O amor não tem bons sentimentos

Um conto de Raimundo Carrero
01/06/2003

A única coisa de que me lembro assim num repente é da menina nas águas.

E também do calor. Talvez estivesse quente. Fazia sempre tanto calor em Arcassanta, tão seco e tão pegajoso, que se tornou impossível saber se o sentira naquele instante ou se em outro momento qualquer da minha vida — da minha inesperada, estúpida e extraviada vida. Eu devia estar de cócoras.

Possivelmente.

Sempre ficava de cócoras. Era um hábito, um velho hábito, um hábito muito antigo de quem desde menino não tendo o que fazer, nem de que maneira se divertir, ficava ali contemplativo diante do rio selvagem, uma beleza selvagem e imunda, apesar dos peixes dourados. Vendo as águas escuras, às vezes barrentas, levemente encrespadas pelo vento, pouco vento.

As professoras e as autoridades vinham aqui na escola dizendo a morte está nas águas, dali a morte vê vocês, não se pode pescar nem beber, nem fazer qualquer outra coisa, distribuindo papéis com crianças e adultos, reunindo-se à noite com os pais na sala de aula, paredes pichadas com desenhos de órgãos sexuais, palavras em inglês, símbolos de traficantes, monstros de muitas pernas e braços. Faziam demonstrações no quadro negro, exibiam cartazes cheios de micróbios, bactérias, vírus, aquelas coisas nojentas. Mesmo assim às vezes eu tirava as calças, me acocorava e expulsava minhas sujeiras embaixo da árvore do rio, nas margens.

Era por isso que não se podia pescar nem beber. Eu sozinho, não. Todos, todos. Quer dizer, todos daqui e de outros lugares, porque para essas margens vinham também os desempregados, os desenganados e os excluídos, porque havia frutos podres e peixes com veneno. Desejando a vida e encontrando a morte. Expulsos e mortos. Quem morre não está sendo expulso da vida?

O corpo estava boiando.

Fiquei recordando os momentos mais recentes de nossa vida, o meu passado não chegava longe demais, não saía de perto, de muito perto, tão perto, e só podia me lembrar daquelas coisas que foram se juntando para formar o que se chama a existência, sentado de cócoras. Possivelmente não, com certeza posso dizer agora que eu estava mesmo de cócoras, sentindo calor, e o que fazia era procurar esses momentos que clareavam minha alma. Somente de calça, sem camisa, descalço, olhando o corpo de Biba, minha irmã, boiando nas águas do Capibaribe.

Nua, estava nua, e nem era uma mulher. Nua e morta. Lindeza de pernas e coxas, macias, macios peitos e terno ventre.

Era apenas uma menina e estava morta. Boiava nas águas barrentas do rio. Os braços abertos, as pernas abertas, o sexo aberto posso assegurar porque conheço o segredo do seu corpo. Nua viveu, nua morreu, desde cedo não gostava muito de roupas, ela e os outros da casa. Os adultos pelas naturais conveniências, havia fogo nas carnes, vestiam leves molambos transparentes, as crianças usavam calções ou calcinhas. Ainda a vejo, menininha, sem panos para evitar assaduras. Só mais tarde, só bem mais tarde é que começou a vestir calcinhas, antes a fralda sempre caía, caindo, sustentando-se na bunda, as pernas tentando o equilíbrio, os joelhos tocando-se, os pequenos pés tropeçando, a fralda arriando frouxa e branca, arrastando-se no barro amarelo do terreiro. Em seguida os rigores da farda escolar, saia azul até o meio da coxa com duas que se cruzavam no peito, blusa branca abotoada ao meio, a lancheira despencando do ombro. Sei disso tudo com detalhes porque fui pai, tio e irmão dela, desde que chegou em nossa casa. Fora enviada pelos verdadeiros pais, Jeremias e Ísis, acompanhada de curto e incisivo bilhete.

Não quero mais vê-la.

Sem assinatura. Quando chorava no berço, minha mãe pedia para que eu a acalentasse. De madrugada ou pela madrugada ou na madrugada, gritava.

Acode, homem.

Levantava-me tateando pelo quarto, ela já estava de pé no berço, a mão segurando o gradeado, chorando, esfregando os olhos com a outra mão, necessitava adivinhar, não havia lâmpada e nem fósforos. As lágrimas no rosto, os olhos fechados, as mãos molhadas, sentindo afeto no sangue, carinho e segurança, ela soluçava. Soluçaria mais, só mais um pouco, ainda um pouco, enquanto a conduzia nos braços para a sala, a noite espalhada no mundo, minha irmã compreendendo no segredo de sua ternura que era preciso dormir para sonhar. Bastava encostar a cabeça no meu ombro, passar os dedos úmidos de lágrimas no meu rosto, no meu queixo, nos meus lábios. As meninas, semelhante às mulheres, sonham com inocência, solidão e amor. Convertidas em matéria de sonhos, descobrem as sutilezas do mundo, as asperezas da sorte, os abismos do destino. Naquela madrugada, criança e soluçando, Biba, tão menina abraçada a mim, descobriu a fenda que se cava entre o suor e a pele. Desconfio que ela acordava e chorava só para ser acalentada por mim, por saudade pura da minha pele e das minhas cantigas, que afinal de contas nem eram cantigas, uns resmungos, tristes resmungos que me acompanharam pela vida afora, transformando-se em improvisações que fazia no sax. Assim ficava acarinhando e acarinhada, até dormir outra vez.

Minha mãe continuava dormindo. Diante da nossa pobreza foi ela quem tomou a decisão de telefonar a Jeremias avisando.

Tomo conta da criança, certo. Não crio problemas. Mande dinheiro. Se continuar com fome jogo ela no rio.

Ninguém nunca soube o que Dolores estava querendo, querendo, não, mais grave, pensando. Uma mulher de distâncias. Muito longe.

Agora me lembro do corpo de Biba boiando nas águas barrentas do rio Capibaribe, em Arcassanta, e tenho certeza de que na verdade estava de cócoras por causa do hábito e apenas de calça, sem camisa, repousando os braços nos joelhos, os pés na lama. Não foi assim desde o começo, confesso que não foi assim. Cheguei às margens ao amanhecer, o sono pesando no sangue, acocorei-me e fiquei olhando, feito qualquer um faz na lerdeza do tempo. Vi primeiro a sombra, a princípio uma sombra, depois uma mancha e em seguida o corpo. Morta. Apurando melhor os olhos, afastando as nuvens do sono, foi que vi Biba morta. Estava morta.

E nua. A menina morta e nua.

No instante, no exato instante, no preciso instante, senti uma espécie de entorpecimento. Nada demais. O morto era eu, sem qualquer emoção, absolutamente. O que fazia o corpo morto de Biba boiando nas águas assassinas e barrentas, criminosas e sujas, homicidas e venenosas do rio que vinham cortando o mundo fazia léguas? Meu corpo morto estendido no rio e uma vontade de rir, de sorrir, de gargalhar, que grande merda era aquela? Puxei a fumaça do cigarro, traguei, tossi. A minha idiotice era escandalosa quem já viu o próprio corpo morto nas águas, olhando-o das margens sujas? Isto é, esse pensamento só me ocorreu depois que a vi inteira. Completa. Linda.

Já disse que em princípio era apenas uma sombra, uma mera sombra distante e confusa, imprecisa, depois uma mancha, uma longa mancha, longa e lenta, lentíssima, um tronco, um sofá, uma cama, e em seguida o corpo, mas um corpo qualquer, na visagem do começo era apenas o corpo de Biba, Ou o meu, aquele era o meu corpo no rio, até porque eu sempre sonhei morrendo nas águas. Morrer nas águas é muito melhor do que fumar. Brinquei com as formigas, elas gostaram, levantei-me, fiquei de pé, a perna direita na frente da esquerda, botei a mão no bolso, fiz pose. E era assim, eu olhava o corpo, fumava e tocava saxofone. A gente pode ser três ao mesmo tempo. Não joguei o cigarro fora pelo simples fato de que não havia cigarro, nem trago nem tosse, não sei fumar, não consigo. E é claro que o corpo não era meu, podia até ser, não acredito, não posso acreditar num corpo vendo o mesmo corpo boiando.

Fiquei pensando que tipo de gente sou eu que vejo um corpo boiando, o corpo da minha irmã, o corpo querido de Biba e não sinto nada? Tudo bem, eu ainda não sabia com certeza de quem era. Não podia adivinhar, não sei adivinhar, não sou adivinho. Ainda assim, sou o que se costuma apelidar de ser humano, devo ter meus sentimentos, meus afetos, meus encantos, devo sentir algum tipo de sensação. Digamos, devia ter pelo menos… compaixão, piedade… piedade e compaixão não são a mesma coisa? Não, nem compaixão nem piedade, compreendo que naquele instante e naquelas circunstâncias compaixão e piedade eram demais, bastava que fosse pelo menos curioso… Está certo que eu não gritasse, não fizesse escândalo, não procurasse socorro, está certo, bem certo, não sentir nada…, exatamente isso, nada. Fiquei triste comigo mesmo, triste e irritado, triste e alarmado, triste, posto em alerta, via o corpo de Biba, morta, e ao invés de sentir piedade… compaixão… uma coisa ou outra, ficava cínico fumando, fazendo pose e tocando saxofone.

Parado lembrei-me que saíra de casa já sem camisa e descalço no calor do amanhecer impreciso, furtivas luzes azuladas se mostrando, apresentando-me às primeiras sombras, olhava o amanhecer, as luzes e as sombras, o corpo que identifiquei depois. Não havia peixes dourados nem cobras se arrastando nas margens.

Acocorei-me.

Parecia olhar um tronco, um animal, um sofá. Às vezes as pessoas jogam até refrigerador no rio, cemitério de coisas vãs, inutilidades envelhecidas. Passou um arrepio por mim. Pensei num cigarro, num cachimbo, num charuto. Assim imaginei porque não é comum pensar no que existe, fica mais fácil procurar o que não existe e embora não fume desejando fumar, procurava o meu prazer no sonho. Me acostumei a ver os mais velhos sentados de cócoras nas margens dos rios, fumando e pensando. Então era mais fácil sonhar, imitando. E só imitando, apenas.

Comecei a ficar desconfiado de mim. De mim que tenho medo de tantas coisas, de lugares fechados, de lugares abertos, de lugares altos, de lugares escuros, de alma penada, principalmente de alma penada. Desconfiado porque não consegui sentir nada, qualquer emoção, mesmo mesmo. Me lembrava das lágrimas da menina, do corpo tenro e terno, dos dedos molhados, fraldas no nariz, sem espanto, sem surpresa, sem agrado. Reclamei.

Você não sente nada? Seja homem, homem.

Engraçado, Biba morta, Biba boiando, Biba girando e eu pensando em cigarro, cachimbo, charuto. Um homem não é obrigado a se lamentar, a se emocionar, a chorar, não é, não. Porque até o lamento, a emoção e as lágrimas são programadas. Não quer se lamentar, não se lamenta; não quer se emocionar, não se emociona; não querer chorar, não chora. Esse negócio de ficar chorando por qualquer nada é que não fica bem. O meu caso era diferente. Não me lamentava, não me emocionava, não chorava porque não sentia nada. Exatamente isso, nada. Não significa que eu não sentisse a morte de Biba, será que ela estava mesmo morta? Sentir eu sentia, garanto, sentia sim, e muito, um sentir que não se manifestava, não se revelava, não se mostrava, um sentir inútil.

Procurei por mim mesmo e não encontrei.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho