Maquinações do mundo, mundanidade da máquina

O que une e afasta Campos de Carvalho e Lobo Antunes, e suas contradições
Capa de O púcaro búlgaro (Civilização Brasileira)
01/06/2003

1. A insanidade e o riso
Os romances de Campos de Carvalho extraem a energia que os mantém vivos da rejeição das convenções realistas, justamente as que, no século 18, sagraram e consagraram o romance como o gênero predileto da burguesia. E faz isso mergulhando fundo no fluxo das idéias e sensações do consciente tocado pela sua cara-metade, o inconsciente. Em todos eles o que dá consistência à espinha dorsal narrativa é a ética da insanidade e a lógica dos sonhos, se for lícito atribuir ética e lógica ao que não conhece nem uma nem outra. Mas as personagens e as peripécias desses livros não brotam só do onírico e da loucura, do contrário poderiam ser facilmente incluídos no ramo genealógico em que se encontram, no plano universal, Ulisses e Finnegans wake, de Joyce, e, no plano da literatura brasileira, O agressor, de Rosário Fusco, O sofredor do ver, de Maura Lopes Cançado, No coração dos boatos, de Uilcon Pereira, entre outros. Digamos que o onírico e a loucura são a plataforma ideal em que está assentada a arma principal dessa batalha estética: o humor. O sonho carregado de situações satíricas, o cotidiano saturado de comédia e de crises de riso, a prosa tecida na forma de sucessivos mosaicos, como se o próprio autor delirasse ao mesmo tempo em que escrevia, passando para o papel a malha mal-costurada de suas visões — é com tudo isso que está envolvido o romancista mineiro.

O riso nunca esteve longe dos textos de Campos de Carvalho, que estreou justamente com a coletânea de ensaios humorísticos Banda forra. Os livros que vieram a seguir, as crônicas que publicou no Pasquim e os contos esparsos, estampados aqui e ali, todos trazem a marca da ironia e do deboche. A rigor, apenas o romance A chuva imóvel e o conto Espantalho habitado de pássaros abrem mão dessa vertente, optando pelo sisudo caminho da ruminação existencialista, pelo ceticismo sem o sabor da sátira. No outro extremo dessa postura está o nonsense levado às últimas conseqüências, a indignação que não dá espaço para o niilismo que não venha na forma da mais pura esculhambação. Ocupando esse posto avançado na obra desse prosador está seu trabalho mais iconoclasta: O púcaro búlgaro. A estratégia aqui adotada, a mesma da qual Kafka fez uso inúmeras vezes, propõe que um fato assombroso seja apresentado nas primeiras linhas do relato, seguindo-se, no desenrolar da narrativa, a exposição das conseqüências mais ou menos óbvias desse fato. O espanto diante do púcaro búlgaro no Museu da Filadélfia jamais será superado, nem pelos detalhes da organização de uma expedição que alcance a Bulgária nem pelas figuras sui generis — o professor de bulgarologia, Radamés Stepanovicinsky; Pernacchio, italiano de Pisa; Ivo que viu a uva, descendente em linha direta do sábio hindu que inventou o zero; e Expedito não sei do quê, que pelo nome foi imediatamente incorporado à expedição — que atendem ao anúncio de Hilário. E o “espanto geonomástico” devagar vai dar ensejo não ao pensamento concatenado, não à determinação disciplinada com vistas a um objetivo claro, mas ao vaivém do acaso e da sorte, do humor e da insanidade, cujo desenlace será jamais haver desenlace algum, pois a partida dos expedicionários está fadada a se concretizar apenas numa mesa de pôquer. O mundo centrado no púcaro búlgaro, que passamos a conhecer por intermédio do que Hilário anota em seu diário-de-bordo-em-terra-firme, é o dos chistes e das anedotas absurdas, da alucinação e do desregramento sensorial, mas é também, por tudo isso, o nosso mundo. Se houvesse um ponto de apoio que determinasse com clareza se o rei dos cegos está nu ou se somos nós, observadores de vossa majestade, que, por falta de olho, acreditamos em tudo que nos dizem… Mas não há. De certo modo, Hilário e os demais expedicionários são tão dementes quanto os primeiros hóspedes recolhidos por Simão Bacamarte na Casa Verde, logo de sua construção, tais como o Falcão, rapaz de vinte e cinco anos que supunha ser a estrela d’alva, ou o João de Deus, que dizia ser o deus João, ou o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que pronunciasse uma só palavra todos os astros despencariam do céu.

Mas estas figuras estão cuidadosamente cercadas pelas paredes do realismo machadiano, cujo narrador onisciente em momento algum se deixa levar pelas súbitas flutuações de cunho “científico” de Simão Bacamarte. Por maior que seja a divertida semelhança entre essas figuras e as personagens do Púcaro, a loucura só extrapola os portões do sanatório no segundo caso, e o faz com tamanho ímpeto que atinge com isso a mente do narrador, do autor e do leitor. Porém, justiça seja feita. Das inúmeras obras de ficção que nos últimos cem anos abordaram a alienação mental e os alienados, tudo indica que somente a novela de Machado de Assis associou ao tema a tão bem-vinda ironia, ao relativisar a definição de insanidade (uma vez que quatro quintos da população de Itaguaí encontra-se recolhida no sanatório, é lógico supor que, se a loucura não é regra mas exceção, apenas os destituídos de qualquer desvio devem ser considerados loucos, ao passo que os loucos devem ser considerados normais e liberados o quanto antes), incluir os desajustes morais (arrogância, ganância, vaidade) na categoria dos desajustes psíquicos e no final inverter também esta disposição: apenas as virtudes, porque mais raras no ser humano, são os verdadeiros sintomas de demência. É o mundo às avessas, o sorriso quando e onde deveria haver lágrimas.

2. A máquina do mundo desgovernada
A prosa brasileira está repleta de aventuras vividas e contadas por doidivanas. Além d’O alienista, o caso mais conhecido talvez seja o d’O louco do cati, de Dyonelio Machado. Exemplos menos famosos, mas não menos importantes, são os contos da coletânea de Maura Lopes Cançado, já mencionada aqui, o romance de Fernando Sabino, O grande mentecapto, e os de Carlos Sussekind, Armadilha para Lamartine e Que pensam vocês que ele fez. O próprio Campos de Carvalho não deixava o tema escapar tão facilmente, basta lembrar do hotel-sanatório d’A lua vem da Ásia, sua primeira obra-prima. De fato, o tema já foi explorado de diversas maneiras. A diferença está no tratamento dado a ele. N’O púcaro búlgaro não há o narrador onisciente, o vendaval da consciência insana não é reportado pela boca de alguém de plena posse de suas faculdades mentais. Quem assume o controle agora é o próprio louco. Pior (ou melhor!): o alienado que domina a cena não é tão-só o melancólico ou o deprimido, os dois encarceirados no mundo; é, antes, o sujeito que ri da própria sina e da sina alheia, o indivíduo que, como Sócrates, sabe apenas que nada sabe e faz questão de que os tolos também saibam disso, e como Diógenes, passeia com uma lanterna acesa em plena luz do dia à procura dos homens honestos. Isso ele consegue graças ao péssimo ficcionista que é, ao menos para os moldes clássicos, acumulando disparates tirados de pesadelos e amontoando cenas cômicas — cuja intensa carga dramática não exclui a opressão do espírito —, que acabam por converter o que deveria ser trágico, melhor dizendo, apenas trágico, em algo negramente engraçado.

O aspecto mais perturbador da insanidade, amplamente usado por Campos de Carvalho, é a obsessão pelo casual, que bem ou mal traduz-se na valorização do pequeno, do insignificante, do detalhe de somenos importância. Dezenas de incidentes de pouca monta interpõem-se entre Hilário e a Bulgária, a tal ponto que, durante páginas e páginas, nosso expedicionário simplesmente se esquece do que é que planejava fazer quando do início do romance. Solapado o projeto inicial, tudo perde o valor, tudo vira névoa. Numa de suas palestras o professor Radamés chega a relativizar: “O que se convencionou chamar de Bulgária é sobretudo um estado de espírito; como Deus, por exemplo”.

A aventura de Hilário é a expedição exploratória que não dá em nada. Acaso teríamos o outro lado dessa moeda, a chegada sem glória? No Brasil não, mas em Portugal sim. Trata-se do romance As naus, de Lobo Antunes, protagonizado pelos heróis do período das grandes navegações: Diogo Cão, Vasco da Gama, Cabral, Camões, entre outros. A aventura dessas figuras renascentistas é o retorno enlouquecido, sem fanfarra nem tapete vermelho. Extremos da mesma moeda, O púcaro búlgaro e As naus são o primeiro e o último capítulo da grande empreitada humana, cujo cerne — o capítulo intermediário, em que se narra com forte acento épico o ansiado desembarque em território inexplorado — não vale a pena ser relatado. Nesse capítulo suprimido, nossos heróis talvez sonhem com a Ilha dos Amores e com a deusa Tétis, que, vestida de visões, reapresenta o presente entregue outrora a Vasco da Gama e oferece-lhes, dia após dia, a magnífica visão do universo na forma de uma máquina perfeita (ou de um púcaro búlgaro). Eis o ideal, eis a ordem suprema! Extremamente elegante e confortável é o conceito de que o universo é um mecanismo posicionado fora da consciência humana; idéia que possibilita ao homem tornar-se o melhor intérprete da mecânica cósmica, jamais o seu autor. Porém, para condizer com o século 20, a máquina do mundo tem de ser enfiada dentro da mente do homem, a fim de que este seja forçado a vasculhar o interior de si mesmo se quiser contemplá-la. Agora as questões implícitas no capítulo suprimido — o do desembarque em território virgem —, mas explícitas no primeiro e no último capítulo de nossa saga exploratória, são outras.

3. O terrorista engravatado
São questões puramente estratégicas. Porém sem valor de troca na economia contemporânea, uma vez que nem a ciência nem a filosofia estão em condições de respondê-las sem fazer uso de ferramentas importadas do universo da magia e da poesia. Dessa maneira, diante do fraco desempenho dos especialistas das diversas disciplinas teóricas, entram em cena os xamãs e os artistas — escritores, pintores, músicos e cineastas cujos espelhos são capazes de aprisionar imagens distorcidas, sem que não haja nada diante deles. Ou melhor, sem que o que está, esteve e estará diante deles corresponda realmente à imagem espelhada, não passando de puro blefe o procedimento especular. Bizarro demais, o resultado desse jogo de esconde-esconde entre sujeito e objeto? Apenas para os que insistem em manter os pés plantados na simulação do universo equilibrado, mantida em movimento graças ao esforço sobre-humano de cidadãos como Aristóteles e Descartes. Para os que sempre estiveram em contato com o maravilhoso e o fantástico, o maravilhoso e o fantástico não existem, só existe a realidade absoluta, feita de som e fúria.

Todavia, tendo chegado tão longe, ou seja, ao coração palpitante do universo alheio ao homem e fiel às suas próprias leis, é preciso tomar o cuidado de não supervalorizar a ação — e os romances — dos nossos dois autores. O terreno em que estamos pisando no momento encontra-se muito além do palmilhado por Campos de Carvalho e Lobo Antunes. Ambos não são o melhor exemplo do artista que abriu mão da busca da harmonia e do equilíbrio em favor do desenraizamento do solo antropocentricamente ordenado. Cidadãos bem adaptados na mesma sociedade que atacam sem dó nem piedade em seus livros, nenhum dos dois abandonou o conforto da existência regrada para, por exemplo, ir contrabandear armas na Abissínia, como fizera Rimbaud. Nenhum dos dois, apesar da insatisfação com o sistema político do Brasil e de Portugal, pegou em armas ou acreditou cegamente na capacidade da literatura de mudar o que quer que fosse na sociedade. O bacharel em direito Campos de Carvalho foi funcionário público durante décadas, antes de se aposentar como procurador do estado de São Paulo — a confortável rotina do burguês ocioso, mantido pelo Estado, com direito a décimo terceiro salário e férias, foi a que elegeu para si e para a esposa. Lobo Antunes, por sua vez, trabalhou em sanatórios para doentes mentais, como psiquiatra, até que sua produção literária fosse capaz de sustentá-lo, e nas últimas décadas tem vivido apenas do que escreve. Campos de Carvalho nunca escondeu seu descontentamento pela falta de leitores, por jamais ter se tornado um sucesso de crítica e de vendas — fato que o levou a cedo abandonar a literatura —; Lobo Antunes, que já recebeu os mais importantes prêmios literários, mesmo assim sempre que pode deixa bem claro sua decepção por ainda não ter ganho o Nobel.

Tal indisposição para com o fracasso — e entenda-se, aqui, fracasso segundo a ótica da filosofia capitalista — não condiz com a determinação que move a arte, ou pelo menos não com a que move a arte voltada para a captação do sublime que reveste o caos. O que se espera de quem se reconhece na dissonância é que se torne alheio às normas que dirigem a rotina civilizada e, principalmente, que demonstre desapego a toda forma oficial de reconhecimento. É no mínimo um contra-senso a meia inserção no desordenado, o mero flerte com o maravilhoso. Todavia, no atual estágio evolutivo em que nos encontramos, é tudo de que dispomos, caso contrário só sobraria a extinção ao tipo excêntrico que desafiasse o padrão estabelecido sem antes ter tomado o cuidado de cavar e percorrer um túnel para fora de suas muralhas. É a velha questão do autor maldito, do guerrilheiro marginal que contesta as diretrizes religiosas, morais, políticas e estéticas do sistema. Ora, como contestar o sistema estando quase que completamente comprometido com ele, com sua organização socioeconômica? Claro é que a marginalidade artística, como era entendida na virada do século 19 para o 20, feita de iconoclastas e dissidentes, há muito que desapareceu da face da Terra, tendo sido tragada pelo inimigo que até então insultava e, grande ironia, passando a figurar com destaque nos volumosos ensaios de história da arte e da literatura patrocinados pelo próprio inimigo. Foi-se a época dos escândalos provocados pela arte, da Montanha Sainte Victoire, de Cézanne, à Sagração da primavera, de Stravinski. O marginal faz tempo que deixou de épater le bourgeois, de estar à margem, ou terá sido esta que pouco a pouco se deslocou para o centro dos acontecimentos? Hoje ele condena e repudia o sistema, mas sem abrir mão das regalias que essa estratégia possa lhe proporcionar: a fama e a fortuna que o burguês-níquel da Ode ao burguês, de Mário de Andrade, está disposto a lhe oferecer por serviços prestados.

4. Última pergunta
A literatura desconcertada, assim, torna-se válvula de escape: momento em que o autor suspende a ação das regras vigentes e cria as suas próprias, mais condizentes com o desejo de mimetizar a realidade transtornada, mas sem morrer na tentativa. E esse desejo, claramente impresso n’O púcaro búlgaro e n’As naus, foi insuflado pela pequena parcela de antecessores que, sem sombra de dúvida, transtornaram a vida da comunidade intelectual no começo do século 20. A lista completa de todos eles, dos antecessores que remexeram com vigor os cânones até então estabelecidos pela cultura ocidental, contém centenas de artistas — milhares, se forem levados em conta inclusive os de segundo escalão —; mais proveitoso é resumi-la, respeitando os agrupamentos aos quais cada artista pertencia: expressionismo, futurismo, fauvismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo, neoplasticismo, e assim vai. Porém nem todos os batalhões do exército modernista estavam interessados em demolir da mesma maneira a realidade clássica, cada ismo optando por estratégias de ataque às vezes muito diferentes das dos companheiros de campanha. A pequena parcela a que me referi, cujos manifestos e atos de guerrilha mesmo tendo passado o auge da batalha ecoam n’O púcaro búlgaro e n’As naus, compreende o grupo dadaísta e o surrealista — principalmente este último.

O dadaísmo foi o furor incontrolável contra os horrores da Primeira Guerra Mundial e das concepções tradicionais da burguesia da época, foi o anarquismo e o niilismo armados até os dentes em busca do fim da civilização e da reconstrução do mundo, foi a antiarte que exigia nova postura do consumidor de objetos estéticos, foi a anulação do racional em favor do irracional. O surrealismo foi seu filho pródigo que jamais retornou à casa paterna, foi o verbo esotérico na boca dos videntes e dos humoristas, foi a encruzilhada do concreto e do imaginário nos jogos de salão e nos sonhos provocados, foi a junção do racional e do irracional. O dadaísmo está morto e enterrado há quase um século; o surrealismo vive, senão fisicamente, ao menos no altar dos que não tiveram a oportunidade de seguir os passos de sua trajetória histórica. A pergunta é: o que sobrou desses dois movimentos está em condições de produzir nova loucura literária?

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho