Agora, Turco, que você não morre mais, entabulo contigo esta breve conversa no escuro. E te confesso, mal sei por onde começar — tanto a vida andou conosco, e tanto tempo, meu Deus!, que temo errar de mão e pôr isto aqui em lágrimas, a última coisa que você desejaria de nós, os teus amigos, mesmo sob o signo da cumplicidade que nos embalou esta vida cachorra durante quase 40 anos. E que agora, sem dó nem piedade, a morte horrível usurpa, trai e vilipendia.
Desnecessário dizer que o teu riso mordaz — pronto a transformar em pó de traque a caretália dominante —, fica conosco — mais lição do que lembrança, e a ternura com que você se debruçava sobre nossos toscos textos ou a nossa vida pessoal tanta vez dilacerada, não haverá, por certo, quem os substitua — a um ou à outra. Esta conversa no escuro talvez seja maior que nós e denuncie Deus com uma veemência — desusada em nós quando se tratava do mistério e do Destino.
Lembro da gente feito dois meninos, o que, a rigor, nunca deixamos de ser — moleques em nossa constante irreverência, imitando pompílias & valfridos, você que era capaz de rir até mesmo daquilo que o matava. Que dizer de si ou dos amigos que o amaram sempre com um admiração alguma vez atônita e desesperada?
Não tenho outro modo para situar a tua passagem por nossas vidas senão lembrando que você foi o desvelo, a promessa, a sempre renovada esperança. E a tua generosidade, sobretudo a tua generosidade intelectual, há de nos servir de guia e caminho. Este, sem dúvida, o teu maior legado, ao pequeno círculo de amigos que o acompanhou praticamente por toda vida — de Fábio Campana a Nêgo Pessoa e Aroldo Murá, de Pissetti a Roberto Requião, do saudoso Vinhóles ao igualmente saudoso e saltitante Perly, o dândi velhote que, um tempo, conosco levava a madrugada ao cais da aurora.
Os teus livros, estes hão de nos sobreviver a todos, porque você foi, Turco, aceite ou não, o melhor de nós, animado por uma chama a um tempo genial e diabólica. Não serão o teu enrustimento, a tua incurável timidez, capazes, garanto, de anular o que neles é alta lição da melhor arte literária, ali onde você foi, queira ou não, Turco, mestre consumado. Você sabe, também, que isto aqui não é, em hipótese alguma, um elogio fúnebre. No máximo, um preito de gratidão e de saudade…
Lembro de nós, lembro tanta coisa que juntos vivemos, e quase nem consigo ir adiante neste texto, Snege, posto que não alcanço me defender de mim mesmo, de minhas agruras e fragilidades. E se cá ponho as vísceras de fora, lúgubre, lutuoso, é porque você merece de mim esta pública confissão aqui — sentimental, talvez, aceito, mas que tem, ao menos, a salvar-lhe, a mais absoluta franqueza e a mais absoluta sinceridade. Disso não me acuse, Turco, de não estar falando a verdade.
Você vai fazer muita falta. Aliás, você já está fazendo muita falta. Continuarão por aí os falsos literatos armados só de vaidade e suficiência; a província continuará passeando as suas fabulosas nulidades oficiais, cheias de gestos e ademanes, talhadas em ternos impecáveis e sem alma alguma que as comova ou abrigue; seguirão, enfatiotados e arrogantes, os mediocrões medalhados.
Só você não estará mais aqui para rir na cara deles aquele teu riso espantoso — de dentes graúdos e agressiva barba grisalhada, chamando-os aos brios — no uso da mordacidade punhal com que você, aos babaquaras, não perdoava.
A pasmaceira, Jamil Snege, sem você, é e será só um osso — duro de roer.