Puro-sangue

um conto de Rubens Amador
01/08/2003

O azul e o vermelho são agora cerração.
Duas palavras inúteis.
O espelho que miro é uma coisa cinzenta.
No jardim eu aspiro, amigos,
uma lúgubre rosa na escuridão.
Agora só perduram contornos amarelos.
E só consigo ver para ver pesadelos.

(Do poema O cego, de Jorge Luis Borges)

Vejo que teu guarda-roupas resistiu às traças e ao mofo.

Estás muito elegante nesses óculos escuros, nesse conjunto bem cortado de tweed. Essas meias escocesas ressaltam teus mocassins. Com essa bengala, então, estás um genuíno lorde! É incrível ver-te assim, barbeado e bem disposto, depois de tudo o que te aconteceu.

Esmagas o calçamento com o garbo de um puro-sangue. Passas devagar, porém altivo e desafiador, como se avançasses, entre lacaios, à imponência de teu vistoso frigorífico, à vastidão de tuas fazendas verdejantes, à imensidão de teus campos semeados, à exuberância de tuas manadas de raça.

Posso compreender tua postura inatingível: depois que perdeste tudo, e o negror encobriu para sempre teus olhos alemães, só o que te restou foi o orgulho. O que não suspeitas, enquanto inundas com tua colônia o ar úmido desse outono, é que hoje sou capaz de devassar como nunca teus pensamentos.

Ao menos nesta manhã, tenho certo que não entrevês, no torvelinho de tua mente, a miragem de teu império perdido. Tampouco feres de morte teu algoz, o tal inglês que jogou a pá de cal sobre teus negócios. Não, hoje não remóis nada disso. Estavas mesmo por merecer alguma satisfação. Sei bem o que tens passado desde que a marreta com que aniquilavas teus rebanhos voltou-se contra tua cabeça.

Depois que o bretão quebrou aquele contrato bilionário, varaste a madrugada debruçado em balancetes. Não adiantou, porém, entupires o cinzeiro nem te encharcares com uísque. Nos primeiros raios de sol, tiveste de encarar o fato de que o patrimônio erguido por teus ancestrais se esfumaçara em tuas mãos trêmulas. Em uma semana só, as rugas rasgaram tua face de general, a neve prateou teus cabelos, o rosto de tua esposa tornou-se ossudo, rancoroso. Sem crer no que ocorria, teus filhos se viram obrigados a mendigar o primeiro emprego de suas vidas de conforto.

O baque foi tão grande, que nos preocupamos. Te enclausuraste por tanto tempo em teu palacete, que pensamos que só sairias de lá para o cemitério. Ficaste bem uns dois anos encerrado, tendo por companhia somente tua mulher, os troféus de teu cavalo campeão, teu busto em mármore carrara, tua mobília de jacarandá, teu cocker spaniel aninhado em tuas botas de pelica. Hás de ter auscultado, então, o ruído perturbador do silêncio, no farfalhar das cortinas nas tardes modorrentas ou nos ecos longínquos dos convivas que freqüentavam teus saraus.

Durante teu retiro, os salões Belle Epóque do Clube Comercial foram privados de teus dotes de pé-de-valsa, de tua eloqüência de tribuno, de teu charme de galã hollywoodiano. Mas, pelo que sei, ainda se lembram de ti. Invocam-te nas dependências do clube, nos leilões de reprodutores, nas reuniões do Rotary Club. Não escapas do falatório nem mesmo na agitação dos Grandes Prêmios do Hipódromo, onde te gabavas de teus binóculos orientais, agora inúteis.

Pasmado, contudo, percebo que tua ausência é sentida com júbilo por teus antigos amigos. É o que ouço nas rodinhas no Café. Com ciúmes de teu esplendor, apenas toleravam tua presença. Entre eles, hoje, a menção de teu nome provoca gargalhadas e mais gargalhadas nas noites de gala, em meio à fumaça dos charutos. Mas também se riem de ti na claridade das manhãs.

Diante disso tudo, talvez tenha sido uma bênção que a centelha de teus olhos se tenha extinguido naquele fim de tarde. Justamente quando abandonavas teu retiro, voltando a circular pela cidade, o chafariz e as árvores da praça turvaram-se estranhos em tuas retinas. Os cavalos de metal executaram um sinistro bailado diante de ti, seguidos pelos marrons dos troncos e pelos róseas das copas. Te horrorizaste com aquele espetáculo no crepúsculo, sobretudo quando o chão rompeu-se num precipício. Atônito, procuraste amparo no primeiro banco que ainda pudeste ver. E ali ficaste, à espera que teus familiares saíssem à tua procura.

Quando penso que as trevas foram uma bênção para ti, não o faço por crueldade. Faço-o, porque foste poupado de assistir ao escárnio com tua decadência. E, depois, porque não reconhecerias nem o condado em que reinaste. Ocupado em salvar teu patrimônio, estou certo de que não percebesses a transformação econômica por que passa a cidade. Eu próprio tornei-me obtuso para o curso dos fatos. Por isso, aliás, estou aqui, vagabundeando na porta do Café.

A maioria dos prédios neoclássicos está em pé. Mas eles não abrigam mais as repartições, as confeitarias, as tabacarias do teu tempo. Ostentam agora modernas agências bancárias, magazines e shoppings, centros de cultura. Dos estabelecimentos tradicionais, restou o Café, onde vinhas te gabar de tuas conquistas e jogar gamão sobre as mesinhas de mármore. De todo modo estranharias os novos freqüentadores da Casa, os filhos de teus ex-empregados.

Alguns deles são agora prósperos comerciantes de produtos e serviços. Esses moços e moças não cogitam tua história ou teu pomposo sobrenome, nem o glamour de tua época. Depois de um século, o dinheiro está mudando de mãos nessa capitania que parecia acorrentada, por grilhões, ao passado. Eu mesmo não tenho afiado minhas tesouras. Por isso, até outro dia, vinha pensando em converter minha alfaiataria num armarinho. Mas nem nisso agora eu penso mais.

Ao contrário dos ricaços, lamentei tua desgraça. Nunca mais apareceste para que eu tirasse tuas medidas. Quando o médico desenganou tuas retinas, então, perdi as esperanças. Contudo, tantas vezes pegamos o telefone para falar contigo nos últimos meses, tanto ligaste para nós, que estranhei que nunca me dessem recado. Como o valor da fatura vinha crescendo, pedi conta detalhada à companhia telefônica. Instalei escuta. E aqui estou, meu ex-cliente.

Neste instante em que passas por mim, sei no que te adensas. Supões que estou em viagem pela capital, que só retorno amanhã trazendo tecidos de uma feira de negócios. Te alimentas com os lençóis da minha cama, nos fundos da alfaiataria. Sonhas com as palavras de consolo de minha mulher. Por isso, daqui por diante, estarei no encalço dos estalidos da ponteira de tua bengala por esta viela sufocante.

O caso entre vocês deve ter começado há cinco anos, durante o único sarau para o qual nos convidaste. Bem que reparei quando a muquirana se demorou no lavabo. Mas aqueles noturnos de piano foram tão edificantes, que minimizei o sumiço dela. Na volta para casa, fiz foi louvar-te por nos franqueares teus salões, por nos introduzires no círculo dos magnatas.

Nessa história toda, custou-me foi admitir o que ouvi do gravador. Duvidei que ela tenha sofrido como sofreu, sobretudo quando o chão escarpou-se sob teus cromos germânicos, e que a paixão a torne incapaz de se assombrar com tuas pupilas de granito enquanto chafurdam, no cio, como animais.

Logo ela, que tirei da vila, a quem dei um teto digno!

Quando lembro dos ternos que fiz com capricho para ti…

No início, tive dificuldades com teus ombros nórdicos. Mas logo acertei a mão. Demonstravas-te então satisfeito enquanto eu te vestia os paletós e os envergavas com precisão. Ríamos, eu e minha mulher, com tuas reverências às minhas “mãos de ouro”. Eu ainda passava escovinha sobre teu conjunto, para espanar o pó de giz.

Mas hoje minhas mãos de ouro têm outros planos para ti.

Por isso, te aconselho: refresca bem teus pulmões com a umidade desse outono gotejante. Com teus ouvidos apurados, grava o alarido do realejo daquele velho que não é mais deste tempo. Absorve o aroma das hortênsias e o balé de folhas secas que o vento traz ao encontro de teu rosto largo. Tateia com saudade o corrimão de minha escada, em respeito à minha mulher, que te amou mais do que a mim, a despeito de tua desgraça ou, talvez, por causa dela. Enquanto não chegas ao último degrau, recobra, uma vez mais, a reminiscência de teus castelos campestres, de tuas plantações perdidas no horizonte, dos fulgurantes tempos de prosperidade do teu agora abandonado frigorífico.

Pois uma coisa te prometo, seu gigolô de vacas!: …

Quando firmares os pés no topo da escada que leva ao meu estabelecimento e à minha casa desonrada, estarás na ante-sala do inferno. Quando estiveres despido do Olho de Perdiz, que risquei para ti, acariciando a adúltera sobre meu leito cortês de alfaiate, provarei a ti do que são capazes minhas mãos hábeis de ouro.

Uma bala te varará a testa como bênção. Outras sufocarão os gritos da vadia que devolverei ao esgoto. Depois, acompanharei a poça de puro-sangue escorrendo pelos degraus à calçada, aos paralelepípedos e ao bueiro. Quando os policiais chegarem, verão três corpos. Dois como vieram ao mundo, outro como o mundo espera que esteja. E entenderão tudo.

Rubens Amador

É jornalista e escritor.

Rascunho