A mansa loucura do professor de dramaturgia

Um conto de Lourenço Cazarré
01/07/2003

O que se encontra no coração dos homens permanece um mistério para mim. Desde aquela época, tenho observado vários tipos de pessoas – escroques, falsários, gente que matou ou morreu por dinheiro – e todos eles parecem pessoas normais; fico confuso.

Relato Autobiográfico. Akira Kurosawa

Dias atrás, de manhã, bem cedo, eu cheguei aí nessa porta, mas não consegui ultrapassá-la. Não que houvesse problema com a chave ou com a fechadura. Girei a chave e, depois, simplesmente, o meu braço se recusou a movimentar a maçaneta.

Não, não ria. Embora eu também ache que a situação é ridícula, peço-lhe que não ria antes de ouvir o que tenho a dizer. Também nunca levei a sério essas histórias de sujeitos que se vêem, repentinamente, impossibilitados — por uma espécie particular e tranqüila de loucura — de realizar atos insignificantes do cotidiano.

Mas foi exatamente isso que se deu comigo.

Na primeira semana, ninguém reclamou da ausência do velho rabugento.

É possível que alguém tenha estranhado a falta dele, sim, mas o certo é que o tal aluno não se perdeu em considerações porque aqui, mais do que em qualquer outro campus, umas horas de folga são sempre bem recebidas.

A vantagem da nossa universidade é que a coisa aqui é levada na maciota, por alunos e professores. Ganha-se mal, mas, em compensação, não se trabalha quase nada. Finge-se: uns que lecionam; outros que aprendem. O mundo nem pára nem gira mais depressa por causa desse nosso jeitinho inzoneiro.

Em outras palavras, uma gazeta professoral não espanta ninguém por aqui. Professores daqui estão sempre viajando para conferências, seminários, mesas-redondas ou outras tapeações. Nos banheiros não se tem torneiras nem se encontra papel higiênico, mas passagens aéreas não faltam.

Vocês podem achar que falo assim por maldade ou por despeito. É verdade, sou despeitado, porque não sou esperto o suficiente para descolar passagens ou cursos no exterior. E falo maldosamente, sempre que posso: é do meu temperamento.

Fui jovem também, anos atrás, e menos amargo. Mas a vida me triturou, me moeu e me transformou nesta poção. Dois ou três namoros ridículos, um casamento fracassado e uma vida profissional medíocre fizeram de mim o que sou: uma víbora peçonhenta.

O certo, repito, é que na primeira semana a garotada nem deu pelo sumiço do rabugento. Acontece que os alunos dos primeiros semestres, que são justamente os que ele leciona, gostam muito de ficar a maior parte do tempo no pátio, namorando, dizendo bobagens e rindo como idiotas. Na ausência do velho, desceram aos nossos pátios, que são fartamente arborizados para que os estudantes possam ali fumar, tranqüilos e incógnitos, a sua maconha cotidiana.

Nem tão incógnitos, é verdade, porque o cheiro nos invade as salas e sempre tem alguém pedindo para ir lá fora. Então eu digo:

— Vá, mas vá correndo, porque já devem estar na bagana.

Eu sentia que não devia abrir a porta, que não devia deixar o apartamento. Era eu mesmo quem me dizia: pare, não abra esta maldita porta!

Deixei a chave na fechadura, ali, onde ela se encontra até agora, como você pode ver, e voltei ao meu quarto. Deitado, eu pensava no ridículo da situação, e ria. Mas chorava também, porque o ridículo dói. Eu sabia que jamais poderia sair deste apartamento.

Agora, tantos dias passados, sei por que sou prisioneiro deste apartamento e acho que devo lhe falar sobre isso.

Veja bem: embora eu o chame de rabugento, a verdade é que o velho não pode ser considerado um chato clássico. Neurastênico, impaciente, rude, áspero, sarcástico e maledicente, sim. Mas chato, não. Embora ríspido, é muito irônico e, em cada turma, sempre há dois ou três alunos que sabem apreciar seu humor refinado.

Percebo que agora, enquanto me olha, entre condoído e assustado, você se pergunta se não estou maluco. Reconheço que tem todos os motivos para pensar assim, mas acontece que jamais estive tão lúcido em toda a minha vida. No fundo, o que você mais teme é que eu lhe tome demasiado tempo com o relato dessa história.

Na segunda semana, sim, a coisa veio à tona.

O alarme foi dado por uma aluna. Estava eu na secretaria da faculdade, sentado numa pequena mesa discreta, num canto, passando a limpo as notas de uma das minhas turmas quando a garota se apresentou ao guichê, afoita, querendo saber o que estava ocorrendo com “o bode velho”:

— Será que ele agora está fazendo uma greve particular, uma espécie de continuação da breve paralisação de quarenta dias que os vagabundos dos nossos professores fizeram no início do semestre? Ou será que se acostumou a ficar em casa, de papo para o ar, coçando o saco murcho?

A garota é um caso raro de muito estudo mesclado a vocabulário de quartel.

Permaneci com as fuças enfiadas nos papéis temendo que sobrassem xingamentos para mim. Como a maioria dos professores, adotei a tática de ser invisível. Nossos alunos não gostam muito de estudar, mas são exigentes, agressivos até, no que se refere às notas que recebem.

A funcionária que estava atendendo naquela hora — uma das pessoas mais preguiçosas e cínicas da face da terra — perguntou, falsamente desinteressada:

— Você está falando de quem, afinal, minha filha?

— Não sou sua filha e estou falando do professor Caetano, ora! Quem se parece mais com um bode velho do que ele?

— É verdade — disse a funcionária. — Você tem toda a razão, minha filha, faz dias que ele não aparece por aqui. Vou falar ao chefe do Departamento.

— Fale agora mesmo! Não enrole! Não deixe para o ano que vem — retrucou o garota. — Se ele não voltar logo às aulas, entro com uma representação contra ele no Conselho Universitário.

Como você sabe, sou um homem de poucas palavras. Sempre fui obrigado por esta nossa profissão a papaguear bastante dentro das salas de aula. Por isso, sou lacônico fora delas.

Nunca ninguém me viu — nos mais de trinta anos que leciono aqui — fazendo perguntas indiscretas ou confissões constrangedoras, que são os sinais indesmentíveis da vulgaridade.

Tenho um pudor quase invencível no meu relacionamento com as outras pessoas, porque, desde menino, sempre me considerei o maior dos maçadores, um chato de galochas. Assim, vivi sempre fechado sobre mim. Se me abro hoje, com você, é porque este é o momento de falar para, em seguida — como recomenda o padre casamenteiro —, calar-me para sempre. Quero que me escute com a atenção que, em tese, é devida a um homem de setenta anos.

No final daquela manhã, fui chamado ao gabinete do chefe do nosso Departamento, o Mascarenhas. Sabendo que eu era vizinho do professor Caetano, ele me pedia para dar uma passada pelo apartamento do velho a fim de descobrir o que estava acontecendo com ele:

— Sujeito muito velho e meio maluco. Lendo que nem um tonto, dia e noite. Os miolos vão se gastando, como o resto todo. Um dia, a casa cai. Fora uma ida às livrarias, nas manhãs de sábado, não sai nunca. Vive lendo. Miolo mole. A velhice. A loucura. A solidão.

Mascarenhas, que sempre fala como se estivesse em sala, tratando com alunos imbecis, repisando mil vezes a mesma idéia, riu amarelo e arrematou:

— Faça-me esse favor. Veja se o velho não morreu esmagado debaixo de uma pilha de livros.

Era uma sexta-feira chuvosa.

Começo dizendo que há cerca de vinte anos iniciei meus estudos sobre teatro e cinema. Devo frisar, antes de mais nada, que, na época, não me interessava nem um pouco por essas duas artes. O que fiz foi cumprir apenas um dever profissional. No fundo, sempre fui um homem de letras. Letras impressas. Um homem totalmente de papel. Nunca me havia interessado por outra realidade além daquela que encontramos nas obras de ficção.

Pois bem, comecei a estudar o teatro quando fui incumbido de lecionar Dramaturgia. Naqueles tempos, éramos poucos professores. A gente se virava do jeito que dava; cheguei a ministrar cinqüenta aulas por semana. Um dia, o diretor chegou e me disse: a partir da semana que vem a Dramaturgia será sua. Foi assim mesmo, na marra!

Anos depois, inventaram uma cadeira chamada Linguagem Cinematográfica, que também acabou caindo sobre os meus ombros. Aos poucos, com a contratação de novos professores, fui repassando a maioria das minhas disciplinas. Acabei, por fim, há uns cinco anos, ficando só com essas duas: Dramaturgia e Linguagem Cinematográfica.

Que ironia! Veja: eu, um homem da literatura, acabei afastado da palavra escrita. Empurraram-me para a escuridão dos teatros e dos cinemas. Mas os homens se acostumam a tudo, e eu não sou diferente.

Agora, ao cabo de tantos anos, creio que posso dizer que gosto dessas disciplinas, que estudei com afinco. Sempre tive consciência do valor de meu papel como professor. Posso dizer de boca cheia, agora que estou velho, que sou um homem feliz, pois sempre trabalhei naquilo que mais gosto. Nasci para estar numa sala de aula, de pé, falando e gesticulando, a cabeça metida num redemoinho em busca das palavras mais exatas, dos exemplos mais significativos, das histórias mais engraçadas, de tudo, enfim, que consiga prender a peregrina atenção dos estudantes.

Todo professor é um homem do mundo livresco. O nosso parco saber nos vem dos livros. Há quem saiba ler no chamado livro da vida, mas eu não consegui jamais decifrá-lo. Parece-me bastante mal escrito.

O ensino da Dramaturgia levou-me a perceber, com nitidez, as pequenas trapaças que eu próprio vinha encenando há tanto tempo, mostrou-me os truques, tiques, escamoteações e trejeitos que utilizava ao longo de tantos anos nas salas de aula.

Todo professor é um ator, só que extremamente privilegiado: tem público cativo, todo dia está com a casa cheia e seu espetáculo fica um ano inteiro em cartaz. Apesar disso, claro, tem que se empenhar a fundo para segurar a atenção do público. Tem de comover e fazer rir alternadamente, num ritmo meticulosamente ajustado.

Percebi ainda que aquela personagem que eu vivia — o professor — estava em constante mudança. Eu me sentia, ao entrar em sala, como se estivesse ingressando num túnel, do qual sairia um outro homem. Ao fim da aula, eu tinha que respirar fundo para voltar a ser o que era antes. Assim ocorre com os atores, que morrem todo dia para deixarem vagas suas almas para o aluguel dos personagens.

Confesso que me sentia eletrizado no fim das aulas, quase levitando. Mas essa impressão durava bem pouco porque o impacto de uma boa peça de teatro, como o de um belo poema, só permanece em nós por uns fugazes minutos. Em seguida, o mundo nos avassala com suas solicitações e estrangula nossos sonhos de beleza.

Num certo momento, notei que não mais estava preparando aulas; o que eu fazia era escrever monólogos. Pela reação dos alunos, bocejos sonoros ou gargalhadas frenéticas, eu retocava esses monólogos. De um ano para outro, aprimorava-os. Por fim, cheguei à sofisticação de preparar diálogos. Sim, eu estabelecia perguntas e imaginava as quatro ou cinco respostas mais prováveis dos alunos e, para todas elas, preparava réplicas jocosas. E, assim, fui tomado por um homem espirituoso quando, na verdade, meu pensamento é extremamente moroso. Jamais tive uma resposta pronta na ponta da língua. Fui tomado pelo meu inverso. Era o espirituoso que não tinha nenhum espírito.

Estudei cuidadosamente a marcação. Depois de algum tempo, eu sabia o exato momento de levantar da cadeira para ir à janela. Havia momentos de fitar perdidamente o céu; outros de encarar silenciosamente os alunos. Há frases para serem ditas andando; e outras que só podem ser pronunciadas por um homem que, sentado, observa o entardecer.

Não quero tomar muito do seu tempo, mas eu ainda poderia falar muito, baseado na minha experiência, sobre a colocação da voz: alta, baixa, aguda, grave; os movimentos das mãos; o uso desta máscara de infinitas possibilidade que é o nosso rosto… Mas chega.

Quero falar mesmo é de cinema.

Peguei o carro e fui direto ao decrépito edifício cujos apartamentos a universidade nos aluga a precinhos de pai-pra-filho. No elevador, por força do hábito, apertei o botão do quinto andar. Moro ali há três anos. Já estava desembarcando quando me lembrei que tinha de subir até o sexto, onde mora o professor Caetano. Tornei a pressionar o botão.

O corredor do sexto andar é idêntico ao do quinto andar: tijoletas gastas no piso, pintura descascada nas paredes e iluminação deficiente. Quando ia premir a campainha do velho tive um instante de vacilação. Por que aceitei o pedido do idiota do Mascarenhas? Por que não tirei o corpo fora? E se o velho resolve me xingar, o que faço?

Parei o gesto no meio, braço no ar, indicador esticado. Melhor seria descer ao meu apartamento, sem falar com o velho. Na segunda-feira, inventaria qualquer mentira para engambelar o Marcarenhas. Ele que viesse falar com o professor Caetano.

Mas a verdade é que acabei apertando o botão. Afinal, não é todo dia que um pacato professor de literatura brasileira tem a oportunidade de bancar o detetive.

Pois bem, quando não consegui abrir a porta de meu apartamento, considerei num primeiro momento que estava apenas com medo de sair à rua. Nada mais natural do que ter medo de deixar nossa casa hoje em dia: há sempre um carro disposto a atropelar um pedestre empedernido como eu; em todo beco, há um assaltante desesperado à espera de um velho que não possa reagir.

Mas não era medo o que me retinha.

Não saí de casa porque, se passasse da porta, se cruzasse o umbral, o mundo desapareceria todo comigo. O mundo seria sugado.

Vejo que um sorriso quer tomar conta de seus lábios, e percebo também que você o sufoca. Não se preocupe, sorria. O que digo parece mesmo sem pé nem cabeça. Mas devo ser honesto, embora parecendo cômico. Confesso que antevi o que aconteceria se eu chegasse ao corredor: o mundo se desintegraria por trás de mim, cidades, campos, árvores e fábricas, homens e animais, tudo sumiria às minhas costas, todas as coisas seriam sugadas e tragadas por um abismo negro, tudo o que foi conquistado ou construído, plantado ou sonhado seria diluído na escuridão. O mundo desapareceria, em meio a uma leve nuvem de poeira e a um rascar suave, exatamente como some a lição escrita no quadro-negro, ao fim da aula, quando empunhamos o apagador. Ou melhor: como um pedaço de celulóide que se incendeia…

Se fosse um sujeito vulgar, na certa, você venceria o espanto e o desconforto que o tolhem neste momento e me perguntaria: onde foi que o senhor arranjou esta maluqueira, professor Caetano?

Mas como você é comedido, e não me faz essa pergunta, eu tomo a liberdade de explicar-lhe esse tipo peculiar de doidice.

A campainha soou forte. Prolongaram-se os segundos e eu não ouvi nada. Passos, estalidos de juntas emperradas, ruído de chaves, pigarro ou tosse. Nada.

Será que o velho morreu?

Um calor nervoso me subiu ao rosto. Esfreguei as mãos úmidas.

Eu vacilava, não sabia se apertava de novo na campainha ou se me ia embora, quando a porta foi aberta. Mais que isso: foi simplesmente escancarada. De repente, sem um ruído, abriu-se.

— Que surpresa! — disse o velho.

O professor Caetano é um homem pequeno e magro, com uma comprida barbicha branca pendente da ponta do queixo. Encimando a boca chupada, há um imenso nariz. A mão que estendeu para mim era grande e seu aperto vigoroso e visguento.

Uns olhos castanhos, escondidos por trás de lentes garrafais, me fitavam com intensidade, e eu procurei ler neles o que se passava no coração do homem. Vi ódio, irritação, desdém, enfado e melancolia, tudo misturado.

— O que o traz ao meu modesto apartamento, professor? — perguntou.

Depois de uma caótica introdução, tartamuda, recheada de perdões, escusas e lamentos, expliquei a ele que estava ali, a pedido do Mascarenhas, para ver como ele estava passando. E concluí:

— Ficamos preocupados com a sua ausência. Intelectuais, em geral, não cuidam da própria saúde; ou são orgulhosos demais para admitir que estão doentes. Por isso, estou aqui. Para ajudar, se for preciso.

— Pensaram, então, que eu estivesse morto? Muito bem! Você pode me dizer se o idiota Mascarenhas já preparou o edital para a admissão do meu sucessor?

Disse isso e explodiu numa formidável gargalhada, daquelas que trazem junto seu próprio eco. Enquanto ele gargalhava, eu troquei o pé de apoio três vezes. Gargalhada é uma coisa que nunca aceitei bem.

— Entre! — comandou ele, por fim.

Embora intimidado com o riso histérico do velho, avancei. A visão das paredes de sua sala, inteiramente cobertas de livros, do chão ao teto, me sugou para dentro do apartamento. Professores de literatura são os únicos seres deste mundo dispostos a arriscar o pescoço por resmas de papel amarelado.

Havia livros por todos os lados: na mesa, nas cadeiras, nos sofás, nos aparadores. Por toda a sala, como soldados de um batalhão em debandada, erguiam-se pilhas vacilantes de livros que exalavam o aroma da poeira longamente acumulada.

O professor Caetano retirou braçadas de livros de duas cadeiras.

— Sente-se! Há muitos anos não recebia a visita de ninguém. Estou contente em vê-lo, professor. Aliás, vou aproveitar sua presença aqui para dar início ao meu processo de desligamento da universidade. Vou me aposentar.

— Aposentar?

Apaixonei-me pelo cinema. Acho que não há arte que exija mais talento de um homem do que essa. É preciso ser um gênio para falar através de imagens em movimento. De início, era um amor platônico, quase frio, o único tipo de amor que nós, intelectuais, sabemos viver. Passei, depois, a amar as imagens tanto pelo que estampavam quanto pelo que escondiam. Admirava Fellini, Buñuel e Kurosawa, os três gênios. Mas um amor só se transforma em paixão quando é amplo, generoso. Passei, então, a apreciar também as comédias, os musicais, os faroestes, as aventuras para crianças e os filmes policiais…

Vejo que neste momento, discretamente, você tenta ler o mostrador do relógio. Está com pressa. Ou com fome. Ou cansado. Deve estar louco para chegar em casa e descansar. Não se preocupe, vou concluir rapidamente.

Diga simplesmente ao medíocre do Mascarenhas que me mande aqui em casa alguém com a relação dos documentos que devo apresentar para requerer minha aposentadoria. Explique a ele que jamais porei um pé fora deste apartamento, diga-lhe que aqui estou e que aqui ficarei até o fim dos meus dias, que não deve tardar.

Diga a ele que estou me lixando para tudo, diga que tenho setenta anos e que agora quero descansar, diga a ele que pretendo assistir a todos os filmes que foram feitos no mundo e que para isso basta que eu levante o telefone e ligue para a loja que aluga fitas de vídeo que logo chega o rapaz da motocicleta com belos filmes suecos, japoneses, italianos, franceses, espanhóis e alemães, existem milhares de filmes e não me resta vida para assistir a todos eles, como antes não pude ler todos os livros.

Diga que não abri minha porta porque finalmente compreendi que existe apenas um livro, de um só autor, que está sendo escrito e reescrito todos os dias, ou que, dito de outra forma, este mundo faz parte de uma única peça teatral escrita e dirigida por um só homem, que é todos os homens ao mesmo tempo, um sujeito cuja face ninguém conhece, que eu chamo O Sem Rosto; e que, por fim, eu percebi que esta grande peça teatral vem sendo filmada o tempo inteiro por um diretor, que ninguém jamais conheceu, e que eu chamo O Sem Olhos, um homem que vem filmando tudo porque pretende um dia montar um filme que seja a síntese perfeita da história da humanidade, e quem não é tolo sabe que o sol não passa de um canhão de luz, que nós nada mais somos que figurantes, e que os olhos d’O Sem Olhos são câmeras, e que um dia, se eu sair por essa porta, Ele vai gritar: Corta!

Lourenco Cazarré

É jornalista e escritor.

Rascunho