Ao primeiro sinal me levanto, tenho de me desligar de meu habitual trabalho, das folhas amontoadas sobre a mesa, da caneta, da lâmpada elétrica vacilante, iluminando o vazio.
Visto um casaco. Durante anos, não estive tão agitado. Sempre fui um homem inerte, um espantalho, autômato, curvado apenas pelo peso exigido por páginas de papel em branco, sem me ligar a nada mais que isso, essa seiva, sangue sem cor ou conteúdo. Uma existência fibrosa, vegetal, sugando do exterior o que somente serve ao intuito de escrever, exigindo da realidade a substância de sonho. O exterior uma massa de argila, moldável pela minha introspecção demasiado sombria e torta, esmurrando esse barro como a fera enjaulada debate-se nas grades. Hoje, o barro se liquefaz, deixa-se ser levado pela chuva, pela rua em declive sumindo no fundo dos bueiros, aglutinando-se a montes de folhas velhas, todas as letras, metáforas, imagens, música e silêncio, transformados num único acorde: o grito.
A casa fica do outro lado da rua, em frente à minha. Por que escolhi esse lugar, quase encostado à superfície retorcida da parede caiada e das duas janelas tão juntas que parecem olhos estrábicos? Tão vago o momento em que fui me apegando a essa construção de aparência inofensiva, parecendo encolhida sob a chuva escorrendo dos beirais do telhado, como se a tivesse descoberto ainda na infância, quando a memória se dilui. Mas não passam de poucos anos, e por quê, justamente, fui alugar uma casa em frente? O melhor teria sido fugir desse bairro, dessa cidade, fincar minha carne numa terra onde ninguém pronunciasse meu nome, assim para ser esquecido, sem sangue ou lugar, podendo olhar pelas janelas outras casas que nunca vi, pessoas sem identidade, para depois descobri-las, criar uma outra infância, menos retorcida, talvez como um campo de céspede, deitado, um fio de capim entre os dentes, apartado das paredes borradas, da sujeira, da desordem, do sofá arruinado em que a mulher se deita, rindo para o vazio, com brincos nas orelhas, batom nos lábios, uma sombrinha que ela abraça como a um membro masculino, dizendo coisas infantis, os mamilos inchados pela doença.
Se para aqui me mudei — no momento em que a asfixia dos cômodos monstruosos me fez acender os pulmões com a fúria incandescente, os mesmos aposentos em que agora sou vítima de mim e das parcas, quando a vi sorrindo da janela, tentando adivinhar porque ela ria, os lábios tortos e os dentes cravados nas gengivas como fusos numa roca —, foi para estar ainda próximo desse estado de medo, de intolerável presença física de uma pessoa que acredito fazer parte de minha substância, como se um membro de minha família, um fantoche tosco, movimentado por mãos de tirano, e que pelas duas janelas me acena, intermitentemente, com seus movimentos distorcidos. A minha casa, ocupando o pequeno espaço de um sótão, possui uma única seteira que mantenho aberta, e abaixo da qual dispus minha mesa de trabalho, onde leio, escrevo, como, bebo, rumino e com freqüência, sou assombrado pela mulher que desliza pelos buracos da casa vizinha, miúda e calada, curvada, às vezes durante horas pousada no parapeito, pensativa.
Mas agora, após ouvir o grito, atravessando a rua com o rosto fustigado pela chuva, é que percebo que por trás do nojo algo lateja, e todas as minhas artérias estão obstruídas por lama, mas também por um caldo que acredito seja a fermentação escandalosa de toda repugnância, brotando de minúsculos pólipos por minha pele, como se células doentes há muito tempo trabalhassem para a irrupção desse momento, em que me imagino coberto de uma vegetação excêntrica, exalando um odor de abóboras mofadas, de feno apodrecido, e segurando com firmeza a gola do casaco, sinto esse uivo que tinge minhas nádegas de fezes, andando com um passo desconcertantemente feminino, até que a abertura da porta me engole como uma vulva frígida e libada.
Na sala, a mulher está sentada no sofá, o rosto inexpressivo quedado sobre os ombros, as mãos entrelaçadas sobre os joelhos descobertos. Os olhos tremem, mas não emitem nenhum reflexo. Um cão está pousado aos seus pés, rosnando de maneira frenética, expondo a língua espumante. Não preciso perguntar à mulher a causa do grito, tão inumano, nem o da vítima prestes a ser degolada pelo algoz, tampouco o passivo vagido de alguém que descobre a impossibilidade de escapar às suas doutrinas, mas o urro desprovido de agonia ou fraqueza, sem identidade, sem uma estrutura, apenas barro, apenas argila, vazando pelos poros, pela boca.
Ela não pode dar-me explicações. Está imersa num torpor incompreensível. Uma vela pendurada de um candeeiro na parede ilumina-a parcialmente. Todas as células doentes que brotaram de meu corpo agora exalam um odor ainda mais opressivo. Na sala a mulher, quase caindo do sofá, começa a sorrir. Inconsciente ao grito, ao uivo que acabou de alarmar toda a rua, que me levou a abandonar meus pensamentos para chegar até aqui. Ela me olha, não me pergunta como estou, o que vim fazer nessa hora. Imediatamente abre os botões do vestido, exibi-me os seios doentes. O cão quer lamber seus pés, e isso é a mais forte ameaça para um segundo grito. O contato, mesmo que desse animal débil e de pelo envelhecido, será o bastante para lhe transmitir o horror. Quem cuida dessa mulher? O cão? Apenas um bicho da rua, que aproveitou uma pequena vacilação e se intrometeu na casa. Ameaço-o com o pé, ele rosna mais furiosamente, os dentes estragados na boca não me causam nenhum medo; pego de um atiçador e rasgo o ar, a ponta quase lhe decepa o focinho. O animal se assusta, boto-o para correr, ele some pela porta.
A mulher continua sorrindo. Agora percebo porque aluguei a casa de frente. Postado diante da seteira como uma sentinela, direcionando o foco da lâmpada de minha mesa para as duas janelas estrábicas, como um farol. Algo doce dorme no nojo. O cheiro mofado, a sujeira, os móveis quebrados, a incapacidade de se erguer da cama, mantém a mulher atada ao seu sorriso. Minha mão é incapaz de tocá-la. Talvez eu esteja doente, ao acreditar que essa mulher foi substituída por uma boneca de corda. Alguém extraiu seu sangue, em pequenos alguidares, envolveu seus órgãos em panos úmidos e os trocou por molas e engrenagens. Ela levanta, abaixa a cabeça, volta a sorrir. Com todo o esforço que posso exigir de meu corpo, dobro-me e beijo sua cabeça. Os cabelos não possuem o odor apodrecido. Estão limpos. Seu corpo está perfumado. Por que não a carrego daqui, por que não fugimos para o campo de céspede, com talos de grama nos lábios? Um tremor me envolve, medo, fúria, ânsia de me jogar sobre ela, de fazê-la experimentar isso de que foi privada, o grito da carne que agora é grito do nada. Mas o que faço é lhe desejar boa-noite. Não me responde.