Sobrevôo pelos anos 90

Ensaios discutem um pouco da literatura produzida na última década
Marcella Lopes Guimarães, organizadora de “Literatura dos anos 90”
01/09/2003

Tarefa difícil esta de refletir sobre textos que desafiam pela proximidade com que encaram o crítico, anulando a aparente tranqüilidade de se poder olhá-los à distância, quando já lançaram definitivamente suas raízes sobre o que chamamos cânone literário.

Tanto mais importante e necessária se faz, portanto, a tarefa de tentar compreender esta escrita vibrante de contemporaneidade, de auscultar a língua e colher o mel das palavras que insistem em buscar novos canais expressivos, através da voz das novas gerações, como Carmem Lucia Ribeiro Secco nos parece querer dizer, logo de cara, no primeiro ensaio do livro, ao tentar penetrar o sentimento que anima grande parte da atual poesia angolana e moçambicana. Entre a tradição e a vanguarda, esta poesia se precipita nas ondas crepusculares do tempo, acalentando em versos um grito outonal, o grito rouco de quem nasceu asfixiado pelos véus da vasta miséria que cobre grande parte do território africano. Grito que olha em direção ao horizonte e projeta no escuro o anseio de liberdade que quase sempre ressoa órfão. Canto que sangra de raiva e desencanto, mas que também é dócil e terno, como o sentimento de saudade de tudo o que foi precocemente amputado. Como continuar a entoar a lira e resistir a tanto desencanto? Dobrando-se sobre si mesmo. Esse foi o caminho escolhido (talvez o único possível) pela atual poesia angolana e moçambicana, desvelando-se, como nos mostra Carmem Lucia, em exercício metapoético.

Cruzamos outra vez o mar, levados agora por Marcella Lopes Guimarães a terras portuguesas, seguindo seus novos roteiros para juventude transviada, na sua tentativa de trazer à tona os conflitos juvenis encenados sobretudo nas narrativas de Inês Pedrosa. Se a arte imita a vida, ou a vida imita a arte, difícil responder. Mais fácil é constatar que o tema em questão, para além das páginas literárias, vem freqüentando, mais assiduamente do que se gostaria, as páginas jornalísticas, onde por razões aparentemente banais jovens matam pais, avós, amigos, professores… Que respostas possíveis a ficção pode dar para esse conflito que se revela numa espécie de crueldade precoce, colhendo o futuro ainda no berço? Em outra direção, como sobreviver intacto ao aprendizado de crescer, de experimentar o amor, fazer escolhas (morais ou sexuais), encontrar um caminho seguro, uma identidade, ser, afinal, aceito? Com quem se identificar, se todos os heróis morreram de overdose, como cantava Cazuza, símbolo da juventude dos anos 80? Como vencer a solidão que acompanha o adeus à infância, nesse intervalo que se impõe e se agita na distância do mundo adulto? Que importância assumem sentimentos como os de amizade e cumplicidade, neste conturbado reino dos afetos juvenis? Como lidar com o sentimento de revolta, muda ou manifesta, contra tudo e contra todos, contra Deus e o mundo e a família? É sobre este universo de conflitos, face à pressão dos tempos, que pertinentemente Marcella Guimarães nos obriga a pensar, através da leitura dos textos de Inês Pedrosa.

Já em solo brasileiro, somos convidados a repensar o universo histórico-poético por onde circulou o poeta Gregório de Matos, através da leitura do espaço sócio-geográfico proposta por Clarice Alves Martins a propósito da obra Boca do inferno, de Ana Miranda. Aqui o objetivo é vasculhar alguns fatos da História do Brasil, revividos, no romance, por personagens reais e históricas que aparecem ao lado de personagens ficcionais. O cenário não podia deixar de ser a Bahia do Brasil-Colônia e as imagens sugeridas naturalmente passam longe daquelas antevistas nas sagradas escrituras da História oficial, criando assim um sistema significativo que possibilita várias leituras, onde o espaço do romance se abre e diversifica. Do questionamento que se elabora entre modos diversos de ver o Brasil, impõe-se a questão que norteia as páginas finais do texto de Clarice Martins: a partir de quando o paraíso se transformou em inferno? O que, por sua vez, lança dúvidas quanto ao significado do título do livro de Ana Miranda, especialmente se nele julga-se encontrar, à primeira vista, tão somente uma referência a Gregório de Matos.

Nova proposta de releitura da História do Brasil nos é apresentada por Nilma de Almeida Pinto, em sua perspicaz análise dos lastros intertextuais presentes em Terra Papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. A julgar pelo título do ensaio de Nilma Pinto —De como Cosme Fernandes, dito bacharel, sofre, chora, reina e goza na Terra dos Papagaios, mais tarde chamada Terra Brasilis —, carregado de ironia e humor (características, aliás, significativas no livro de Torero e Pimenta), já se pode antever o que vem pela frente. É pela ótica do dito bacharel, Cosme Fernandes, um degredado, que a História é vista, revista e completada. Centrada nos primeiros trinta anos, após o descobrimento da Terra Brasilis, digo, Terra Papagalli, a narrativa é intensamente paródica, abrindo espaço para o conflito entre vozes contrárias, como é natural neste tipo de texto. Assim, ao dialogar principalmente com textos informativos, Terra Papagalli abusa do humor, da sátira e da ironia, sugerindo antes o questionamento, a revisão e sobretudo a atualização do passado, do que necessariamente a sua destruição, como observa Nilma Pinto.

Na sequência, é Juarez Poletto quem se aventura na análise de Quase memória: quase romance, de Carlos Heitor Cony. Como o próprio título indica, parece que estamos diante do que Poletto classificou de gênero de fronteira, visto que se trata de um romance que parece bagunçar os limites entre o verdadeiro e o fictício (como, aliás, já o fizeram Torero e Pimenta e Ana Miranda, nas obras anteriormente analisadas). Mas afinal que importância têm esses limites ou deslimites para a literatura? Nenhuma. Mas quando o autor, que é uma entidade distinta do narrador, todos o sabemos, pode ser identificado com este que nos narra a história? E se esta história é quase memória: quase romance? As coisas parecem se complicar. Mas Poletto não se intimida e prossegue disposto a nos fazer entender os limites, se é que eles existem, entre memória, ficção e história.

Dirigindo, como sempre, um olhar penetrante sobre os textos de Valêncio Xavier, Meu 7º dia, e de Antônio Giron, Ensaio de ponto, Marta Morais da Costa procura, a princípio, pensar sobre algumas questões de ordem teórica em relação a produções literárias, onde são inegáveis os rastros multidiscursivos, polifônicos e de interação com outras linguagens verbais e visuais. Exemplos desse processo que une diferentes linguagens, ocorrência marcante nas narrativas do final do século 20, os livros referidos desafiam o leitor, do qual parecem exigir uma certa competência leitora, que pressupõe um certo aparato cultural. Mas não é apenas o jogo entre linguagens verbais e visuais que algumas vezes paralisa os menos avisados. Também a temática tende a assumir diferentes configurações, solicitando a participação do leitor no ato de estabelecer os sentidos que a escrita sugere, o que certamente vem a anular a distância entre sujeito e texto, ao mesmo tempo em que põe a baixo noções estéticas tradicionais, lançando novos paradigmas de leitura, que, por vezes, remetem o leitor à sua própria perplexidade. É, também, por esse terreno recepcional que a abordagem de Marta Morais da Costa nos convida a deslizar, de encontro a obras tão questionadoras e desafiadoras quanto Meu 7º dia e Ensaio de ponto, que souberam, como poucas, aproveitar a história, o momento artístico, as indagações do homem a respeito de sua natureza e de seu tempo de vida, para criar o inquestionável e luminoso mundo ficcional a que chamamos literatura.

Cátia Toledo Mendonça, por sua vez, procura penetrar o universo estético da literatura juvenil, e o faz com justeza, ao lançar esclarecedoras luzes sobre uma questão que vem, nos últimos anos, acirrando o debate em torno das produções literárias destinadas ao público juvenil. Mais preocupados com a moral de historinhas belamente ilustradas e encadernadas, atrativas a olhos afoitos, senão acostumados, às sedutoras imagens televisivas, a maioria dos autores acaba por se descuidar da qualidade estética do texto, quando não a deixam completamente de lado. Mas como nem tudo está perdido, ainda que em número menor, diga-se, significativamente menor, surgiram, por outro lado, como percebe Cátia Mendonça, alguns nomes de bons escritores que, contrariando a tendência comercial das artes, dedicaram-se a uma literatura essencialmente estética. É entre estes últimos que se situa a premiada obra de Stella Mariz Rezende, esta ilustre e quase desconhecida mineira. É sobre esta autora que Cátia Mendonça focaliza a sua análise, sem antes deixar de sugerir o motivo pelo qual Stella Mariz Rezende ainda não tenha conquistado o espaço que lhe é merecido junto ao público em geral: sua literatura se recusa ao apelo do mercado. Ao que Cátia Mendonça, num longo suspiro, que se vislumbra no final de seu ensaio, parece dizer — “Graças a Deus!”.

De volta a terras portugueses, Marcelo Franz procura perscrutar em Cartas a Sandra, de Vergílio Ferreira, o que nelas é memória, transcendência e textualidade. Perscruta, pois filiado à tradição do romance de investigação filosófica, esta obra não se furta à problemática existencial marcante em boa parcela da literatura do século 20. Perquirir sem receio o sem sentido do mundo, dos problemas que afligem o homem moderno, sem a preocupação de encontrar um resposta definitiva, este parece ser o bilhete de entrada à narrativa de Vergílio Ferreira. Mas o que Marcelo Franz felizmente também não nos deixa esquecer, é que nossa leitura indiscreta das Cartas a Sandra deve considerar o que é bastante caro a seu autor: o processo pelo qual se efetiva o conhecimento humano. O que se revela em sua obra numa grande interrogação sobre os poderes, limites e dilemas da linguagem como fator de humanização e construção individual.

Deslocando o foco para a literatura norte-americana, ou antes para a literatura hispano-americana produzida nos Estados Unidos, em língua inglesa, Janice Cristine Thiél, atenta às questões relativas à construção da identidade e da alteridade em um mundo caracterizado pela diáspora (questões, aliás, que vêm recebendo significativa atenção da crítica dita pós-moderna), Janice mergulha em How the García girls lost their accents, de Julia Alvarez, a fim de analisar o tema do outro na literatura das margens. Tema mais do que atual, em tempos pós-modernos, onde tudo se mostra móvel e múltiplo, a tentativa de estabelecer uma identidade fixa não faz mais do que expor seu aspecto relativo e fragmentário. O eu, na verdade, desdobra-se em outros, o que por sua vez revela não uma, mas diversas e ao mesmo tempo contraditórias identidades. Inevitável lembrar aqui, como efetivamente o fez Janice Thiél, na epígrafe de seu texto, um certo poeta português que, a seu modo, fez com que todos nos reconhecêssemos um pouco pessoanos, irmãos de Yolanda, protagonista da obra de Julia Alvarez, na busca de uma explicação para o que somos, para o lugar que ocupamos e para o que, enfim, buscamos.

Fechando este recorte panorâmico acerca de algumas obras expressivas da literatura dos anos 90, Nilton Cezar Tridapalli traz-nos outra vez de volta a solo brasileiro para falar d’As coisas, de Arnaldo Antunes. Ou será melhor dizer das coisas que nos cercam? Das coisas que de tanto ver, já não enxergamos? Que sentido tem a obviedade d’As coisas, quer dizer, a obviedade dos versos de Arnaldo Antunes, como Nilton Tridapalli sugere questionar? Encontrá-lo, o sentido, talvez dependa do tipo de leitor que o texto encontra pela frente, considerando que ele, o leitor, esteja disposto a entrar no jogo proposto pelo autor. Para tanto, é preciso que se liberte das velhas concepções padronizadas e aceite o fato de que o modo de ver e representar o mundo mudou. É também com outros olhos que somos convidados a nos colocar diante das manifestações artísticas contemporâneas. Parece que é mais ou menos isso o que Nilton Tridapalli nos quis dizer.

No mais, a quem se interesse pelos rumos tomados pela literatura atual, vale percorrer cada um desses espaços de leitura, pois, como disse Marcella Guimarães, na apresentação do livro, eles emergem não só da urgência do crítico de informar o leitor e de alguma forma julgar a produção literária mais imediata, como se desenvolvem na ponderação do acadêmico, que, ao analisar a obra literária, traz consigo todo o repertório de leituras do leitor profissional.

Literatura dos anos 90
Marcella Lopes Guimarães (org.)
Juruá
147 págs.
Marlise Sapiecinski

É professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária da PUCPR.

Rascunho