O sorriso das pernas
Vieste sem perguntas, como quem caminha
pela estrada e não pára à entrada da casa.
Cortaste-me o pão aos pedacinhos, fizeste o ninho
na almofada onde o meu sono dorme
com as histórias que desdobras no lençol.
Dei cor aos nomes com as letras devastadas,
comi a fruta com os teus dedos, deitei-me
entre o polegar e teu médio, entre os duendes
da clareira que abriste para o dia. Cantaste a minha dor
e dela fiz a manta que nos cobre. Voltei a ser
o sorriso das pernas, o sopro na voz que chega
onde estiveres. Agora que não há perto
ou longe, ou coisa que faça mal, que tudo se toca
por dentro do devir, deixo um nenúfar à porta
para quem chegue com o fardo da noite. E faz-se luz
com as pétalas abertas do teu nome.
…
Invenção do olhar
Não digas que eu não estava à janela,
que não foi para ti o que não viste.
Há tanta coisa que não sabes, não digas.
Um dia ver-me-ás à janela de ontem
com a roupa que hei-de vestir amanhã.
Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei
O que fiz nesse dia. Mas a janela guarda os meus dedos
Como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente.
Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
A moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.
…
Soletrar o dia
Tenho tudo por dizer e gasto palavras
para lá chegar. Não sei se me afasto
ou se chego perto. Se alguma vez rocei
a pele do essencial. E pergunto-me sempre
para quê estas palavras que me teimam.
O passado não é o que está feito,
mas o que palavra alguma fará de novo.
Por isso leio sempre no futuro, mas não sei
para que lado do tempo escrevo. E se soubesse
que arrasto as letras como um caranguejo
diria que só tenho esta mão de palavras.
Soletro os dias em cada coisa que me olhar
quando me sinto a vê-la. É tudo.
E não há desculpas para o que faço.