O problema da nova geração de prosadores brasileiros, gente com idade que varia dos 20 aos 35 anos, mais ou menos, é um só: ingenuidade. São, em geral — e com raras exceções, provavelmente inéditas —, autores que ainda acreditam em alguns mitos literários consolidados ao longo do amalucado século 20. Gente que acredita numa literatura de contestação e que, por isso, acaba compondo um romance anacrônico em sua proposta que chega a soar… existencialista. Para quem não acredita em influências (teoria literária é como fé: ou se crê ou não se crê. Eu creio), poderia dizer que esta geração dialoga essencialmente com os autores do entre-guerras (F. Scott Fitzgerald, Hemingway) e do pós-guerra (Camus, Sartre).
É uma literatura baseada em tédio, cansaço, preguiça e inércia. Pode até ter uma proposta redentora, mas a redenção só acontece a partir do momento em que o tédio tomou conta do romance e não tem por onde escapar. Seria possível montar uma extensa biblioteca somente com livros recém-lançados que se apoiam sobre estes pilares. Ferrez, Clarah Averbuck, Mirisola e coisas deste tipo nada mais fazem do que uma literatura absolutamente retrógrada. Ousaria até dizer reacionária. Uma literatura fora de seu tempo, que não se justifica senão na falta de imaginação dos autores.
Há quem consuma, claro. E a partir dos leitores deste tipo de literatura é possível escrever um verdadeiro Tratado Patológico do Leitor Brasileiro. Que, carente de escritores realmente inventivos, sofre até hoje de imaginose aguda, isto é, carência de imaginação — própria e alheia. Não há como se iludir neste sentido, porque a imaginose aguda é como a subnutrição e está entranhada na nossa cultura.
Como leitor exigente sinto-me desconfortável ao terminar de ler Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera. Há muito venho escutando o nome de um grupo de novos escritores gaúchos (na verdade, apenas dois: Daniel Galera e Daniel Pellizzari), que contam com o aval de gente que respeito, como João Gilberto Noll, que assina a orelha deste livro. Curioso, pedi ao autor, que também faz as vezes de editor, um exemplar do livro. Demorei a lê-lo porque havia algumas coisas na fila. Talvez eu jamais devesse ter lido e, assim, me mantivesse com a ilusão de ser contemporâneo de uma verdadeira nova geração de escritores.
Literariamente, pode-se dizer que o trabalho de Galera neste seu romance de estréia (o autor lançara em 2001 o volume de contos Dentes guardados, pela mesma editora) é caquético. Seu romance chega às mãos dos leitores com pelo menos 30 anos de atraso. Isso de uma perspectiva otimista, que legitima romances de personagens entediados até a década de 70, mais ou menos. Numa perspectiva mais realista, poderia dizer que Até o dia… chega às livrarias com uma embalagem do século 21, mas com um conteúdo defasado uns 80 anos em relação ao que se espera de um novo autor.
Não me entendam mal. Não é que Daniel Galera escreva mal. De jeito nenhum. O problema é que ele não tem absolutamente nada o que dizer que justifique o investimento num romance. Em contos, talvez, porque o conto permite uma aposta maior na linguagem. Como romancista, o jovem escritor nada mais é do que um proto-escritor. As 122 páginas de seu livro nada mais são do que uma reedição do tédio de Albert Camus. Que, revisitado, Michel Houellebecq torna pelo menos muito mais engraçado.
O grande silêncio encerrado no romance de Daniel Galera se torna ainda mais audível quando se lê uma passagem que o contradiz. A presença, aqui e ali, de frases e raciocínios com algum tipo de beleza e, por que não?, vida, ressalta as deficiências do livro, marcado por uma negatividade — nunca é demais dizer — absolutamente conservadora.
É difícil imaginar uma sensação de maior conforto e serenidade do que esta, que surge da ilusão elaborada de que fazemos parte da vida de uma pessoa a ponto de estarmos verdadeiramente unidos, de que tudo estará bem se o outro estiver por perto, se apenas nos for dada a chance de saciar os interesses um do outro, de tolerar um ao outro quando sacrifícios forem necessários e deixar que todo o resto se foda, se destrua e morra, porque não haverá problema. (p. 100)
Pela passagem acima — um momento raro de lirismo num romance marcado pela tentativa obtusa de racionalização extrema —, arriscaria dizer que, uma vez contida a vaidade e a ansiedade, Galera pode se tornar um grande escritor, porque está num nível muito acima de seus contemporâneos. Tem um domínio de ritmo incrível e costura seu romance impecavelmente. Além, percebe o mundo com uns olhos ternos, ainda que relutantes de assim o serem. Sim, porque só uns olhos cheios de ternura (palavra démodé, hein?) são capazes de compor um personagem como o cão Churras, marcado por uma pieguice sarnenta e digna.
Fico aqui pensando, com o livro fechado ao lado, no que leva esta nova geração a escrever. Por que é que gastam seu precioso tempo escrevendo coisas absolutamente redundantes? Ora, poderiam estar namorando, fazendo arruaça nas madrugadas, estudando para se tornarem um Médico Sem Fronteira, tirando fotografias de passarinhos ou até lutando contra os alimentos transgênicos, se quisessem. Mas não. Preferem ficar confinados num cubículo, descrevendo a grande inabilidade que têm para viver, para se relacionar com o sexo oposto (ou com o mesmo sexo — há que se ser “abrangente” nestas horas) e para encontrar um motivo que justifique o ato involuntário da respiração. Confesso: se eu fosse presidente de uma ONG ou um clube de grã-finos como Rotary ou Lions, proporia um programa assistencial para Escritores Desenganados. Daria a eles um pouco de cor, na esperança de que vissem o mundo com alguma imaginação que justificasse o epíteto que carregam às costas, numa plaquinha de madeira carcomida por cupins: ESCRITOR.
Não se engane o leitor: meu sonho não reflete um desejo altruísta de salvar a literatura nacional. Por outra, é o desejo egoísta de um devorador de livros que não suporta mais se deparar com justificativas para a incapacidade criativa como esta:
Apenas segui o caminho natural das coisas, como me ensinaram que eles deviam acontecer. Onze anos de colégio, quatro de universidade. Fiz minha carteira de identidade [olha o eco!], meu título de eleitor, meu CPF, abri minha própria conta no banco, fiz carteira de trabalho, registro no INSS. Aulas particulares de inglês, três anos praticando remo, carteira de motorista. Segui o roteiro à risca, desde que nasci. (p. 40)
A “falência social” de que o personagem de Galera é vítima leva a um cotidiano marcado por paredes brancas, amplas janelas que dão para o Guaíba e uma rotina de masturbação filosófica sem propósito algum. Por quê, para estes escritores, crescer é tão difícil? E por quê, meu Deus!, insistem numa cantinela de auto-destruição ou, quando muito, auto-aniquilação:
Meu objetivo, ultimamente, era me preocupar com as coisas que realmente importam, e não são muitas. Pouco mais do que cigarros, uma garrafa de cachaça ou vodca no congelador, uma foda de vez em quando, um lugar quieto de onde fosse possível observar as coisas de cima. (p. 16)
Até o dia… é mais um livro adolescente, para adolescentes lerem e pensarem na vida, daquele jeito adolescente que é próprio dos adolescentes. Não à toa, o escritor exagera na caracterização de um personagem que parece estar imune às dores mais simples do homem. No fundo, o romance não passa de mais um livro de “machos” que escondem a sensibilidade para poder sobreviver e conviver. A história é antiga, claro. Novamente vale dizer que se trata de uma literatura que patina no lugar-comum da contestação. Está sempre mais para letra de “música” de bandinha pop inglesa do que para um romance digno do nome.
A prosa de Galera ainda é marcada por certo regionalismo. Nada de reprovável in extremis, claro. Apenas algo a ser apontado. Ao leitor causa certo estranhamento expressões populares gaúchas e até o indefectível “tchê” no meio de um diálogo essencialmente urbano e que, creio, pretende-se a universal. Se o regionalismo recalcado não é uma falha do livro — e não é —, o mesmo não se pode dizer da indecisão lingüística de Galera, que transita entre o coloquial e o formal com visível desconforto. O autor, ainda, parece ter algum problema com os pronomes oblíquos. Há que se acreditar que, usando construções como “trouxe ela” ou “comprou ela” ou “pintou ele” o autor está produzindo algo jovem, moderno e revolucionário. É o tipo de discurso que, sinceramente, eu não compro.
Ainda é possível pensar em Até o dia… como uma grande e injustiçada crônica. Alguém já dissertou, não me lembro onde, sobre esta invasão que o efêmero tem perpetrado sobre aquilo que deveria ser perene. Isto é, sobre como o romance, ao longo dos anos, se equiparou em importância à crônica. E aqui, obviamente, não desmereço de modo algum a crônica, gênero que, no mais, considero riquíssimo na literatura brasileira. Quando Daniel Galera, por exemplo, descreve Elomar, o porteiro que é assim uma espécie de Picasso desconhecido e encarcerado num quartinho fétido de condomínio, ou quando narra uma improvável visita do narrador e sua “namorada” Marcela a Lárcio, motoboy que a atropelou, está escrevendo crônicas. Que elas se entrelacem num amálgama ressentido, não importa. Os episódios têm, para o romance, importância nenhuma, mas é possível que funcionassem isoladamente.
É também preciso apontar para algo inusitado em Até o dia…: o estômago do protagonista, possivelmente um alter ego do escritor (os escritores da assim chamada nova geração adoram esta coisa de alter ego), é provavelmente o melhor personagem do romance. Nunca vi um estômago tão bem construído, com reações tão surpreendentes e com uma atuação tão grande numa história de amor e fastio.
Fico me perguntando apocalipticamente, à la Fukuyama, se também a imaginação, com a história, acabou. Escritores jovens escrevem somente sobre si mesmos, sobre seus umbigos alimentados com sucrilhos Kellogg’s, sobre seus momentos hamletianos tão superfaturados. Ninguém parece ser capaz de um lampejo de criatividade na literatura atual: uma imagem remotamente original, um personagem minimamente carismático, um capítulo para se ler, decorar e recitar todas as noites antes de dormir. Quero acreditar que estou enganado e que vai aparecer na caixa do correio um pacote contendo um livro, pode ser até em edição caseira, contendo uma grande história. Ou algo que ao menos mereça o título de literatura.
Self-talk show
Alertado por uma moça muito inteligente sobre as coisas que ando escrevendo a respeito de escritores jovens ou estreantes, resolvi fazer esta pequena entrevista comigo mesmo, de uma pergunta só, a fim de responder a esta questão que não quer calar. Ao menos em mim.
• O senhor não acha injusto, agressivo demais ou cruel fazer uma crítica negativa de um livro escrito por autores estreantes, gente que tem vinte e poucos anos, se tanto?
Penso nestas coisas. Imagino a pessoa lendo a crítica, com todas as palavras fortes que ela contém, e ainda superdimensionando todos os apontamentos, num exercício de autoflagelação. Também imagino, em caso de elogio, o autor novinho novinho lendo os elogios como comprovação da genialidade. Por isso, penso bastante antes de escrever sobre um autor iniciante (risos). É sério. Prefiro macacos-velhos, gente para a qual minha opinião não vai fazer diferença alguma. Até porque escrevo crítica não para o escritor, e sim para o leitor em potencial do livro, né? O negócio é que eu me baseio numa premissa: se a pessoa acha que tem maturidade para escrever, então ela tem de ter maturidade para aceitar todo o tipo de críticas, desde as elogiosas até as mais ácidas — que, no fundo, são as melhores. Se uma crítica negativa que eu tiver escrito levar a pessoa a desistir da literatura, tanto melhor: esta pessoa não era um escritor de verdade. Além disso, não concordo com esta visão da idade do escritor como uma espécie de atenuante. É, atenuante. O cara escreveu uma coisa ruim, muito ruim, um lixo mesmo, mas logo vem alguém dizendo: “tá muito bom para quem tem apenas vinte e tantos anos”. Besteira. A partir do momento em que o livro foi lançado, o autor não tem mais idade. É tudo literatura. A idade do autor é um mero detalhe. Não pode ser determinante para se avaliar a qualidade do livro. Por isso é que digo sempre para quem quer me ouvir: antes de lançar um livro, esteja preparado para absolutamente tudo. Escrever é botar a bunda na janela. Quando menos se espera, vem uma pessoa e dá um tapa bem ardido.