Os Transgressores
Ademir Assunção
Edyr Augusto
Arnaldo Bloch
Ronaldo Bressane
Simone Campos
Luci Collin
Fausto Fawcett
Marcelino Freire
Claudio Galperin
Ivana Arruda Leite
Altair Martins
Marcelo Mirisola
Daniel Pellizzari
Jorge Pieiro
André Sant’Anna
Joca Reiners Terron
Quando o escritor Nelson de Oliveira e a editora Boitempo decidiram pelo lançamento do segundo volume da antologia de contistas Geração 90, pediram aos autores selecionados (16 ao todo) que produzissem “textos mais experimentais” do que os publicados no primeiro volume da série, subintitulado Manuscritos de computador. Essa exigência pelo experimentalismo acabou por criar um fio em comum entre os autores. A esse fio Nelson chamou de transgressão, sendo nomeado o novo volume da série de Os transgressores. Alguns entre os próprios autores selecionados chegaram a duvidar da validade do termo. Afinal, o que exatamente eles estariam transgredindo? A linguagem? Ora, textos em fluxo de consciência ou recheados de neologismos não são exatamente uma novidade em termos literários.
O próprio Nelson, no entanto, admite que o subtítulo é mais uma provocação do que qualquer outra coisa. Acabou, infelizmente, criando em alguns campos da crítica uma discussão inútil: a validade ou não dessa palavra de sentido bastante pesado — e, por vezes, incompreendido — para os autores selecionados. A intenção, esclarece Nelson, não era essa, mas apresentar para um público mais amplo autores iniciantes ou que são conhecidos apenas em sua terra natal. De qualquer modo, a leitura corrente do Os transgressores, o livro, faz com que o eventual mal-estar causado pelo uso do termo seja esquecido a cada página virada. Não simplesmente pela qualidade (ou falta dela) do texto de cada um dos autores, mas porque é possível perceber que a validade do livro não é a apresentação de autores transgressores (ou subversivos), mas a mera apresentação de autores.
Mas voltemos ao pedido de Nelson: “textos mais experimentais”. Não há dúvida de que os contistas perseguiram esse formato. Nem sempre acertaram. Experimentalismo, por vezes, pode soar como uma brincadeira de criança. No caso de um maior “engajamento” lingüístico, corre o risco de cair no campo do hermetismo. É, por exemplo, o caso dos dois contos de Joca Reiners Terron. Na busca de uma narrativa absurda ou alucinada, incorre na incompreensão ou mesmo na repetição de modelos usados (criados?) por Manoel Carlos Karam e Valêncio Xavier — a quem, inclusive, Joca faz certa reverência nomeando o seu segundo conto na obra, Monsieur Xavier no Cabaret Voltaire.
Esse mesmo estilo de formato, com suas devidas diferenças, é utilizado por Jorge Pieiro, dessa vez com artifícios como o texto entrecortado e alterações tipológicas. Fica claro que, de um jeito ou de outro, o cearense Pieiro e o mato-grossense Terron estabelecem um tipo de diálogo, quem sabe provocado pela leitura de autores em comum, quem sabe pela própria aproximação temporal (o que justificaria ambos estarem listados em uma mesma geração).
E nessa mesma geração ficam, ainda, textos menos pretensiosos, como O tubista magro, de Arnaldo Bloch, que chama atenção pela prosa bem amarrada e humor fino, característica também visível em No te pongas sentimental a até, com menos sucesso, em A última prof&cia. Exemplo de bom uso de manipulação lingüística é, ainda, Tanso, de Daniel Pellizzari — originalmente o capítulo oriundo de um livro ainda inédito escrito em “portoalegrês” pelo autor gaúcho/amazonense.
Se a perversão e a transgressão da linguagem parece ter sido a tônica dos textos do novo volume de Geração 90, o mesmo não se pode dizer sobre o uso do enredo. Salvo poucos casos, a imaginação dos autores parece não ter alçado vôos muitos altos na hora de se pensar na “historinha” de cada um dos contos. E aí cabe a questão: teria a maioria dos autores se preocupado com o que se pode chamar de conteúdo dos textos? A impressão geral é de que não, mas não se pode afirmar com exatidão. Talvez suas intenções estejam escondidas sob o verniz da inovação lingüística; como acontece, inclusive, com autores consagrados, que demandam uma segunda, terceira ou quarta leituras. Mas estará o leitor de Os transgressores disposto a repetidas inserções nos textos tendo em mãos o trabalho de pessoas as quais ele guarda pouquíssimos referenciais a respeito de sua validade artística?
Mas há que se lembrar, sempre, que essa não é a intenção maior do livro. E estaríamos discutindo o sexo dos anjos nesse debate conto a conto. O que vale é a apresentação dos autores para públicos que não tiveram a oportunidade de conhecê-los anteriormente. Mesmo essa prerrogativa, entretanto, não impede que se lance mão de outra questão acerca da seleção feita por Nelson de Oliveira, ele próprio autor confesso da mesma geração: de que forma escritores separados no tempo por mais de 30 anos, de formações e vivências distintas, conseguem manter um diálogo a ponto de pertencerem a uma mesma geração?
Não é, realmente, tão difícil quanto possa ter sido no passado. Com o perdão dos lugares-comuns, o “mundo globalizado” e o “aumento das tecnologias de comunicação” permitem que esse contato ocorra de fato. Daí não é de se estranhar que boa parte dos autores selecionados pertença a um mesmo círculo de convivências: Ademir Assunção, Ronaldo Bressane, Marcelino Freire, Marcelo Mirisola e Joca Reiners Terron (salvo enganos).
Nesse ponto, a seleção se mostra pouco variada. A “urbanidade” dos autores chega a ser exagerada, não dando espaço a outro tipo de gênero (e parece que se foi mesmo o tempo da divisão entre a literatura urbana e campesina). Mas há outros pontos em comum, como o individualismo do ser na passagem do século, a presença maciça de referências particulares de cada autor (vulgo “piada interna”) e temas de grande interesse do homem hoje: sexo, miséria (o panorama social) e um tipo de espiritualismo desenganado, vacilante.
Para o músico e escritor João Paulo Cuenca, que em breve deverá fazer sua estréia na literatura dos grandes mercados, lançando seu até então intitulado Carmen pela editora Planeta, e, salvo acidentes de percurso, provavelmente estrelará uma antologia daquela que vem sendo chamada de Geração 00, o diálogo entre os novos autores acontece naturalmente, quase “sem querer”. Uma análise superficial pode apontar as razões: eles ouvem um mesmo tipo de música, lêem o mesmo tipo de literatura, trocam e-mails e comentários em weblogs uns dos outros. Interessam-se, enfim, por assuntos semelhantes.
Talvez esse mesmo tipo de relação não seja exatamente perceptível para os transgressores da Geração 90, mas Nelson de Oliveira anotou algumas semelhanças: nonsense, ironia, insanidade, fragmentação, fluxo de consciência, divagações cínicas e rancorosas, delicadeza do absurdo, gosto pela prosa malcomportada e desprezo pelo discurso linear. Desse caldeirão saem coisas tão distintas quanto um Fausto Fawcett — cujo conto remete a canções de sua autoria bem ao estilo meu-nome-é-kátia-flávia-godiva-do-irajá-me-escondi-aqui-em-copa — até Simone Campos, cujo texto inocente obriga o leitor a, forçosamente, lembrar de seus poucos 20 anos.
Criadores de produção ainda incipiente não são, por excelência, os melhores candidatos a figurar em qualquer antologia. Geração 90 — Os transgressores não é, por definição, uma antologia de contos. Ao mesmo tempo que não deixa de ser uma coletânea do gênero, mesmo contra a vontade de seu organizador. De uma ou outra maneira, o livro cumpre com seus papéis, dando mostras da produção do que Nelson e a editora dizem acreditar ser “os melhores contistas e romancistas surgidos na década de 90”. Muito provavelmente não é o melhor exemplo do que podem e poderão render os autores selecionados. Mas lá já estão eles, devidamente registrados na História da literatura brasileira.