Marly de Oliveira oferece 45 anos de verso, desde sua estréia com Cerco da primavera (1958). Já foi reconhecida por José Guilherme Merquior, Mario Faustino, Antonio Houaiss, Ungaretti. Conviveu com gênios como Piaget e Borges. Vários autores confluem em sua sede e fome, sublinhando o sentido de um de seus poemas: “Eu não nasci só de mim”. É de uma linha filosófica, unificando o pensamento em uma nova ordem de imagens entre o real e o onírico: iluminuras fulgurantes, passionais, adelgaçando a sensibilidade pelas dúvidas. Não se entende como ela não está alçada ou presente em antologias como uma das vozes mais pessoais de nossa literatura. A crítica literária ficou com medo da poesia que pensa, da metafísica das imagens, restringindo aos atalhos da descrição e ao realismo publicitário. Uma pena que o excelente Dicionário crítico de escritoras brasileiras, organizada por Nelly Novaes Coelho, dedicou apenas oito linhas para falar de Marly. Ela merecia dobrar a página.
Ainda não valorizada como deveria, a poeta permanece reduzida à primeira-dama da poesia brasileira, em função do casamento com João Cabral. Em vez de ser lembrada pela sua criação, que reúne quinze livros, é mencionada pela ligação com o ícone pernambucano, já que acompanhou os últimos dias do autor, cedendo seu tempo para ampará-lo até a morte severina em 1999. Conseqüências da simbiose do matrimônio, onde vida pessoal obscurece a literatura.
É difícil definir onde se interrompe ou se modifica a elaboração do poema de Marly de Oliveira. É sempre igual, mudando. Propaga indefinidamente o mesmo livro, com variações musicais e uma necessidade de aprofundar ainda mais o sentido da escrita. Segue uma harmonia meditativa, de fundo existencial, transfigurando os mitos (Orfeu, Narciso, Hérodiade) e humanizando-os a partir de uma metalinguagem afetiva. Poesia que pára o próprio poema, buscando a vida natural do pensamento. Concilia um temperamento clássico, de avanço-recuo, de claro-escuro, de sensual retraimento, com anotações cotidianas, pequenas alegrias e epifanias. Esse recurso faz com que todo momento tenha o acento de despedida. Um telefonema ou uma cadeira de balanço encorpam as observações. A autora quer ver o que existe por detrás, atravessar as coisas e não usá-las. Os hábitos são forçados a descobrir o que os regem. A insistência e o estranhamento são as principais medidas de seus poemas, fazendo da suavidade uma violência. É uma luta entre o que a memória grava e que o olhar deseja. “A memória não dá trégua/ e eu nunca sei o que fazer com ela” (A força da paixão). A paz que surge esporadicamente é apenas a necessidade de uma nova rebelião. Suas metáforas identificam uma ausência, algo que está esvaindo e pede para ficar. “Quase uma água esse fogo nos doendo” (O sangue na veia).
A poesia, segundo Marly de Oliveira, é como um filho, nunca um acidente. A escritora bebe o “vinho da claridade”, procura se abastecer em uma lucidez exigente, a entender o curso dos fatos no mesmo instante em que eles acontecem. Pretende flagrar o invisível. É como se sua consciência acordada fosse desenvolvida com igual intensidade durante o sono, soltando a realidade de seus condicionamentos intelectuais e morais. Representa uma lírica ensimesmada, o texto experimenta uma queda em si. A autora desfaz o escuro, as cobranças, as sentenças, a necessidade do perdão e do julgamento. Uma moral que ouve e não cala. A melhor explicação de sua poética está em O sangue na veia: “O ver tranqüilo, sem excesso, eu quero,/ como a luz delicada que há num barco,/ numa folha, num bicho; um ver quieto,// que, absorvendo o real, nos deixe fartos;/ um ver maior que a fome, dilatado (…)”
A poesia de Marly de Oliveira tem — simultaneamente — uma nudez solar, autêntica, desotaque espanhol, e uma filosofia espessa como o sangue para valer um inverno inteiro. Significa um convite à distração. Até porque, quando estamos distraídos, é que realmente pensamos.