Recorda o aroma de cafés na sombra (I)

Já animada do ar noturno, nos dias do tão recente que parece ontem, longe das luzes de um McDonald’s
: Faz diferença só a Acrópole, iluminada à noite, empoeirada como uma gaiola de colunas que cedem um pouco mais, a cada ano
01/06/2003

Já animada do ar noturno, nos dias do tão recente que parece ontem, longe das luzes de um McDonald’s onde era o “Lumidis” (o café dos literatos), desaparecido como o Zakaratu, vizinho do Parlamento, o Hellenikon das latadas de gerânios, o Kolonaki dos gradis enrolados por plantas trepadeiras parecendo ferrugentas como as lanças.

Quando a porta se fechou — e Giuliana foi delicada, não bateu, teve o cuidado de não ser brusca —, a lingüeta se encaixando na ranhura à medida que o trinco era solto (o que evita o som martelado de uma porta que “bate”) — eu já sabia que não iria receber carta porra nenhuma. Era só uma metáfora para adeus, um selo de despedida: “eu lhe escrevo de Milão”.

Jornalistas, escritores e artistas também freqüentavam a pastelaria Lycovrisi (a “Colombo” de Atenas), não a maior, nem necessariamente a melhor da cidade de paladar tão aguçado para doces e discussões antigamente elegantes, os argumentos lançados como as coberturas daquelas coisas maravilhosas que se chamavam Nikké — talvez porque lembrassem alguma alva fatia de perna de moça lavada pela luz vaga da lua, no mar.

São de se recordar também aqueles pequenos cafés da praça Omonia, igualmente desaparecidos, e os outros — meio “ouzeries”, meio cantinas — onde se podia beber tanto o “ouzo” como a xícara espumante, ao gosto turco, ouvindo a história incompleta (ou, pelo menos, bastante confusa), sobre a herança de algum comerciante que houvesse morrido e deixado viúva ainda jovem. Você ouviu alguma dessas histórias? O mais curioso é que as viúvas de fato arranjavam, mais tarde, um marido ou um amante que dilapidavam o seu patrimônio — como no caso, dos mais notórios, do importador de bebidas que tinha vindo, menino, de Thera, sem um dracma no bolso. Era o que se dizia. E que ficara trabalhando, anos e anos, para um turco de Chipre, dia e noite, sem descanso, até tornar-se sócio do sujeito no negócio, onde tomara ára si vender, o vinho espesso da sua ilha (do qual chegara a possuir a exclusividade), embora não apreciasse o vinho de Santorini ou de outra qualquer origem, porém soubesse vendê-los como ninguém.

Levantei-me para vê-la chegando à calçada — após o tempo de descer quatro lances de escada (o elevador não estava funcionando, mais uma vez). Eu via a sua cabeça, os óculos sobre a testa, o elástico que amarrava o cabelo num rabo de cavalo juvenil, brejeiro, que combinava com as sardas delicadamente pintalgadas (um pouco na face e nos ombros), sendo que ela tornava engraçada a história de que estava sempre se quebrando numa perna, num braço, no pulso, na mão tão bem desenhada.

Atenas era ainda a cidade — de “ar balcânico” — que Sandro Viola recorda e vê perdida: “Atenas deu adeus à sua face levantina”…

Como discordar dele? A cidade tem, hoje, o rosto desgastado de uma cidade qualquer do seu lado da Europa, cheia de coisas novas e sem personalidade, no lugar das “coisas gentis” que se acabaram. Faz diferença só a Acrópole, iluminada à noite, empoeirada como uma gaiola de colunas que cedem um pouco mais, a cada ano.

O monumento toma injeções de concreto nas veias de pedra, todos os dias, como um doente quase terminal da arquitetura. Um dia, talvez desaparecerá como os modos de alguns garçons dos cafés perdidos que Sandro Viola rememora (alguns sumiam da vista dos clientes pobres, para evitar se impor, com as suas toalhas, a alguma mesa que não houvesse feito, ainda, nenhuma despesa), junto com o frio do mar que lavava os pés de mármore de Sephora, a espanhola de Gibraltar que dançava o flamenco na Plaka.

Alguns letreiros e marquises impediam que eu visse a evolução completa do seu caminhar (eu quase perdera, quando ela havia posto os óculos escuros) sob o sol tão minucioso, sendo que o seu passo de tênis não era rápido nem preguiçoso, na claridade que retalhava as silhuetas nas pedras, no asfalto quase branco — que agora lembrava o maiô de cal sobre a carne pálida. Havia explicado: “estou gorda demais para o biquíni na bolsa” (o que não era verdade). Lembrei disso e não me lembrei de ter dito que não era verdade, não é engraçado? E então a desejei com um desespero tão fundo que doeu, fisicamente, no corpo debruçado sobre uma janela aberta de Atenas, “o melhor lugar para despedidas”, diz a canção. Não é mais.

Em sua tristeza, para Sandro é importante que quem o escute possa entender: um dia, houve uma Atenas realmente branca, de casario baixo “a um passo do mar onde todos iam se banhar no final da tarde”. Levantava-se a vista, e as altas colinas ecoavam os nomes longínquos, decorados para as provas dos liceus romanos (Sandro é da Emília dos castelli de além Appia), com os bustos de atenienses antigos, os olhos vazados nos corredores que as férias lustravam de quietude.

“I resti dell’antica Grecia avrebbero avuto quello stupendo risalto se tutt’attorno ci fosse stata una citta con le massicce, pretenziose architetture europee dell’Ottocento e primo Novecento?”

E o Partenon — prodígio que sucumbe — invadia o quarto dos hotéis mais altos, pela janela aberta para a noite pressagiada pelo cinza do crepúsculo espetacular entre as colunas, onde ainda podia acontecer de se estar sozinho, na parte mais vazia do templo, antes do turismo. Quem sabe, um velho milagre talvez pudesse se dar (como só se dão os milagres com os quais já não se conta), nos jardins de acesso ao velho emblema corrompido da cidade, onde fizesse se ouvir algum pássaro mitológico entre as flores extenuadas? “Desde a colina ao pé do templo até o jarro de alabastro que jaz agora neste quarto, testemunha dos verões gregos e das pérolas na fronte pura, porejada de nervosismo, da ninfa no seu primeiro encontro”…

Ninfa? Há aqui algum engano — ou qualquer tom elegíaco que soa desmesurado para o vulgar amor de dois jovens num quarto de hotel barato, a moto lá embaixo, estacionada, e “ninfa” no quarto do vaso de alabastro da cor do corpo já desnudo e mal protegido pela gaze da cortina leve de luzes da rua obscura, quase apagada da memória.

“Ela via o Partenon…” — canta Elytis, num poema inédito, e que deslizou para debaixo da cama da literatura (Giuliana sabia dessas coisas do modo mais misterioso, não perguntem como e nem por quê; o importante é que fixem a janela que dá para a Acrópole, o monumento como sempre suspenso, “maciço e etéreo”, por sobre a ruína da realidade.)

Na falta de outro assunto, o poema trata do casal mais tarde separado, ela diante da mesma visão — “o grande templo quase ao nível dos olhos” —, em face daquelas janelas que dão para a “eternidade” do peristilo que o sol queimou o dia inteiro, tornando clara a ligeira inclinação progressiva cujo cálculo é a suprema sutileza do monumento calculado quando, já no século 5, se retardava o declínio da “sagrada colina à beira do abismo”:

La grazia di Atene…

Quando ela partiu, eu compreendi que estava sozinho de um modo novo — diante da onipresença, quase, uma ruína que já havia, na verdade, desaparecido de si mesma. Isso parece idiota, mas é como ela havia dito: “a Acrópole é uma miragem que não merecemos e que deixamos de compreender” (depois, eu encontraria a frase, sublinhada, no livro do professor grego, que ela não “tivera tempo de devolver” — e eu, por meu lado, não quisera remeter para o seu endereço de Milão, pelo correio, assim me separando daquela letra gordinha que assinalara partes do texto bilíngüe e desenhara até mesmo um engraçado chinês zarolho na última página de guarda).

Por que estou condenado a seguir lembrando dessas coisas com uma atenção tão concentrada, de modo que a realidade presente e a realidade lembrada para mim são duas cargas, dois pesos demasiados? Lembro dos seus tênis debaixo da cama, virados. Dava azar (qualquer sapato virado), e eu desvirava. Recordo outros detalhes, um pijama que ela usou, infantil como as roupas compradas na Disney, e que poderia me irritar se não lhe houvesse dado o ar folgazão de uma adolescente que fazia a sua primeira viagem ao exterior, na companhia de colegas rindo no quarto de hotel suspeito onde havia vaga, no pico da temporada. O modo como as adolescentes riem (e nunca mais rirão)… Seus pés rosados, que o mar lavou (o mar piedoso), por que dói a recordação? Todas as pequenas recordações sem lugar na futura conversação (sendo então obrigatório silenciar sobre esses nadas, essas sobras boiando sobre a água do banho que foi para alguma dobra úmida da minúscula eternidade de piscina vazia, de luz esgazeada porque você olha bem de frente para sol entre as colunas do Partenon)?…

Atenas, a graça de Atenas, não estava li, mas no conserto da sua sandália — se é que me entendem. Uma pessoa pode enlouquecer porque os outros não compreendem quando ela concentra, numa miniatura lateral, o todo da graça imortal de um monumento arruinado. A moça se debruça sobre uma torneira do antigo hipódromo (onde agora Santa Sophia se ergue, entre jardins cuidados), e isto é Istambul num frasco de água mineral de novo cheio, até à borda, de água das fontes de ablução ou das cisternas afundadas, de maneira que a mão, a sua branca mão com algum enegrecido anel de prata colhe a água potável enquanto eu também fazia o mesmo, pela primeira vez, e pensava nas mulheres bizantinas que haviam morrido, aquelas damas romanas com seus espelhos de cobre e ungüentos de beleza, à luz vacilante da barbaridade — literatura — quando tudo que havia realmente para ver era a revoada dos pombos, no ar resfriado pelo Bósforo sem nuvens, tudo cortado à faca e facilitando o recorte dos palácios gradeados do cais de gaivotas suspensas enquanto os bares se acendiam como pirilampos, na margem, e havia ainda a promessa de quietude final no apartamento do hotel da ruazinha de jasmins pungentes, perto da torre de Gálata.

Gálata? Meu deus, a Turquia no lugar da Grécia, as imagens por um momento se trocando como quando alguém chega e se deita, exausto, na cama arrumada pela camareira que nunca é vista. Fica difícil separar as águas que banharam civilizações e os pés rosados de Giuliana, em Atenas, tenho certeza, agora estou no controle da memória seletiva que fotografa, na Plaka, o peito do pé nu à espera do conserto da sandália (a correia havia se partido), o elo estava perdido coisas tão grandes como a perfeição antiga da Acrópole e aquele calçado levado pela mão, jardins abaixo, para o centro empoeirado da cidade que vogava na onda de calor mediterrâneo feito de terraços inúteis, de gerânios cansados. Isso foi em Atenas e não em…

Posso completar a frase: La grazia di Atene: l’essere cosi dimessa e discreta — até que tudo se apaga e eu fico só mais uma vez, porém daquele modo diferente, de ficar de repente só nas cidades de ruas palmilhadas, antes, em plena felicidade. Voltar a elas, então, sozinho e abandonado, causa uma dor acutilante, estranha, de profanação aumentada pela ausência que desfigura as praças, as ruas subindo para o sol, as escadarias descendo para o mar frio vindo trazer, do fundo emparedado da solidão, o peixe cego do pressentimento da morte (que é só não mais estar aqui).

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho