Humana decadência (primeira parte)

A surpresa de revirar velhos livros e encontrar inquietações permanentes
01/08/2003

Problema de falta de espaço, sempre, essa é a base da vida em apartamento. Mexendo nos livros das estantes, decidindo o que ficava e o que ia para o lixo — não exatamente para o lixo, claro, mas para bem longe da minha vista, do olfato e do tato, na certa para o sebo mais próximo — encontrei ontem à tarde, empilhados todos juntos, a dúzia e meia de livros que fizeram minha cabeça no tempo da faculdade. Livros que, não me perguntem por quê, depois de terem significado para mim tudo o que de fundamental podia existir na literatura, havia tempos não me diziam quase nada. Por isso foram deixados assim, às traças, pegando pó. Mas seu real significado, sua verdade mais íntima, aos poucos também foi voltando logo que os reencontrei. Sorte minha. Folheando depois de quase duas décadas essas encadernações malcheirosas, sua essência devagar desabrochou, como costuma acontecer com os objetos e as fotos velhas amontoados dentro de caixas, no fundo do armário. No alto da pilha estavam as Histórias extraordinárias, do Poe. Surpresa e calafrio — provocados não pela trama dos contos, da qual quase nem me lembrava mais, mas pelo encontro inesperado. Depois vieram a Aurélia, de Nerval, A eva futura, de L’Isle-Adam, As flores do mal e os Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire, Às avessas, de Huysmans, A educacão sentimental e Salambô, de Flaubert, Os amores amarelos, de Corbière, O castelo de Axel, de Edmund Wilson, Sobre o céu e o inferno, de Swedenborg, Um lance de Dados & outros poemas, de Mallarmé, Uma temporada no inferno e as Iluminacões, de Rimbaud, O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, os Poemas selecionados, de Verlaine, Salomé e O retrato de Dorian Gray, de Wilde, O teatro e seu duplo, de Artaud, as Litanias da lua e as Moralidades lendárias, de Laforgue.

O curioso é que, mesmo perdidos no tempo, os livros que marcaram meu passado insistem em fazer prevalecer certa hierarquia toda particular. Essa hierarquia, organizada somente pelo meu próprio sistema emocional, dá de ombros ao cânone determinado pelos críticos de hoje e de ontem. Por exemplo, a crítica especializada e o bom senso — contra os quais nem sempre é saudável ir — decidiram que, dos romances de Flaubert, Madame Bovary é o mais importante. Porém, sempre que penso nesse prosador minucioso e perfeccionista, o Sena e as construções mais emblemáticas de Paris ou os vilarejos do interior da França nem me passam pelos olhos, é da paisagem árida e exótica do norte da África que primeiramente me lembro. Paisagem de sonho, de fantasia futurista, feita de batalhas ancestrais. É por isso que tenho Salambô na mais alta conta. O mesmo acontece com os livros de Oscar Wilde. Gosto muito mais de sua Salomé do que d’O retrato de Dorian Gray, apesar de saber — sim, eu sei, meus senhores! — ser este seu trabalho mais cultuado. De Edgar Allan Poe? Já li ensaios e mais ensaios dissecando A queda da casa de Usher, O escaravelho de ouro, Berenice e A carta roubada, mas de todos os seus contos o que carrego para cima e para baixo, no coração, é Ligéia.

Contra a razão, a intuição
De qualquer maneira, preferir este e não aquele livro, este e não aquele autor, não quer dizer quase nada, no caso dos livros e autores recém-reencontrados durante a faxina nas minhas estantes. Porque todos eles respiram o mesmo ar viciado, ocultam-se sob a mesma sombra finessecular, buscam o mesmo êxtase erótico e o mesmo vislumbre místico. E ao folhear novamente esses verdadeiros manuais esotéricos — os primeiros que manuseei na vida — ouvi seu encantamento sobrenatural sendo sussurrado outra vez e com a mesma intensidade de antes. Logo decidi que esses livros, apesar do amarelado e do cheiro de mofo, não desapareceriam da minha vista, nem do olfato e do tato. Muitos desses autores fizeram parte da escola simbolista, outros foram apenas contemporâneos dela. Com eles aprendi o valor dos símbolos, das sinestesias, das correspondências (a estreita relação entre tudo o que há no plano material e tudo o que há no plano espiritual, conforme escreveu Swedenborg), da intuição e do desregramento de todos os sentidos. As vanguardas do século 20 devem tudo aos decadentistas do século 19, devem a eles principalmente o amor ao hermetismo e o horror à industrialização, à massificação, à pasteurização da arte para que pudesse ser bem aceita pelo paladar burguês. Artaud certa vez escreveu: “Por mais que exijamos a magia, no fundo temos pavor de uma vida que viesse a se desenvolver plenamente sob o signo da verdadeira magia”. Apesar do pavor, gente como Poe, Flaubert e Wilde não deixaram de mergulhar, mesmo que momentaneamente, na verdadeira magia.

Além de Swedenborg, nos bastidores da prosa e da poesia desses decadentistas está o bom e velho Schopenhauer, também meu pensador de cabeceira por mais de uma década. Apesar do intervalo de quase duzentos anos que separava o seu mundo do meu, o desprezo pela doutrina positivista, pelo conhecimento científico e pelo progresso industrial, manifestado n’O mundo como vontade e representação, foi também o meu desprezo pela nossa sociedade de consumo, pautada pela economia de mercado e pelo capitalismo liberal. Schopenhauer é o filósofo do pessimismo, da sucessão infinita de prazer e angústia, da realidade objetivamente inconsistente, do desejo como motor da vida e multiplicador do sofrimento. Segundo seu modo de conceber a realidade — modo tocado pela sabedoria dos místicos do Oriente —, a máquina do mundo funciona da seguinte forma: “Todo querer origina-se da necessidade, portanto da carência, do sofrimento. A satisfação põe-lhe termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Além disso, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito; já a satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo, satisfeito, imediatamente dá lugar a outro; aquele já é mera ilusão conhecida, este ainda não. Satisfação duradoura e permanente, objeto algum do desejo pode fornecer; toda satisfação é como a caridade oferecida a um mendigo, a lhe garantir a vida hoje e prolongar as misérias de amanhã. Por isso, enquanto nossa consciência for preenchida pela nossa vontade, enquanto estivermos submetidos à pressão dos desejos, com sua esperança e temores, enquanto formos sujeitos do querer, não possuiremos bem-estar nem repouso permanente”.

Somos todos românticos, somos todos simbolistas
Graças aos livros relacionados há pouco, o fin de siècle dos decadentistas foi também o meu fim de século. A sensação que tive, depois de ler pela primeira vez Poe, Flaubert e Huysmans, Baudelaire, Rimbaud e os textos sobre os simbolistas, foi de que, apesar de todos os movimentos estéticos que pulularam no século passado, apesar de Proust, Kafka e Joyce, para ficarmos só nestes três prosadores, continuamos irremediavelmente metidos dentro do mais puro simbolismo. Talvez eu tenha sido contaminado pelo vírus do decadentismo oitocentista, talvez não, porém o fato é que ainda hoje fica muito difícil, depois de passar os olhos pelas palavras de Mallarmé sobre música, não ver em Stravinsky ou em Stockhausen, ou em qualquer outro artista posterior a estes, a mesma valorização de tudo o que nega a vivência lógico-cartesiana, o mesmo mergulho no insondável que tanto obcecava os simbolistas. O mundo moderno é, sempre foi, simbolista.

É também, e sempre foi, romântico. Afinal, o que se vê na maior parte da produção artística das últimas décadas — inclusive na mais comercial das artes, o cinema, que a cada ano emplaca estrondosos sucessos como Titanic, Shakespeare in love e Moulin Rouge — é o uso e o abuso, às vezes criativo às vezes não, mas freqüentemente ilimitado, dos clichês destas duas correntes do século retrasado. Uso e abuso polarizado, à maneira dos xamãs siberianos que em transe ora sonham em guindar-se aos céus, ora em trazer os céus para a terra. Aí a distinção entre românticos e simbolistas: enquanto o romântico sonhava em ascender ao paraíso, o simbolista, embora também espiritualista, via de regra fazia do mundo físico sua única morada. Mais tarde, seguindo e ampliando essa mesma trilha, os surrealistas farão da justaposição das duas realidades, a exterior e a interior, seu único ritual de sobrevivência no mundo civilizado.

O que os simbolistas tentaram realizar, e de fato realizaram, a partir das pistas deixadas por Poe e pelos pré-Rafaelitas, foi fazer com que a literatura não só não se transformasse em simples mercadoria, como ainda tocasse o indizível, sua correspondente metafísica. O curandeiro que, no fundo da caverna sagrada, tem o corpo despedaçado e em seguida reconstruído por pequenos demônios saltitantes, a fim de que possa renascer mais forte do que antes, este curandeiro que decide cantar sua viagem transcendental para os jovens neófitos, acompanhado pelo tambor, talvez esteja a tentar, à maneira de Rimbaud e Laforgue, a mesma fusão de diferentes sensações, as chamadas sinestesias, para recuperar a linguagem original — aquela em que a palavra, mais do que simples representação dos objetos, é também um objeto.

Mas se por motivos didáticos tivermos de matar o simbolismo, de afastá-lo de nós, de circunscrevê-lo aos tempos idos, eu elegeria Artaud e os demais surrealistas o último de seus representantes. N’O teatro e seu duplo, o dramaturgo francês — isso na década de 1930 — não se cansa de denunciar o vínculo nefasto que o teatro ocidental mantém com o texto, com a palavra escrita, constatação que o leva a esboçar o Teatro da Crueldade, que infelizmente ficou apenas no esboço, cujo objetivo seria trazer para a frente do palco os elementos realmente importantes da encenação — a iluminação, a cenografia, a sonoplastia — e, com isso, colocar a palavra no seu devido lugar, ou seja, num plano secundário, à maneira do teatro balinês e chinês: “Em todo o caso, e quero dizer isto logo, um teatro que submete ao texto a encenação e a realização, isto é, que submete ao texto tudo o que é especificamente teatral, é um teatro de idiotas, loucos, invertidos, gramáticos, verdureiros, anti-poetas e positivistas, isto é, um teatro de ocidentais”.

Por mais distantes que estejam no tempo, há muita familiaridade entre a tentativa de evitar o emocionalismo fácil, fruto de uma retórica grandiloqüente, que fez com que os simbolistas optassem “pela miniloqüência, pela voz em surdina, utilizando-se de uma subjetividade que recusa a fazer da poesia desaguadouro de sentimentos ou um repositório de dramas pessoais”, como escreveu Álvaro Cardoso Gomes, e a luta contra a flacidez do discurso verborrágico que desconhece seu passado mítico, levada a cabo por Artaud: “A revelação do Teatro do Bali foi fornecer-nos do teatro uma idéia física e não verbal, na qual o teatro está contido nos limites de tudo o que pode acontecer numa cena, independentemente do texto escrito, enquanto o teatro tal como o concebemos no Ocidente está ligado ao texto e por ele limitado. Para nós, no teatro a palavra é tudo e fora dela não há saída; o teatro é um ramo da literatura, uma espécie de variedade sonora da linguagem, e se admitimos uma diferença entre o texto falado em cena e o texto lido pelos olhos, se encerramos o teatro nos limites daquilo que aparece entre as réplicas, não conseguimos separar o teatro da idéia de texto realizado”. E mais adiante: “Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos”.

Ligéia
Poe coloca frente a frente, nesta pequena narrativa, duas figuras femininas de igual intensidade, porém de polaridades opostas: Lady Ligéia e Lady Rowena. A primeira, de certa forma personagem constante em muitos de seus contos, é novamente a reprodução do protótipo feminino tantas vezes louvado pelos decadentistas (haja vista outras figuras femininas do próprio Poe, tais como Morela e a Marquesa Afrodite, por exemplo), ou seja, da mulher deslumbrantemente diabólica — talvez fosse mais sensato dizer, da mulher diabolicamente deslumbrante —, quase divina, dona de insuperável erudição e beleza. Qualidades que, somadas ao pendor pelas artes do sobrenatural, criam um círculo mágico ao redor do narrador, este, por sua vez, uma figura fraca, cujo papel parece ser tão-só, mais do que o de participar ativamente dos acontecimentos, o de sofrer e descrever fatos que estão além de sua compreensão.

Lady Rowena, ao invés, é frágil e insignificante. Talvez por isso mesmo, aos olhos do narrador, não passe de mero objeto de uma transação comercial das mais sórdidas: o casamento por interesse com este mesmo narrador, quando da morte da primeira esposa, Ligéia. Lady Rowena não desperta nenhum interesse nem no nosso protagonista nem no leitor porque trata-se de uma mulher de carne e ossos, tipicamente naturalista. Somente a partir do momento em que é acometida de uma súbita doença — estes males também são artifícios recorrentes em Poe, é por seu intermédio que as personagens tomam contato com o universo místico sempre fechado às pessoas saudáveis — é que Lady Rowena passa a ganhar contornos mais interessantes, mais próximos aos de Ligéia.

Poe é minucioso ao criar alter egos (todas as suas histórias são narradas na primeira pessoa) igualmente minuciosos, neuróticos e paranóicos, obcecados em analisar, medir e pesar os acontecimentos imensuráveis do sobrenatural, fascinados pelos mecanismos que promovem as circunvoluções do pensamento analítico. Mecanismos estes que sempre falham ante o show metafísico promovido por suas irresistíveis Ligéias. Francamente contrário aos parâmetros realistas e cientificistas que grassavam em sua época, Poe articula subjetivamente suas personagens, enredando-as sempre em mórbidas filigranas mentais. Não à toa Oscar Mendes, tradutor deste conto, nos lembra que no livro Edgar Poe par luimême, Jacques Cabau assinala que “o conto de Poe é o contrário do conto de terror clássico. Em lugar de lançar um indivíduo normal num universo inquietante” (feito que Kafka iria empreender quase um século depois) “Poe larga um indivíduo inquietante em um mundo normal. Nada acontece ao herói; ele é que acontece ao mundo. Não é tomado por um horror exterior; não é o medo que dispara a neurose, mas a neurose que suscita o medo. O herói é medusado pela própria visão. Uma vez apanhado nos seus próprios mecanismos de fascinação, é arrastado para a engrenagem da obsessão”.

Salambô
O que mais me impressionou em Salambô (até então, de Flaubert, eu lera apenas Madame Bovary, e não me lembro de ter encontrado neste romance, em particular, a mesma riqueza de detalhes usada na descrição de personagens e lugares que encontrei naquele) foi exatamente a hábil utilização do pormenor, da filigrana, do detalhe. O romance mostra-se, logo nas primeiras páginas, uma tradução fiel das elaboradíssimas tapeçarias orientais, cheias de grandes eventos bélicos caprichosamente miniaturizados. O texto é grandiloqüente, e provavelmente por isso mesmo não agride o gosto burguês, pois ainda não é a “arte pela arte” dos simbolistas. Mas há nele muitos dos elementos defendidos por Baudelaire e Rimbaud: o culto do mistério, povoado de divindades, e a busca da Beleza pura, transcendental.

Parafraseando Proust, eu diria que, com Salambô, fica provado que somente os românticos sabiam escrever obras clássicas, porque as liam tal como haviam sido escritas, romanticamente (leiam Arnold Hauser: “Toda a exuberância, anarquia e violência da arte moderna, seu lirismo balbuciante, seu exibicionismo irrestrito e profuso, derivam do romantismo. A paixão intelectual, o fervor da razão e a produtividade artística do racionalismo foram tão completamente esquecidos que apenas somos capazes de entender a própria arte clássica como expressão do sentimento romântico. ‘Somente os românticos sabem ler as obras clássicas, porque as lêem tal como foram escritas, romanticamente’, afirmava Marcel Proust”). Diferentemente de Poe, Flaubert não faz o leitor mergulhar na ebulição mental de personagens cujos cinco sentidos estão sempre à flor da pele. Porém nem por isso deixa de oferecer, graças a um agudo senso de observação, imagens tão voluptuosas e exóticas quanto as do mestre norte-americano. Salambô é obra originada da conhecida exaltação cultivada pelos filhos do romantismo. Difícil acreditar que este romance histórico seja tão-só uma reconstrução ficcional, que a Cartago da narrativa não esteja ainda hoje ereta, no mesmo local onde atualmente encontramos apenas suas ruínas — as mesmas ruínas que inspiraram Flaubert a compor a narrativa em 1862.

Salambô é Salomé, que é, por sua vez, Ligéia e todas as demais protagonistas que, mantendo-se sempre em contato ora com o mundo sobrenatrual ora com os poderes instintivos, tempestuosos, guardados dentro de si mesmas, arrastam e aniquilam os homens que se deixam seduzir por elas, muitas vezes terminando por também se autodestruir. O amor irrefreável é a engrenagem mais importante de toda a máquina literária, a peça que move o conflito. Todavia, cuidado: comparar tal paixão avassaladora a um mecanismo de relógio, por exemplo, é pura falácia, visto que nem Flaubert nem Poe, dois autores anti-tecnicistas, jamais o encararam de maneira tão fisiológica. A paixão de Matô por Salambô em momento algum é dissecada, explicada. Ela simplesmente acontece, súbita, irracional, enlouquecedora — em uma só palavra: romântica. A obra é tecnicamente impecável, porém tal rigor não está a favor de nenhum racionalismo, cuja hegemonia, segundo Hauser, estava chegando ao fim: “O racionalismo, que acusava um avanço constante desde a Renascença, que o Iluminismo colocara numa posição de importância dominante em todo o mundo civilizado, sofreu o mais doloroso revés de sua história”.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho