Naquele tempo, eu vendia camelos em Durbhan e me achava feliz. O deserto não era nada se comparado a minha solidão. A solidão não é o sentir-se só neste exato momento, mas a certeza de estar ainda mais só quando o amanhã acordar. No deserto também é assim, o sol não aquece, atraiçoa, o frio não refresca, apunhala. Sobrevivi ao frio, ao calor, à solidão e à indiferença serena dos meus camelos. As mulheres no deserto são apenas mulheres do deserto, trapaceiam com a areia e o vento, ensaiam relações de cumplicidade com o espinho e a pedra. Não existe amor, tampouco medo, são corpos vazios vagando em busca de mais vazio. Eu que almejava ser chuva já me considerava pó. Meus olhos eram amarelos e meu olhar cansado refletia minha ânsia de morrer logo e longe dali. A morte não vem quando se planeja, ardilosa prefere emboscadas, arma ciladas, beata louca em noite sem lua. Frustrado, resignei-me às sandálias rotas que não me permitiam sair do lugar, não arriscar é ferramenta que o tolo mais afaga. E o tempo já não passava, escorria feito gosma fétida através dos dias embaçados.
Sempre tive uma mulher por perto, o que não significava nada visto que no meu oásis elas se tornavam invisíveis e barulhentas, empestavam minha água e a sede me apequenava o corpo. Não sou de fugir, mas também não aprendi a combater o inimigo além da matéria, posto que naquele tempo ainda não visitara a sala invisível do mundo verdadeiro. Tolo, duvidava da existência de Deus e enaltecia minha capacidade de mudar de lugar, embora permanecesse andando em círculos há dois séculos e meio.
Eu era muito velho. Vim ao mundo já envelhecido, não sabia sorrir e o sorriso é mágica que rejuvenesce. Também não sabia o que era saudade, o que estava ao meu alcance era importante e o que eu não tocava não existia. Um dia um lagarto com cara de médico veio me ensinar o que era amor e eu fui bom aluno, mais tarde uma cobra com cara de padre disse que tinham me ensinado tudo errado e me mostrou do seu jeito. Fui discípulo dos mais aplicados, mas nunca pude colocar em prática. Até que um dia, conheci um abutre, tinha a minha cara, assimilei a lição e tivemos dois filhos que logo despertaram a atenção de Ramtho, o coyote orador com cara de deputado, que os levou para sempre. E assim o deserto me tirou filhos e planos. Amor era só uma lenda inventada pelas criaturas da desolação. Certo dia, na janela do amanhecer, avistei um vulto que acenava em minha direção. Tolo, não sentia medo, não sentia nada e decidi me aproximar. Frente a frente ele estendeu a mão e caí de joelhos; ao balançar seus longos cabelos, chorei pela primeira vez e as lágrimas viraram pedra ao contato com a areia quente que me suportava. Não sei por quanto tempo chorei, quando dei por mim a lua, antes cheia, se apresentava nova. Andei na direção de minha casa e no lugar não havia mais casa, tentei andar em círculos e marchei em linha reta, não sentia frio, tampouco me incomodava o calor. O lagarto, a cobra , o rato, o coiote e meus dois filhos vieram ao meu encontro e trouxeram damasco, tâmaras e sol. Eu ainda queria chuva. Mas nunca se tem somente o que ser quer, assim como nunca se quer somente o que se precisa. O deserto parecia diminuir sua opressão, mas eu me enganava, na verdade era eu que crescia…crescia…crescia até que avistei as luzes da cidade e seus barulhos. Pensei em retornar, olhei para trás e todos, com olhos de feras enraivecidas, me chamavam. Apontavam para uma montanha onde estava escrito em mandarim o tamanho de minha dívida. Que um dia seria cobrada. Acelerei o passo e entrei na cidade, não me sentia só, olhei minha mão direita que ostentava um anel que eu não sabia, mas podia ver meu rosto refletido em sua pedra âmbar. Ao dobrar a primeira esquina, o vulto, aquele vulto, colocou sua mão direita em meu ombro direito e pela primeira vez escutei alguém falar diretamente para mim: “Chegou a hora de parar. Parar e recomeçar. Você está ficando mais novo, deve tomar cuidado, pois ao dobrar a próxima esquina se defrontará com um mundo também novo e ele não perdoará o desperdício. Você precisa aprender a amar e trate de aprender logo ou então não o aconselharia a dobrar qualquer esquina”.
Ali estava eu diante de uma equação cuja fórmula de resolução não conhecia. Como aprender a amar em tão pouco tempo? Mesmo que ninguém houvesse estipulado tempo. A noite estava no meio da sua jornada, o céu carregado de chuva permitia apenas um pedacinho de lua. E ela falou: “Se você me olhar com vontade de ser feliz, estará me emprestando seus olhos e te confiarei meus perfumes, se acreditar em mim, você estará permitindo a realização dos seus sonhos”. Embora eu não soubesse o que era sonhar, resolvi acreditar. Foi nesse instante que a lua desceu do céu com elegância de bailarina e apertando minhas mãos e olhar de amanhecer me deu a chave da felicidade: “Aqui estou, saiba me merecer, sou vento, mar, lua, me ame, seja autêntico e não se arrependa, sou sua mas não deixarei de lançar minha luz às ruas”.
Agora estou aqui debruçado em minha janela, lá no céu uma luz, pode ser Deus. Uma brisa de jasmim vem não sei de onde. O mar, a praia de Copacabana à minha esquerda e o Redentor no outro lado. Na cama, minha amada dorme, pode ser lua.
Uma palavra vinda não sei de onde bateu na minha porta: “Deserto”. Não deixei entrar.