Filhação

Um menino endiabrado em busca da gentinha desocupada
01/09/2003

O que não dá jeito de enfiar no miolo mole desse povinho bem naiscido e mal vivido é que há os que vêm do vazio. Eu, por um exemplo, me considero filho ilegítimo de mim mesmo, não desse hominho de caneta e computador que me fiz virar depois de tantas andanças por dúvidas e dilúvios, mas daquele que ficou enterrado na sombra dos casarões de madeira, hoje destruídos, como o Hotel do Manelão, com seu sem fim de quartos em que se praticava a arte do range cama, tudo agora fazendo parte dos perdidos endereços da cidade incerta que alguns, justamente os menos fortes, arrastam pelo caminho cheio de buracos de suas marchas amargas.

Sou naiscido do menino em estado de orfandade, do infante órfão e arfante, que teve morrido o pai e que se fez na desproteção, arranjando seus moldes entre os que a vida despejava na rua dos homens inúteis.

Herdeiro tenho sido principalmente de um bando de loucos mansos, que estacionavam na porta da cerealista do padrasto, pedindo um trago de pinga, um prato de comida, um serviço temporário, uns palmos de prosa. Ficavam rodiando por ali, sem do que se sustentar e pra que viver, perturbando o mundo útil do padrasto, que mesmo assim dava atenção a essa gentinha que não deixa rastro.

Isso descobri, louco não deixa rastro. No pátio de terra da cerealista, varrido por vassouras que fazíamos nos dias de chuva, quando outro serviço não havia, neste pátio, os loucos ficavam desfazendo horas e não deixavam marca de seus pés descalços ou de suas botinas de elástico. Por que só os pés dos saqueiros, dos sitiantes e das empregadinhas afundavam o chão? Era com certeza coisa do diacho, pensei, e fiz um rápido sinal da cruz, desatei uma avemariacheiadegraça em voz baixa e fiquei respeitando aqueles homens e suas fomes.

Chegava sempre no horário do almoço, quando eu levava o de comer ao padrasto, num caldeirão enrolado em pano branco, a colher presa na tampa, o feijão por baixo e o arroz por cima com a mistura (ovo, batatinha, tomate, frango) meio afundada. O padrasto ordenava comida pro Mário, que tinha dessas doenças de tremeção, de onde vinha seu amedrontoso apelido. Tremendão. Numa lata de marmelada, guardada na pia, junto com uma colher de cabo torto, reservadas pros mendigos, a mãe punha de um tudo e eu corria com a lata para a cerealista e ficava vendo Tremendão tentando acertar a boca, aquela tremedeira toda, comendo até não deixar nada, depois ia a uma torneira num canto do pátio, lavava lata e colher e me devolvia sem arriscar palavra, só balançando a pesada cabeça. Ficava mais um pouco e logo descia pro centro, ninguém sabia onde morava, e não dava para seguir as invisíveis pegadas.

Também fazia escala ali, com seu carrinho de mão, o Bernardo do Cachimbo, sempre fumando, embora fumasse o vazio, o oco do cachimbo, pois fumo nunca havia e ele repetindo insistentes histórias, das quantas vezes fazendeiros afortunados quiseram comprar aquele cachimbo que não carecia de fumo e que por isso tinha tanta valia. Conhecem a fazenda do Vasco? Me dava a fazenda e mais dois pés de jabuticaba carregados, mas desse companheiro não me desfaço, ganhei de meu avô que ganhou do Imperador que trouxe das Orópias num barco a vapor. Ia logo embora, empurrando sua carriola, sempre vazia. O que tanto transportava ele?, perguntei ao padrasto, que respondeu, enquanto arrastava um saco, Ele apenas finge trabalho.

Morava em frente da cerealista um nosso cliente fixo, Francisco Navarro Moreno, ex-caminhoneiro, ex-desbravador, ex-lenhador, que não vendia nem comprava, passando o dia na conversa e no verso, atrapalhando o movimento, brigando com os clientes, gritando nomes feios, tendo sempre razão. Respeitado, adquiriu parentesco com o padrasto, que só o chamava de Compadre Futrica, depois do batismo de um de seus vários filhos. Sempre ia nascendo mais um, enquanto a velha fosse agüentando… Por uma de suas filhas, de nome e olhar Esmeralda, me apaixonei puramente, ela quase de minha idade, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, fugiu com um peão e começou a dar tanta cria que logo tinha mais idade do que sua mãe. Quando, anos depois, Compadre Futrica morreu, pobrinho de dar dó, o padrasto deu sua melhor camisa para que fosse enterrado com alguma dignidade.

Estes vagabundos me apartaram daquele mundo operário, então dava pra viver sem a tormenta do trabalho? Depois, quando fui crescendo, sempre procurei esta gentinha desocupada, os do vício do jogo, da pescaria e da prosa, e ouvia do padrasto a lamúria murmurada, Esse menino anda é endiabrado.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho