Saturno nos trópicos? Nem tanto

Moacyr Scliar escreve livro sobre a melancolia no Brasil para dizer que ela não prosperou por aqui
Moacyr Scliar: encruzilhada de citações
01/07/2003

Moacyr Scliar é um ficcionista, seus personagens vivem, e também um cronista, um informado e delicioso comentador de tudo, ou quase tudo, nas inumeráveis crônicas que publica como nos romances, contos, ensaios.

Surge agora com seu mais ambicioso estudo, Saturno nos trópicos — a melancolia européia chega ao Brasil, uma encruzilhada de citações, títulos, datas, referências, etimologias, esclarecedoras traduções de ditos e palavras. E não ficou professoral, mantém o grato papo de cronista, a escrever pensando no leitor e mesmo respondendo a dúvidas que as afirmações possam lhe ter criado. O resultado é acompanhá-lo com gosto. Justificado?

Ele vai recolhendo tudo o que soe triste. A melancolia boa como a má, a que leva a indagar as razões do universo e o possível papel humano nele, e a que ocorre por egoísmo. Como se fosse igual, acrescenta a tristeza, que se caracteriza por passar. E a depressão, antes uma enfermidade neurológica que pede remédios que, por sinal, funcionam. E a saudade, logo a saudade que especialmente a geração de Teixeira de Pascoaes dignificou como se fiel à dignidade do bom do passado, mais um bem que amargura. Inclui até o outro lado da melancolia, a conduta maníaca, um recurso para se livrar dela.

Não admira que tenha ido tão longe, como uma enciclopédia ou a internet, que devem ter ajudado. Foi enumerando o que podia ter alguma relação com melancolia e assim perdendo-lhe o contorno. Fala no clássico A anatomia da melancolia de Robert Burton, mas descreve o livro — longo, cheio de citações, inclusive em latim etc. —, menos que analisa. Nem se detém nos pensadores contaminados por seu tema, inclusive ninguém menos que Miguel de Unamuno que, por décadas, fez opinião na Espanha e na América Latina. A melancolia levaria a pensar sobre o homem e sua evolução, ou traria esse pensamento.

Passe. O desfile geral de erudição da primeira parte do livro pode ser visto como um panorama para chegar à segunda, a melancolia no Brasil, alvo do ensaio a começar pelo título. Verdade que na ausência de um diagnóstico, de uma noção mais precisa e pessoal da melancolia, o material aludido não fornece um quadro em que o Brasil possa ser inscrito e fica tudo vago de mais.

Não surpreende que, entre nós, parta de Paulo Prado (1869-1943) e seu Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, de 1928 e tão superado. Mas falou de tristeza, entrou. Para Prado, o brasileiro seria o produto de três raças tristes, num romantismo de paulistano rico, preferindo naturalmente residir em Paris. Mas o fato é que não há raça triste; a tristeza para chegar a ser é pessoal. Mesmo os índios mais em si, segundo quem tanto viveu com eles e os entendeu, Darcy Ribeiro, são felizes e mais que os civilizados.

Logo Scliar enumera personagens notórios da ficção nacional que documentariam tal melancolia. Vejamos. Bacamarte, n’O alienista de Machado de Assis, pessoaliza um jogo alegórico sobre a loucura, não melancolia, além de ser menos ficção, vida, que exemplo estapafúrdio, cujo prestígio se deve em parte ao parentesco com imaginações de Poe então tão em voga. Já Policarpo Quaresma, de Lima Barrreto, tem mais os sonhos sadomasoquistas de um esquizóide. Macunaíma, de Mário de Andrade, vale antes pela literatura de alguns trechos, pois acaba não dando com o mito humorístico sobre o brasileiro que promete. Jeca Tatu versa a indignação com a descansada gente do campo da parte de um trabalhista como Lobato. Macabea, de Clarice Lispector, é o vazio, que a futilidade pode imantar do podo anônimo. E esses personagens são descritos não raro pelos próprios autores e até por Scliar como isentos de melancolia. Pelo visto, entre nós ela não grassou.

Na última frase já das notas do livro, esse enfim cai em si: “Mas o certo é que a melancolia não parece aqui ter prosperado — apesar da pobreza, apesar do atraso, apesar da corrupção. Saturno e o trópico pelo jeito não se dão bem. Felizmente”. Desdiz-se o que o volume pretendia dizer. Aliás afirmar e logo dourar a pílula é uma característica do cronista Scliar, indo a um meio-termo com que os leitores se identificam.

Claro, com sua inteligência ele não ia deixar de ver o que acontece. Nem o brilho no longo transcurso pelo labirinto das bibliotecas o coibiu de ver. Nosso Scliar.

Saturno nos trópicos
Moacyr Scliar
Companhia das Letras
280 págs.
Paulo Hecker Filho

É poeta e crítico literário. Autor de A cidade e o homem, entre outros

Rascunho