Humana decadência

De volta aos velhos livros encontrados na parte mais oculta da estante
01/09/2003

Segunda parte
De volta aos velhos livros encontrados na parte mais oculta da estante. De volta às obras que fizeram minha cabeça há quase vinte anos, agora resgatadas por mero acaso. Como ficou claro na primeira parte deste ensaio, a memória traída reencontrou o seu suporte inconsciente.

Salomé
Wilde, a fim de pôr em prática uma espécie de jogo de xadrez dramático, moldou suas personagens de maneira que nos mostrassem uma face estereotipada. Ou seja, elas adotam uma postura imutável e repetem insistentemente quase que a mesma e única fala. Se João Batista não se cansa de vociferar contra Herodíade: “Ah! a dissoluta! a meretriz! Ah! a filha de Babilônia, de olhos dourados e pálpebras coloridas! Eis o que diz o Senhor. Que venham contra ela multidões de homens. Que o povo apanhe pedras para lapidá-la.”; Herodes, por seu turno, não se cansa de contemplar a beleza avassaladora da sobrinha, nem de implorar-lhe que dance: “Por minha vida, por minha coroa, pelos meus deuses. Tudo o que desejardes vos darei, mesmo que seja a metade de meu reino, se dançardes para mim. Oh! Salomé! Salomé, dançai para mim.”; e Herodíade, dando continuidade ao processo de educação estética pela repetição, não se cansa de pedir ao marido que deixe de “comer com os olhos” a filha: “Não permitirei que ela dance enquanto a olhardes dessa maneira. (…) Não danceis, minha filha”.

Leitor apaixonado de Flaubert e Huysmans, com o autor de Salambô Wilde aprendeu a ter prazer com os temas místicos, com o desregramento dos sentidos que a bebida e o ópio proporcionam, com a elaboração e apreciação de imagens exóticas finamente bordadas. Já com o demolidor do realismo aprendeu não só a amar a multifacetada Salomé (pois cada artista elaborou a sua: há a Salomé de Veronese e a de Leonardo, a de Ticiano e a de Tintoreto, a de Mallarmé e a de Laforgue) como também a adotar certa postura incendiária, sintetizada literariamente na figura de des Esseintes, que tanto admirava. Com os simbolistas aprendeu, ainda, a evitar a mera crítica social em detrimento da reelaboração de mitos e arquétipos.

A primeira parte do drama converge para o ponto alto da peça: a dança de Salomé. Absolutamente deslumbrado pelas infinitas representações pictóricas e literárias da dançarina da Judéia, Wilde debruçou-se sobre dezenas de variações do mito antes de finalizar a sua própria: suntuosa e cheia de luxúria. Desejou principalmente que sua personagem não fosse, de maneira nenhuma, apenas uma filha obediente e sem pecado, simples ferramenta da vingança da mãe, ou, nas palavras de Gomez Carrillo, no ensaio Como Oscar Wilde sonhou Salomé: “A pobre filha que, ao receber o sangrento presente, precipita-se para sua mãe a fim de entregá-lo”. A Salomé de Wilde é, ao contrário, puro desejo em ação, figura ativa e inteiramente nua, mas enleada em pedras preciosas, com jóias nos tornozelos, nos punhos, nos braços, em torno do pescoço, apertando a cintura. Salomé, assim caracterizada, aproxima-se muito de outra virgem fatal, Salambô, pois as jóias que recobrem o corpo seminu tanto de uma quanto da outra, por terem sido confeccionadas de matéria alquimicamente mais sofisticada, tornam-se expressão da energia primordial, que, sob certos aspectos, evoca a pura elevação da libido, principalmente quando apresentadas por meio da dança.

A decapitação de João Batista — entendida aqui, consoante Chevalier e Gheerbrant (Dicionário de símbolos), como ato ritualístico que visa a eliminar do profeta, extirpando-lhe a cabeça, o espírito que se encontra nela sediado — só faz sentido se cotejada com outro ato de mesmo peso, mas de valor inverso: a dança. O lado oposto do exacerbado espiritualismo do Iocanaan é justamente a dança de Salomé, por ser esta a manifestação dos instintos, espécie de febre capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, e a manifestação mais explosiva da própria pulsão de vida.

Às avessas
Quem me presenteou com esse romance foi o seu próprio tradutor para o português, José Paulo Paes, na única vez em que o vi pessoalmente. Tempos depois um colega de faculdade levou emprestado o livro autografado e nunca mais o devolveu. O exemplar que ainda mantenho comigo é outro, comprado num sebo. Portanto, aí vai o apelo: você, querido ex-colega, que certamente me lê neste momento, dê ouvidos à sua consciência e faça o que é certo. Devolva-me o que não te pertence, sacripanta.

Feito o pedido, passemos ao livro.

Tal filho, tal pai. As observações que Jung fez a respeito de Ulisses, logo no início do ensaio que escreveu sobre o livro recém-publicado, servem como uma luva para Às avessas: “Ulisses, de Joyce, em contraste absoluto com seu homônimo da antigüidade, é uma consciência passiva, apenas perceptível, um mero olho, um nariz, um ouvido, uma boca, um nervo sensorial, exposto irremediável e desenfreadamente à catarata ruidosa, caótica e lunática dos acontecimentos anímicos e físicos, registrando estes com nitidez quase fotográfica”. Substituindo-se o nome de Joyce pelo de Huysmans, e o de Ulisses pelo de Às avessas, o que ficou dito ainda continua a fazer sentido. E Jung segue em frente, em sua tentativa de interpretar a nova forma que o romance ia tomando bem diante de seus olhos: “Objetivo e subjetivo, externo e interno interligam-se mútua e constantemente de tal modo que, apesar da clareza da imagem individual, persiste no final a dúvida se se trata de uma lombriga física ou transcendental. A lombriga é, em si, um cosmo vivo, possuindo uma fabulosa fecundidade; na minha opinião, uma imagem nada bonita, mas não de todo imprópria para Joyce. É bem verdade que a lombriga não pode produzir nada além de novas lombrigas, mas isso ela consegue com uma abundância inesgotável”.

Porém, mais pertinente do que comentar o que veio depois é falar do que veio antes, dos antecessores. Em prosa, se Ulisses apresenta parentesco com Às avessas, este por sua vez mantém vínculos de consangüinidade com o romance de Xavier de Maistre, Viagem à roda do meu quarto (1794), e com a revolucionária obra em progresso, também vertida para o português pelo mesmo José Paulo Paes, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1761, data da publicação dos dois primeiros volumes da obra).

Se, por um lado, des Esseintes é o avatar novecentista do narrador da Viagem, e do próprio Tristram, por outro ele parece assumir ainda, num só corpo, a personalidade literária de todas essas mulheres improdutivas dos poemas de Baudelaire — improdutivas segundo o olhar burguês, para quem a mulher deve ser antes de tudo esposa, gerar filhos e cuidar do lar —, como se trouxesse dentro de si, de um único golpe, várias encarnações: a da prostituta, a da lésbica, a da ninfomaníaca e a da frígida. O onanismo intelectual que a personagem ostenta nas páginas de Às avessas, masturbação que é o próprio sentido do livro, só poderia inseri-la no rol dos grandes improfícuos da sociedade de seu tempo.

Averso a todo o convívio humano, impotente e, além disso, possuidor de sentidos hipertrofiados, que o obrigam a habitar a mais silenciosa das residências e a proceder de maneira minuciosa na escolha do tom exato da cor das paredes, dos tapetes e do mobiliário, difícil não compará-lo a outro hipersensível ilustre, Roderick Usher, que “sofria muito de uma acuidade mórbida dos sentidos; só o alimento mais insípido lhe era suportável; eram-lhe asfixiante os perfumes de todas as flores; mesmo uma fraca luz lhe torturava os olhos; e apenas sons especiais, além dos brotados dos instrumentos, não lhe inspiravam horror”.

Mas des Esseintes, para além da morbidez de um Usher, salva-se pelo histrionismo, pois, a meu ver, o romance não passa — sendo justamente esse seu grande mérito — de deliciosa coleção de chistes e de apontamentos satíricos, figurando entre eles, por exemplo, o trabalho de ourivesaria feito no casco da tartaruga (que logo depois vem a morrer), as minuciosas ilações tiradas da física das cores e da química dos aromas, as experiências mecanicistas com a psicologia humana (des Esseintes, verdadeiro poço de cinismo, incentiva o amigo d’Aigurande a se casar e ajuda o jovem Langlois a se tornar um criminoso), a perseguição onírica da fêmea devoradora de homens metamorfoseada em planta carnívora, os preparativos para a viagem a Londres (que não se realiza) e assim por diante. O forte desse romance é a digressão — estado de consciência das lombrigas, pelo que ficou dito por Jung —, elemento retórico também empregado anteriormente por de Maistre e Sterne, sendo que, por este, como recurso humorístico, por meio do qual a livre associação de idéias vai minando a fala de todas as personagens (no Tristram, a pretexto de narrar cronologicamente determinado acontecimento — um nascimento, uma viagem — as personagens rapidamente enveredam por subnarrativas, que por sua vez vão se emendando em novas subnarrativas, que jamais se concluem.) Em Huysmans o humor é penetrante, irredutível e pessimista. Talvez esse casamento entre a sutil bufonaria e a sisudez do naturalismo, menos afeita ao jocoso inerente ao animal enlouquecido que é o ser humano, seja, em síntese, o que deixou livre Paes, no prefácio, para considerar Às avessas o primeiro romance art nouveau da História.

Outra Salomé
O conto Salomé, de Jules Laforgue, é pura fantasmagoria, fruto da revolução estética iniciada com o romantismo e levada adiante com o simbolismo. Apesar de lembrar, e muito, Salambô — passaria com facilidade por fragmento de algum capítulo do romance de Flaubert, que discorresse sobre uma das inúmeras cidades de exótica arquitetura construídas próximas de Cartago —, não há, nesse texto, nada que o situe em um momento histórico determinado e fixo. Muito pelo contrário: Laforgue fez questão de misturar e embaralhar as cartas de diversos baralhos, antes de construir seu pequeno porém minucioso castelo de narrativa de ficção-científica.

As personagens são conhecidíssimas: Salomé, princesa da Judéia; Esmeraldo-Arquetipas, o Tetrarca (nem uma vez chamado de Herodes) e, em homenagem a Wilde, Iocanaan, ou melhor Iaokanann, novamente no papel de João Batista. Também familiar é o palácio das mil e uma noites onde a ação se desenrola, com incontáveis alamedas, galerias sinuosas, adegas abastecidas de todo o tipo de beberagem, um zoológico e um aquário de tirar o fôlego — todas as salas amplamente decoradas com miríades de ídolos pagãos —, além dos famosos jardins suspensos, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Mas o elemento que torna o conto de Laforgue diferente dos demais já escritos sobre o mesmo tema é a maneira inesperada com que o autor joga com as expectativas do leitor. Consciente de que, por mais que se esforçasse, jamais conseguiria suplantar Flaubert na descrição de personagens e ambientes suntuosamente ornamentados, Laforgue passa a lançar mão de diversos anacronismos, fazendo de seu texto espécie de colagem surrealista avant la lettre.

Ao costurar as referências as mais inusitadas — compondo a narrativa da mesma forma que Gustave Moreau, guardando as devidas proporções, compunha seus quadros —, o autor faz com que o assombro se instale no leitor. O primeiro desconforto dá-se logo no início, quando da chegada dos Príncipes do Norte; Esmeraldo-Arquetipas, preocupado, avalia a situação de Iaokanann, que “pertencia àqueles filhos do norte, comedores de carne e de faces não depiladas, malfadado Iaokanann, que ali surgira uma bela manhã, com seus óculos e sua barba ruiva em desalinho…”. Óculos? Apresentar o Batista como portador de miopia ou de astigmatismo é algo que, com um pouco de boa vontade, torna-se aceitável, porém dificilmente poderá ter respaldo nas iluminuras bizantinas e medievais um profeta dos Evangelhos usando aparelho tão contemporâneo quanto um par de óculos. Logo em seguida, para nos manter em suspensão, surge nada mais nada menos do que todo um observatório astronômico sustentado por pilares de aço, onde só falta mesmo o telescópio! (Mais adiante veremos que Salomé, excelente astrônoma que é, coleciona fotografias coloridas de estrelas de todas as grandezas, a fim de reproduzir essas mesmas estrelas em diamantes que possam adornar-lhe o penteado). Durante a leitura continuamos a esbarrar em novos anacronismos, todos meticulosamente posicionados no texto, tais como a citação do nome de Napoleão I e de Jean-Jacques Rousseau, o aparecimento de patinadores no gelo (que desenham com a lâmina dos patins catedrais góticas na superfície cristalizada) e de relógios de bolso etc.

Laforgue, como Mallarmé com o drama Herodias e Eugênio de Castro com o poema Salomé, também engendrou uma Salomé atemporal. Seguindo a mesma trilha palmilhada pelo drama e pelo poema citados, em que “a parafernália imagética tem a função de criar a atmosfera necessária à eclosão do drama histórico, mas sem se referir obrigatoriamente a uma época específica”, pois “não é a Salomé bíblica (…) que interessa, mas, sim, uma Salomé fora do tempo e do espaço, ou mesmo habitante de um espaço onírico” (Álvaro Cardoso Gomes, no ensaio Salomé, starlet simbolista), o conto laforgueano, no entanto, em determinado momento opta por pegar um atalho, passando a enriquecer o mito justamente por ver-se livre dos lastros que o teriam mantido preso à narrativa bíblica. Tanto isso é fato que não há sequer a figura de Herodias, nessa paródia à maneira de Ray Bradbury e Arthur C. Clarke, cuja protagonista, além de não manter nenhum vínculo de sedução nem com João Batista nem com Esmeraldo-Arquetipas, vocifera sentenças sem pé nem cabeça, como que a antecipar a escrita automática dos surrealistas. Nesse país das maravilhas simbolista, até mesmo o desenlace — a queda de Salomé da balaustrada do observatório — parece solução de espetáculo circense.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho