Baratas baratinadas

Um conto de Jason Tércio
Jason Tércio, autor de “A pátria que o pariu”
01/06/2003

Ela surgiu discreta, precavida, antenas sondando pelas frestas no rodapé da sala, dois fios dançando à espreita de alimento. Sair do esconderijo era um impulso, por necessidade, mas também um enorme risco. Buscar as migalhas entre os papéis na mesa do ministro estava se tornando uma aventura, encerrada quase sempre debaixo dos sapatos impiedosos do segurança ou do próprio ministro.

Enormes pés assassinos se esticaram, mas outras colegas despontaram nos cantos. Duas correram para se esconder em labirintos que só elas conheciam. As mais audaciosas voaram pela sala, atrapalhando a reunião do ministro com uns banqueiros.

Enquanto ele foi ao sanitário elas vasculharam a sua mesa, dançaram em cima do acordo de empréstimo do FMI e do decreto que aumentou o salário mínimo. Depois que os banqueiros e o ministro saíram para um restaurante, elas ressurgiram, descontraídas, as velozes patinhas cruzaram rapidamente a sala rumo à bandeja de biscoitos que havia sobrado da reunião. Subiram na mesa, comeram os pedaços de biscoitos e roeram o papel do acordo financeiro.

Assim elas passavam dias e noites. Apesar da aflição diária, sobreviviam. Ministros se sucediam, se revezavam no cargo. Elas permaneciam. Eram as únicas companheiras deles nos momentos de reflexiva solidão em que meditavam sobre o destino do país. As fêmeas geravam dezenas de filhotinhas. As famílias cresciam e se multiplicavam. Mas sofriam muito com as perseguições. Havia dias em que se sentiam como refugiadas palestinas, bombarbeadas por todos os lados. Não tinham um lar, eram sempre consideradas intrusas, como se não fossem também parte da natureza.

Apesar de tudo, estavam convictas de que ninguém as derrotaria, e decidiram formar um movimento contra a fome.

As primeiras adeptas discutiram as propostas no gabinete do ministro. Quando ele chegou de surpresa com uns empresários, disfarçou e esticou rapidamente o pé, numa inútil tentativa de matá-las. Os empresários notaram e foram ajudar o ministro a esmagá-las. Muitas morreram no massacre daquela noite. Outras, espertas e experientes, ficaram quietinhas, imóveis, fingindo-se de mortas.

Mais irritadas que amedrontadas, as sobreviventes convocaram uma assembléia-geral, com todas as colegas do Palácio do Planalto, dos ministérios, Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e outros órgãos. Muitas delas eram migrantes de outros estados que tinha vindo para a capital do país em busca de uma vida melhor nas cozinhas e salões federais, ou fugitivas ameaçadas por policiais, como a barata alagoana acusada de ter matado PC Farias e sua namorada em Maceió.

A assembléia foi realizada na sala da assessoria de imprensa do Ministério da Saúde.

Discursos emocionais, contundentes, quase histéricos. Não suportavam mais a discriminação e a crueldade de que eram vítimas. Por que a Sociedade Protetora dos Animais as ignorava? Os ecologistas tão preocupados com as espécies em extinção nunca erguiam a voz para defendê-las. Eram espezinhadas impiedosamente só porque desejavam comer alguns farelos de alimentos destinados ao lixo, ou passear à noite pelas confortáveis dependências das instituições. Também eram filhas de Deus, tinham direitos, mereciam respeito! Era inadmissível tamanha violência! Afinal, haviam surgido no mundo bem antes do homem. Uma colega lembrou que sobre isso havia controvérsias.

A representante do Palácio do Planalto crispou as antenas e propôs organizarem um exército bem treinado, disciplinado. Outra se opôs:

— Temos condições de vencer o homem? Um pé basta para matar dezenas de nós. Provocar um confronto agora seria expor-nos ao genocídio!

Predominaram argumentos a favor do enfrentamento.

— É um absurdo que em pleno século 21 ainda se matem baratas! Até os répteis são mais respeitados do que nós! Não podemos transigir, já sofremos muito! — esbravejou uma moradora da Câmara dos Deputados. — Vamos invadir os supermercados!

— Prefiro uma fazenda — gracejou uma do Ministério da Reforma Agrária.

— Não podemos mais beliscar nada nas prateleiras dos processos — reclamou uma idosa do Supremo Tribunal Federal. — Está tudo muito difícil…

—– Vai ser fácil atacar os responsáveis por nossa penúria — suspirou uma otimista do Palácio da Alvorada. — Ou será que esquecemos do susto que sempre damos nas mulheres? Elas gritam e se encolhem diante de apenas uma de nós. Imaginem quando aparecermos às centenas, milhares…

— A companheira está delirando, se me permite — aparteou uma colega do Ministério da Cultura. — As mulheres têm mais nojo que medo de nós.

— Será que é porque estamos sempre no lixo, nos bueiros, nos esgotos da vida? — questionou uma do Superior Tribunal Militar.

— Fale por você, querida. Eu moro num lugar muito chique, o Itamaraty.

— E eu na cozinha do melhor restaurante do Senado, sua boba.

— Parem com essa besteira! — interveio a representante do Ministério da Justiça. — O mais importante é que estamos querendo combater os homens, não as mulheres. Talvez uma e outra poderão estar no caminho, incidentalmente…

— Homem e mulher são a mesma coisa! — gritou uma feminista do Ministério da Educação.

— Não! São diferentes! São diferentes! — contestou uma machista do Ministério do Exército.

— Podemos articular uma guerra de nervos! — proclamou a representante do Tribunal Superior Eleitoral.

Uma adolescente pulou, rindo, achando tudo muito divertido, e a reunião se transformou numa algazarra.

— Os homens mais poderosos deste país estão querendo nos exterminar! Vamos acabar com eles!

— Muito bem!

— Será que temos força numérica?

— Dane-se a força numérica!

— É guerra! Vamos atacar!…

— Todo o poder às baratas!

Zunzum zoeira zorra zureta polvorosa de asas tremulando, aplausos, cumprimentos entusiasmados, e todas partiram numa vibrante revoada noturna por entre os prédios da cidade.

Manhã seguinte, o primeiro batalhão atacou o Palácio do Planalto. Elas se esgueiraram dispersas pelo saguão de entrada, evitando os recepcionistas e seguranças, correram para os elevadores e subiram até o terceiro andar. Algumas foram despedaçadas por um jornalista, mas a maioria conseguiu unir-se às colegas que haviam saído de outro elevador e aguardavam na porta do gabinete do presidente.

Enquanto isso, outros contingentes iam se infiltrando nos ministérios, tribunais e no Congresso Nacional, onde um batalhão kamikaze provocava a atenção dos deputados e senadores, recuando para confundir-lhes a atenção. Nessa operação-suicida poucas sobreviveram, mas garantiram a ofensiva de outros grupos posicionados em locais estratégicos.

No Planalto, invadiram a sala do presidente, subiram no sofá, passearam pela bandeira do Brasil empinada num canto, remexeram papéis na mesa, tantos papéis, entraram nas gavetas e se esconderam entre uma pilha de Medidas Provisórias.

No Ministério da Fazenda, o preferido de muitas delas por causa do conforto, interromperam uma reunião do ministro com diretores do Banco Central que ficam estarrecidos e mal puderam esboçar qualquer reação — elas os carregaram para fora da sala. O ministro tentou fugir, mas no corredor lá estavam elas bloqueando a passagem, agitando as antenas.

No Senado subiram à tribuna onde discursava um nobre e gordo senador de cabelos brancos. Enfiaram-se dentro da calça dele e percorreram suas pernas fazendo cócegas. O senador riu, gargalhou, enquanto falava da pobreza no Nordeste. Ao perceber o motivo das cócegas, ficou horrorizado, parou de discursar, tirou o paletó e ficou sacudindo as roupas. Na Câmara elas cobriram os microfones da mesa e da tribuna, voaram arrogantes e arreganhadas sobre o plenário. Os deputados tentaram ignorá-las, mas elas se multiplicaram, se multiplicaram, e os representantes do povo saíram correndo pelos corredores vestidos só de cueca.

Chegando ao seu gabinete no Palácio do Planalto, o presidente ouviu o frêmito das asas que se debatiam em algum lugar. Determinado, ele foi à estante em busca de um vidro de veneno em pó, que guardava ali para essas ocasiões. Um batalhão já o esperava: pularam dos livros e se agarraram ao paletó do presidente, ele as afugentou esfregando as mãos na roupa, elas penetraram nos bolsos, orelhas, entre os cabelos. Desesperado, sacudindo-se todo, e não encontrando o veneno, o presidente tomou uma decisão inesperada: apanhou uma barata e a esmagou nos dentes. Surpresa! A careta logo se alterou, o gosto não era de todo mal. Apanhou algumas que brincavam no telefone e dessa vez não mordeu apenas — mastigou saboreando, com um discreto sorriso. Em seguida telefonou para os ministros, parlamentares e autoridades, dizendo-lhes como enfrentar a invasão: comam as baratas!

Só o Ministro do Trabalho hesitou, preferiria treiná-las para empregos temporários nas fábricas. Mas mudou de idéia após experimentar uma. Todos os demais membros do governo e dirigentes dos órgãos públicos seguiram a ordem do presidente. Os únicos que reagiram indignados foram os parlamentares da oposição, que decidiram ingressar no Supremo Tribunal Federal com um processo contra o presidente por abuso de poder.

Desde então o assunto tem causado intensos debates no país. Mas o governo, com o apoio da imprensa, está certo de ter encontrado uma fonte alternativa de alimento e pretende mostrar ao povo que é a maneira mais moderna de combater a fome dos miseráveis. O presidente criou uma comissão especial, integrada por representantes da sociedade civil, para pesquisar as diferentes espécies de baratas existentes no país e foi até lançado um prêmio para o mais eficiente caçador de baratas. Nos supermercados já são vendidas baratas congeladas, disputando espaço com camarões e peixes. O mercado financeiro reagiu com euforia: na Bolsa de Valores o preço das ações das empresas de baratas disparou. Há planos de se exportar o produto para a África e a Índia.

E uma vez por semana o presidente escolhe as baratas mais gordinhas para gravar uma programa de televisão transmitido em rede nacional. Faz suspense brincando com elas nas mãos e coloca uma por uma entre os dentes, mastigando com “visível prazer”, como dizem os jornais. Em todos os lares a população aplaude maravilhada quando o presidente termina sua apresentação lambendo os lábios e dizendo “Não tem pão? Comam baratas!” O programa faz mais sucesso do que a novela das oito.

Mas enquanto isso, nas repartições públicas, elas se reorganizam para um contra-ataque infalível. Desta vez estão formando pequenos núcleos clandestinos, com uma audaciosa missão inspirada nas táticas de guerrilha: subir nas pernas da primeira-dama, das mulheres dos políticos e ministros. Vai ser um barato.

Jason Tércio

É jornalista e escritor. Autor de A pátria que o pariu e Os escolhidos, entre outros.

Rascunho