obra do escritor para perceber que ela é marcada pela regularidade. A escorregadela em O doente Molière, livro escrito sob encomenda para a Companhia das Letras, é compensada, por outro lado, em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos — um dos melhores livros policiais brasileiros.
Geralmente, ainda, a pessoa que se atreve a falar mal de Rubem Fonseca, e simplesmente porque está na moda, usa um chavão que reza que o autor é melhor contista do que romancista. Besteira. A narrativa curta de Rubem Fonseca só é marcada por um experimentalismo formal um tiquinho maior do que nos romances. Nada mais óbvio, já que o conto permite este tipo de subversão estilística, por assim dizer. O romance é algo que preza muito mais a coerência e a construção dos personagens. Ainda assim Rubem Fonseca consegue transpor para o romance uma linguagem que ele tomou para si, marcada por um humor quase aforístico em frases com ritmo irregular. O ponto-final autoritário é a marca de Rubem Fonseca.
Diário de um fescenino não é diferente. Temos como personagem um escritor de nome inverossímil, Rufus, um lascivo, uma espécie de Casanova, fracassado como só os escritores de sucesso de Rubem Fonseca conseguem ser (sic!). Ele se envolve com várias mulheres, sempre teorizando suas investidas sexuais. Nesta vida que nem chega a ser promíscua, na verdade (ao menos não para os padrões atuais), ele acaba por se envolver com mãe e filha ao mesmo tempo. O rompimento da relação é um tanto quanto traumático e ele é acusado de estupro.
Para narrar esta história, Rubem Fonseca ousou cair no lugar-comum de um livro-diário. Ele começa em 1º. de janeiro, exatamente, e termina no último dia do ano. Há lapsos cronológicos, como em qualquer diário. E o tom é aquele de confidência falsa, de si para o mundo. Nada de diferente aí, a não ser pelo propósito nas entrelinhas que a estrutura desgastada esconde. Rubem Fonseca narra uma história de amor e crime. Alguns até falarão que é um livro sobre sexo. Tudo isso, porém, é pano de fundo para o autor fazer digressões a respeito do ofício de escrever e do hábito de ler. Algo caro a alguém que não dá entrevistas.
Ao narrar a história de Rufus, escritor de um sucesso só nas letras e vários na alcova, Rubem Fonseca não está querendo narrar a sua própria história. Não está querendo desenvolver subliminarmente o seu romance de formação, que no livro é o objetivo artístico de Rufus. Personagem e criador não se misturam, de fato. A não ser quando Rufus emite opiniões que destoam do tom sexual do livro. Nestes pontos, podemos entender um pouco melhor o escritor e um dos estigmas que ele carrega: o de recluso.
Rufus é um homem crítico de si mesmo a não mais poder. Sua vaidade, ele a transfere toda para a cama das amantes. Em literatura, sabe ter sido o autor de um só sucesso. Não à toa, ele descreve o diário que está escrevendo como chinfrim. O adjetivo que desqualifica a obra que está sendo escrita pode ser lido como um aviso aos leitores lineares. Afinal, diante de si tem-se um livro policial em forma de diário, mas há algo por debaixo do comum.
Diário de um fescenino poderia muito bem ser lido como uma entrevista que Rubem Fonseca não concede a ninguém. Porque Rufus, o protagonista do livro, que faz questão, a todo instante, de afirmar que um ficcionista não tem geralmente um alter-ego, emite opiniões sobre literatura muito mais do que participa de uma ação policial e muito mais do que transa com mulheres. Isso faz de Diário… um romance de idéias. Sem contudo, fazer o leitor cair no sono com é usual no gênero.
A principal preocupação de Rufus, neste sentido, é criar uma barreira entre criador e obra. Esta, por sinal, é uma das justificativas para Rubem Fonseca não conceder entrevistas de forma alguma. Ele disse, há muito tempo, e só para os seus, que tudo o que tinha de dizer constava em seus livros (o mesmo argumento, ao que me consta, de Dalton Trevisan e J. D. Salinger). Não queria, pois, ver-se misturado com seus personagens. Não queria que o leitor, ao ler Rufus deitando-se com Clorinda, lesse Rubem Fonseca com uma Clorinda qualquer da capa de Caras. Diário…, neste sentido, é uma apologia da liberdade de se criar, seja em terceira ou primeira pessoa, sem se ver misturado com a criatura.
Só que Rubem Fonseca trata do assunto como um profissional e não como um escritor de fim de semana. Logo, ele põe no romance a tese e a antítese para que o leitor, inteligente que ele pressupõe, faça sua própria síntese. Tanto assim que Rufus, o homem que defende uma barreira eterna entre escritor e personagem, usa e abusa, na sua vida, de diálogos colocados nas bocas de suas criaturas, ao longo de seus cinco romances. Se vai justificar o amor que sente por uma mulher, o faz de acordo com a fala de um personagem seu. Se vai romper um relacionamento, idem. Se vai argumentar algo com o delegado, também. Assim, vê-se cercado pelas suas criaturas, que mostram ter, sim, algo do pai. Ainda assim, Rufus diz: “Nada tenho a ver com as coisas ditas nos meus livros”.
Por outro lado, Rufus teoriza sobre um tal de Síndrome de Zuckerman. Zuckerman é um personagem do escritor americano Philip Roth que, uma vez tendo escrito um livro, é acusado pelas pessoas mais próximas de crueldade ao retratá-las de maneira absolutamente real, isto é, com defeitos, em sua ficção. Todos se identificam no livro. Logo, os leitores que sofrem da Síndrome de Zuckerman seriam aqueles que vêem uma verossimilhança demasiada em tudo o que lêem. Não conseguem ter imaginação. O que leva o personagem de Rubem Fonseca, em determinado momento, a ser taxativo: “literatura é imaginação”, diz ele.
Por tudo isso, Diário… funciona pouco como livro erótico, como está sendo vendido pela editora. Ele até contém sexo e creio que funcionaria bem dentro daquela coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva, que chamou erradamente João Ubaldo Ribeiro para escrever sobre a luxúria. Eis o livro sobre luxúria que tanto procuravam. De livro erótico, contudo, Diário… só tem uma que outra relação sexual. É antes de qualquer coisa um libelo em prol da dignidade do autor. Libelo sem ser panfletário, obviamente. Rubem Fonseca defende um criador isento de responsabilidades para com os leitores, a não ser a responsabilidade da beleza. Se o protagonista for um nazista, que seja: o escritor não o é (necessariamente). Se o protagonista for pedófilo, assassino, volúvel, mentiroso, impotente, bipolar, fundamentalista religioso, homossexual enrustido, enfim, nada disso é capaz, a priori, de dizer alguma coisa sobre o autor. Desde que, claro, o escritor em questão tenha a dignidade de se manter alheio à trama fantasiosa que cria. Só os maus escritores têm compromisso com a verdade.
Podem comprar Diário de um fescenino sem medo. Ele vale cada centavo dos R$ 33 pagos. Rubem Fonseca está em plena forma e mostra que o escritor brasileiro ainda sabe, sim, escrever com a pena do escárnio e principalmente com a da mentira, que, em última análise, é a matéria-prima de que é feita a boa literatura.