Por nossas vidas pequenas

Um conto de Flávio José Cardozo
01/05/2003

(…) pois o Senhor não deixa impune
quem pronuncia Seu nome em vão.
Êxodo 20,7

No bar que durante anos foi do Dal-Bó, dirijo-me a uns homens que não conheço (ou que não me ficaram na memória) e pergunto pelo fotógrafo Pedro Leal. Num censo rápido que andei fazendo assim que cheguei neste passeio, soube que vivem e moram ainda aqui o Américo Matos, o Nabor Guedes, o Paçoca, a Angelisa, o Rosalvo Duas-Foices, a Betina do Valmirê, a Dulcídia, o Irineu da Mirta. E outros mais, decerto. Pergunto agora, no velho bar que é tão outro, pelo fotógrafo Pedro Leal.

Quem, menino ou adulto, há quarenta, cinqüenta anos, não passou pelo olho de sua máquina, fosse para um retrato de primeira comunhão, ou de casamento, ou para tirar alguma carteira? Pedro Leal há de ter ficado com muitas cópias do que bateu e eu gostaria de dar uma passada nelas, relembrar pessoas. Me informam que ele morreu vai para mais de dez anos. E a mulher? Ela vive? Morreu também. E os filhos? Ficaram por aqui? Estou lembrado que eles eram uma escadinha de cinco ou seis, aos domingos iam todos juntos rezar o terço na igreja, Pedro Leal e a mulher na frente, um cortejo que sempre merecia a atenção de grandes e pequenos. Fico sabendo que, dos filhos de Pedro Leal, somente um não foi embora, o Tércio, aquele que casou com a filha do Amantino, o Amantino Fidélis, um que…

A citação desse nome é muito bem-vinda, me faz deixar de lado, por enquanto, Pedro Leal e as fotografias. Aí está uma lembrança forte e que no entanto me escapava, o Amantino. Bem que eu queria conversar com ele agora, passados tantos anos, minha avó Palmira e minha mãe falavam do ateísmo dele, sempre com nome feio na boca, e da santidade da mulher. O Amantino ainda é vivo? Os homens dizem que Amantino também está morto. E comentam: ah, esse acabou sendo um homem muito sofrido na vida. Chegou à velhice sempre com aquela tristeza, caladão, se remoendo, não chamando mais nome, o duro passado lhe fazendo peso por dentro, uma mistura de culpa e de amargura arqueando o corpo já arqueado pelos seus anos de mina — coitado, não podia mesmo esquecer o golpe que teve, podia? O senhor morou por aqui, era ainda criança, mas deve ter ouvido falar nesse golpe. Respondo que sim, sim, minha avó Palmira esteve presente ao acontecido, foi mesmo bem triste.

Pois é, o Amantino. Contam os homens que, quando, uma vez ou outra, já velho, ele conversava sobre o que houve, seus olhos brilhavam como os de um moço que acabou de ser assaltado, mordia a boca decerto para não falar demais, e terminava sempre dizendo, sem desrespeito, e também sem receio, que foi Ele, tinha certeza disso, foi Ele quem deu tamanho castigo à pobrezinha e santa Noemi. Não pronunciava o santo nome, só dizia Ele — Ele que sempre lhe pareceu tão longe (chegavam a dizer que era ateu, não, não era, apenas O sentia muito longe), Ele que acabou tão perto e tão terrível — e todos sabiam de quem falava e ninguém tinha coragem de discutir se Amantino estava certo ou errado, pois sofrimento alheio não se discute e cada um vê Deus conforme a consciência lhe permite.

*

— Demônio!

Deus Pai, piedade: é Amantino que volta da rua chamando nome de novo. Tinha chegado da mina sem problema, até brincou com a barriga dela de grávida, minha bolinha, minha barrigona, está quase-quase estourando, e lavou-se, falou que qualquer novidade que ela sentisse mandasse alguém correndo chamá-lo, saiu para dar uma volta no bar, como faz todo dia, foi e agora aparece assim, Deus amado, chamando nome. E ela, esperançosa Noemi, que estava tão contentinha. Ainda hoje de manhã, quando Dona Águeda veio vê-la, comentou cheia de animação: são já sete dias sem um nome feio aqui em casa, a senhora acredita? Dona Águeda disse que bom! e nada mais, embora gostasse muito do filho não botava muita fé nas promessas dele.

— Demônio! — ele repete.

Misericórdia, aí está Amantino outra vez com seu vício, Deus perdoe esse homem fraco de boca suja, fraco, fraco, falou que ia parar e não parou, eu sei que não é por maldade, Jesus bondoso, isso é como alguém que bebe e diz que não bebe mais e acaba sempre bebendo, não quero dizer que ele não tem culpa, tem, tem, a gente precisa lutar e corrigir os defeitos, mas isso nele é quase como um defeito de nascença, fala assim desde menino, aprendeu inocente escutando o pai, aquele sim um homem perverso, blasfemador e implicante, coitada da Dona Águeda! Cada vez que ela voltava da igreja era coberta de horrores, o prazer de Seu Nicácio era debochar das verdades sagradas, falava de Deus como não se fala dum bicho, morreu berrando heresias. Amantino não é assim, meu Deus sabe disso, ele é só um desbocado que nem pensa no que fala, tudo é um costume, um costume feio, muito feio, claro, quantas vezes já disse que isso não ajuda nada, pelo contrário, Amantino, isso traz é mais atraso a nossas vidas. Amantino, o cujo fica feliz de ser lembrado, o cujo a gente esquece, a gente despreza, Amantino. Quem disse que ele se segura, que ele freia a língua? De repente, seja por uma razão séria, seja por uma bobagem, lá vem demô… meu Deus, perdão, como isso me dói nos ouvidos e me aperta a alma.

— Demônio! — ele está mesmo bem transtornado, entrou e nem passou a mão na barriga dela, vai agitado beber água do pote. Que fogo que ele está trazendo por dentro? Não seja, meu bondoso Deus, nenhuma desgraça maior, tudo não passe de uma incomodação qualquer, como tantas que já fizeram ele ser assim gritalhão e ímpio. Bebe, bebe, quem sabe isso te acalma. A garganta parece mais estreita, os goles descem com ruído, depois há um longo resfolgo. Amantino bate com a caneca e se senta, as mãos fechadas sobre a mesa.

— Demônio!

Deus onipotente, quando dá é assim, é como um acesso de tosse, um tremor de sezão que se prolonga, uma enxurrada que desce, que depois vai indo, vai indo e chega uma hora pára. Noemi sabe disso e já segue um sistema, vai perguntar o que houve depois que a crise passar e só restar o silêncio, no máximo um nomezinho nojento se debatendo num murmúrio. Se perguntar agora, mais vezes vai ouvir o que não gosta, meu Deus bendito! Sete dias se passaram sem um grito, se ele por acaso falou no indesejável foi somente para si mesmo ou longe de casa, ali tudo estava como ela queria, mais respeitoso e mais calmo, dizendo palavras limpas. O sorriso de Nossa Senhora no quarto parecia ainda mais meigo, a fisionomia de Cristo no pano da cozinha ficou ainda mais confortante, a criança ia chegar numa hora feliz. E, então, súbito, é essa recaída. Ó meu Altíssimo, eu vos juro que um dia ainda vou fazer entrar na cabeça de meu marido que um homem batizado na fé cristã não pode ser assim. Se o pai foi o que foi, a mãe é tão boa, tão crente nos mandamentos, Dona Águeda é uma santinha que não pensa senão no Bem, e aqui também estou eu, Noemi, me esforçando na prática da religião, a lei de Deus apontando cada um de meus passos, será que isso não pesa, não serve de bom exemplo? Quando ele fala o que fala, esses nomes, pode-se até pensar que não serve mesmo, ai que eu quase desanimo, Deus da bondade infinita, mas não me deixo cair não: ele não invoca o malvado por gosto, é por raiva da nossa pobreza.

— Demônio! — diz Amantino ainda alto, mas já dando sinais de que aquele fogo arrefece.

Mais um pouco e ela pode falar, primeiro para saber o que houve, e Deus há de permitir que não tenha sido nada de pior, depois para repetir, sem cansaço, que não é com as forças do Mal na boca que o nosso viver melhora.

— Demônio! — diz ele um pouco mais baixo. — Desgraçado!

Noemi é paciente. A paciência é amor e o amor é tudo. Ela espera pelo silêncio, quando o máximo a se ouvir é o crepitar da lenha no fogão, o chiar da chaleira, algum uivo lá fora, um leve sussurro ainda do marido. O silêncio vem.

Jesus meu, não foi nada grave, não foi nada grave, não foi nada grave.

Na parede dessa cozinha, há dois panos bordados. O maior traz o desenho de pratos fumegantes e, num floreio bem feminino, os dizeres “Jantar saboroso, marido amoroso”. Noemi acha lindo, saboroso e amoroso rimam tão certinho, mas só deixa o pano ali porque foi presente de casamento de uma das melhores amigas. É tão raro nessa vidinha pobre um verdadeiro jantar… Os dois nem riem mais da melancólica graça que é o pano mostrando aquela fartura de comida e eles bebendo café preto com pão, às vezes com um pedaço de queijo ou de salame, ou então tomando um prato de minestra. Jantar saboroso… O último foi no aniversário dele, dia 23 do mês passado — galinha, macarrão, uma cerveja e gasosa, até pudim de sobremesa. O próximo será no aniversário dela, dentro de três meses. É assim, com raras variações. Nem por isso Amantino deixa de ser amoroso. Está na idade em que o sangue se agita só com um sorriso, um roçar de mão, pode vir torto da mina que nunca é indiferente a um carinho. Ano e meio de casados, ano e meio de mais namoro, até nesses últimos dias da gravidez acham espaço e jeito para se amar. Se brigam um pouco é por causa dessa balda que ele tem de, por qualquer miseriazinha da vida, gritar pelo demônio. No mais, é um homem bom, meu Deus do céu sabe disso, quanto jantar saboroso merecia esse homem amoroso.

O pano menor que está na parede traz a figura de Cristo apontando o coração vermelho. Diz, em letras azuis: “O Senhor nos ama”. Esse foi Dona Águeda quem deu. Noemi não passa um dia que não olhe aquele coração sangrento sem dizer a si mesma, pensando nela e em Amantino: o Senhor nos ama, a vida é dura, pisamos em pedras e espinhos, Ele nos ama, Ele perdoa nossas queixas e nossos erros e nos dá conforto. Noemi confia, hoje como ontem: o Senhor Deus Pai há de perdoar esse que é abusado no falar e relaxado na fé, esse que não aprendeu a se resignar na hora do sofrimento e da precisão, Deus Pai há de sossegá-lo. Porque tem vez que ele fica malcriado demais, fica, sim, como na semana passada, quando chegou revoltado com o Belmiro Coan, que reclamou, na frente de todo mundo, que o fiado dele estava muito alto, que assim não ia dar, resolvesse aquilo de uma vez por todas. O que Amantino chamou nesse dia pelo coisa-à-toa! Noemi chorou, ele insistiu, continuou tempo numa enfiada de gritos, ela acabou dizendo: “Amantino, chega! chega! ou fala no nosso Deus ou não fala nada! não gosto, não quero! isso me dói, isso me entristece! Deus está aí pra nos ajudar e só te escuto falando no inimigo dele! fala em Deus, em Deus, és criatura de Deus, de Deus!”. Ele então pegou-a pelos ombros, sacudiu-a: “E adianta? Tu vive falando em Deus, adianta?” Aquilo ofendeu. Foi como uma facada nas costas, não, nas costas não, no seu ventre, nela e na outra vidinha que, mais um pouco, ia vir ao mundo. Meu Deus, falar assim da minha fé, eu rogando sempre ao Senhor meu Deus, dia e noite, por nossa felicidade e o ingrato diz isso! Noemi não teve mais uma palavra o resto do dia. À noite, quando ele na cama a procurou, e fez-lhe carinhos, voltaram a conversar, e ele então prometeu mudar, fica descansada, disse, posso não chamar por Deus, não tenho jeito, acho que Ele está tão lá em cima e eu tão cá em baixo, mas pelo demônio não chamo mais, palavra de honra, juro. Foi um juramento por sete dias…

Agora já há silêncio, é só o estalar da lenha no fogo. Noemi se chega e bota a mão na cabeça dele:

— O que é que foi?

— Demônio! — a voz é pouco mais que um movimento dos lábios, ainda assim ela ouve o indesejado nome.

— Não fala assim.

— Pois não é pra falar?

—O que foi que houve?

— Demônio. Sabe a rifa do rádio que o Alaor fez?

— Sei, tu falou nela.

— Mandei botar o 23, dia do meu aniversário. Aí pensei: diabo, em tudo que é rifa sempre botei o 23 e nunca que eu ganhei nada. Troquei então pelo 22.

— O meu dia.

— Pois pra contrariar, pra mostrar que comigo sai tudo errado, deu o 23. O João Cipriano ganhou. Um rádio Zenith que pega até o estrangeiro.

— Que pena… E que bom também, Deus quis que não foi nada mais sério.

— Demônio…

— Não fala assim.

— A gente ficava um pouco com ele, depois podia vender, fazer outra rifa, era um dinheiro que vinha ajudar.

Noemi bota o café, o pão, Amantino pede a latinha de banha, quase sempre é banha no pão como se fosse daquela manteiga boa dos italianos do Doze. Mais uma vez é bem diferente do que está ali no pano, a vida é assim, pensa ele, uns com banha, ou até nem isso, outros com manteiga escorrendo pelos dedos. O pouco com Deus é muito, costuma confortar Noemi, Ele sempre faz o melhor por nós. Não vê agora? Estava tão aflita — meu Deus, o que terá acontecido com meu marido que chega assim nesse ódio?, lá fora dá tanta desgraça. De vez em quando tem um metendo a faca no outro, Amantino podia ter-se esquentado com alguém… Meu Deus não quis que fosse isso, foi só uma rifa que ele não ganhou, ganhou o João Cipriano, paciência.

— O João Cipriano tem fé em Deus — ela fala, ingênua, meio sorrindo, meio brincando. Lembra que João Cipriano é da Irmandade do Sagrado Coração, não tem vergonha de cantar alto nos terços e nas missas.

— O João Cipriano é o João Cipriano, eu sou eu.

Noemi aponta o pano do Cristo com o coração vermelho: quer mais uma vez fazer sua doutrina, mas sente que hoje isso é tempo perdido, e baixa a mão. Amantino está ali como uma brasa que basta dar um sopro e se acende, tão cedo não vai se conformar com mais essa falta de sorte. Sempre foi um jogador de rifas, nunca teve a alegria de ganhar uma. E nunca andou tão perto como agora, mandou botar o número certo, tirou, perdeu, continua pensando: não é o demônio?

— Demônio! — volta a dizer alto.

— Amantino… acontece… um dia, Deus querendo…

É quando ele não se agüenta:

— Deus querendo, Deus querendo… Mulher, não chateia. Não basta o demônio em cima de mim?

É demais, até uma alma generosa e mansa como Noemi não pode aceitar isso. Ele endoidou. São palavras que um cristão diga, um marido que, mais um pouquinho, já vai ser pai? Noemi treme, não sabe se de ira, se de tristeza ou de medo. Vem-lhe à memória a figura tortuosa de Seu Nicácio humilhando Dona Águeda: Deus meu, o filho estará ficando como o pai? Não, não hás de permitir que assim seja, meu bom Pastor!

Os dois se calam, a lenha também se apaga, a noite chega de vez. Dos três bicos de luz que há na casa dois estão acesos: no quarto, Noemi se encanta mais uma vez com as roupas do neném, menino ou menina, quem que sabe? Na cozinha, Amantino deita a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa, de vez em quando ainda resmunga, dá socos de leve.

Esse moço tem disso: depois de gritar seus nomes, e de ficar tempo calado, volta a querer conversa. Noemi já sabe que é assim, não demora ele vem pacífico, passa-lhe a mão na barriga, minha bolinha, minha barrigona, a voz nada lembrando a que ainda havia pouco se arrenegava daquele jeito. Só que hoje ele passou da conta, hoje bem que ele soube ofender. Nunca foi assim tão longe, Deus amado! Dizer que ela estava chateando, que já não basta o demônio…

Noemi se deita. E acontece, sim, o previsto, Amantino não demora e vem. E ela não cede, não se vira, não adianta agora fazer esses carinhos e beijar-lhe a nuca. O coração pergunta: tinhas de dizer aquilo, seu ingrato? Deus sabe que não é bem raiva o que está sentindo, é uma aflição fina que corta e golpeia, uma meditação dolorida, o que vai ser da nossa vida se ele pensa assim?, se ele me bota ao lado da mais detestada criatura?, a impressão que está tendo é de que nunca mais vai deixar de ser uma mulherzinha desprezada. Meu Deus, meu Deus, ele faz lembrar Seu Nicácio zombando de Dona Águeda…

— Noemi, fala comigo.

Não fala, e ele acaba dormindo. De manhã até que pode ser, não agora. Agora ela quer é rezar dobrado, pedir mais e mais a Deus pelo sossego dele, que não seja tão rebelde com as provações que Deus permite que a gente passe no mundo, se a vida já é trabalhosa mais trabalhosa ela fica vivida aos gritos, ai, meu Deus, fazei que ele entenda que acima de nós existe uma força que nos dá consolo. Agora ela só quer que ele durma e que os bichos do Mal não perturbem seu sono, que lhe seja de todo proveito essa hora de descanso, longe da mina escura e molhada, dos perigos e da dureza de cada dia. De manhã conversam. Dirá que foi melhor não terem falado à noite, antes de dormir, pois ele estava ainda tão agitado e ela ainda tão surpresa com o que ouviu. Dirá que o neném está quase nascendo — ninguém quer que ele viva numa casa cheia de rancores e gritos, quer? Imagine: um anjinho de Deus ser de repente arrancado de seu sono por aqueles urros sem controle… nem dá para imaginar, meu Deus bendito. Enquanto Amantino estiver botando o sapatão ou sua roupa de ganga, ou arrumando o lampião de carbureto, ou bebendo seu café preto, vai dizer-lhe que, mais do que nunca, é hora de paz: por nosso filho, Amantino!

— Tu não quis me escutar. Ficou chateada.

— Um pouco. Já passou.

— Eu sei, vais pedir de novo pra eu não chamar mais nome.

— Vou, sim. Por nosso filho que chega.

Amantino sente vergonha, quantas vezes já foi assim tratado como um menino teimoso? Vai de novo dizer que nunca mais põe na boca aquilo que ela não quer que ponha.

— Quando vier essa vontade de gritar nome feio, chama por Deus, Amantino. Deus, Deus, me ajudai! É como eu faço. Pensa que às vezes também não sinto vontade de me revoltar com a vida?

Ele sabe que não é verdade, tem certeza que Noemi nunca sente vontade de dizer qualquer nome que não seja o nome de Deus, fala isso porque é boa de coração, quer que acredite que os dois são parecidos. Não são. No mundo dela, Deus está sempre presente; no dele, Deus é uma ausência, é bem o que pensa dele, uma ausência, não sabe dizer isso com palavras, diz isso não falando em Deus, ela que fale pelos dois, fale, fale quanto quiser, nunca vai ser como o pai, às vezes pode até lembrar que é como o pai, longe disso, não é, a não ser nessas ocasiões em que se incomoda e grita. Noemi pode até ter medo que um dia ele fique mesmo como Seu Nicácio. Não, isso não tem perigo. O que tem é que não se acerta com a idéia dela de querer que chame por Deus, não se acostumou. Falta de fé, heresia? Não, acha apenas que Ele está longe, muito longe para ouvir sua miserável vozinha de operário. Se o Job, encarregado da mina dos Ruzza onde trabalha, já é grande diante dos seus homens, se o Ascensão, feitor da Companhia, é maior ainda, se o doutor Ismálio, que é o gerente e mora no Castelo, não tem o que ser mais importante e nem se sabe o que fazer quando ele chega perto, o que dizer então desse Deus que fez tudo o que há no mundo, que sabe tudo e que manda em tudo?

Ela insiste:

— É tão fácil dizer: meu Deus, meu Deus…

— E adianta?

— Deus do céu, se adianta! Sem Ele não somos nada.

— E com Ele o que é que a gente é, mulher boba?

Ó meu Deus, que ofensa, que loucura! Será que ouvi mesmo ele dizer isso? Não me falte ânimo, meu bom Deus, para responder em vosso santíssimo nome.

— A gente é o quê, Noemi?

Ela se sente trêmula. Muito trêmula.

E então, cá nesse enclave de carvão na raiz da Serra, na primeira hora de mais um dia de cheiros sulfurosos, braços tenazes e esperas angustiadas, acontece o inexplicável. Na mais precária das casinhas de tábua podre da rua Japuíba, o terrível, o que homem algum está preparado para ver.

— Deus, Deus! — clama Noemi. — Deus, Deus, livrai-nos do Mal, protegei-nos!

Amantino se assusta, sua mulher nunca falou tão alto, a voz é outra, aí fora devem estar ouvindo isso que já não soa como oração, é mais um chamado urgente.

— Noemi, estás gritando.

— Meu Senhor, meu Deus, cuidai de nossas vidas!

— Não grita assim.

— Deus amado, nossas vidas… nossas vidas Vos imploram…

— Noemi!

Ela está caindo, demônio, ela não está bem, ela está caindo, Amantino consegue segurá-la antes que vá ao chão com todo seu peso, o que será isso? Os olhos estão revirados, à luz ainda fraca da manhã sobressai um rosto branco, uma brancura de quem vê alguma potestade espantosa, as mãos vacilam e são frias. Amantino não sabe o que fazer, sabe é que isso é grave, leva Noemi até à cama, dá-lhe correndo um pouco d’água do pote, depois vai à janela e grita a quem possa ouvir: socorro! socorro!

— Corram, corram, chamem Dona Palmira.

Manhã sufocante. A criança está nascendo, Dona Palmira diz que é uma menina, ajudem Noemi, ajudem senão ela morre.

Fraqueza do coração, falou-se. Na última golfada de ar, ela ainda teve o nome de Deus na boca.

Amantino passou os seus muitos anos sem ela, achando que foi castigo. Tadinha, era Deus toda hora, toda hora, por nossas vidas tão pequenas. Deus em vão, o nome sublime em vão, não está escrito que Ele não gosta? Tadinha, se incomodava tanto com as raivas dele…

*

Vou à casa de Tércio, que se casou com a filha que Noemi nem chegou a conhecer naquela manhã dolorosa. É ela quem me atende, chama-se Teresinha. Me diz que as fotografias deixadas pelo sogro Pedro Leal estão todas com um outro filho dele, o Nenzinho, morando hoje em Laguna. É uma caixa grande, ela lembra, o Guatá inteiro deve estar dentro dela. Não é má notícia. Quando passar por Laguna, na volta deste passeio, vou procurar Nenzinho, quero reencontrar na caixa muitas pessoas daqueles tempos.

Pergunto a Teresinha se ela não tem ao menos uma fotografia do pai e da mãe. De Amantino conservo ainda a imagem, de Noemi é que não me ficou nenhum traço. Ela sai e volta com duas fotos. Uma de vovó Águeda, por quem foi criada. A outra dos pais no dia do casamento. Uma foto bem gasta essa, vê-se que já foi vista muitas e muitas vezes. Os dois estão contentes, não estão? Teresinha se enternece. Sim, vê-se que é um casal em dia de festa, Noemi muito sorridente, Amantino um pouco menos, ele sempre foi assim meio sério. Na letrinha dela, atrás da fotografia, está o registro: “Eu e Amantino, 12 de junho de 1947 — Deus nos ajude”.

Flávio José Cardozo

Autor de Singradura, Zélica e outros e Que nem punhais (a publicar)

Rascunho