O diálogo que atravessa Prova contrária poderia ser um sonho. A mulher que começa a trama adaptando-se à recente mudança de apartamento pode bem travar uma conversa com os fantasmas de seu passado. Ou não. Pode-se tratar, realmente, do reaparecimento do homem, depois de tempo infinito, cujo sumiço rendeu uma “indenização” do governo federal, o qual justamente possibilitou a compra do apartamento. A grana pelos desaparecidos. Um cala-boca que o governo resolveu definitiva e generosamente dar às famílias dos desaparecidos durante os anos negros da ditadura militar.
Trabalhos ficcionais que contêm histórias passadas durante o regime militar, no Brasil, não há em quantidade significativa. Literatura existe pouca, menos ainda a não-ficcional. Cinema há algum.
Há textos descritivos, como o interessantíssimo Brasil: nunca mais. Há outro livro, Um milagre, um universo — acerto de contas com os torturadores, de Lawrence Weschler, que conta peripécias no Brasil, Argentina e Uruguai, de como gente inteligente burlou os regimes e armazenou dados para futuras denúncias a esses governos.
No cinema, o alegórico O que é isso, companheiro?, o contundente Pra frente Brasil, dentre outros. Há um documentário doloroso, porém espetacular, narrado por Irene Ravache, intitulado Que bom te ver viva, trazendo depoimentos de mulheres vitimadas pela tortura, que deveria ser obrigatório em qualquer escola: histórias de pessoas comuns e inocentes aterradas pela crueldade e anencefalia de uma ditadura sem pé nem cabeça.
Neste Prova contrária, Bonassi não faz longos relatos, utiliza-se de uma situação, o desaparecimento de um homem no referido período e a vida de sua mulher depois desses anos todos. E o reencontro. Mas o que o autor melhor explora é a repercussão desta ausência, os meandros dos mecanismos conscientes e inconscientes no lidar com uma morte não comprovada, um ente querido que se foi mas que não se viu enterrar ou cremar. Um luto que jamais termina.
O livro é breve, 97 páginas, e a dinâmica dos diálogos e pensamentos de ambos os personagens leva o leitor com rapidez ao término do volume. Não há fosforilações descabidas, as cenas se sucedem redondamente (visto que o autor abre o livro dizendo: este livro foi feito para sugerir uma encenação). E o leitor imagina facilmente o cenário, a movimentação dos atores, a queda do pano no final.
Há diálogos cortantes (“— Eu fiz um aborto. O homem, com curiosidade: — Eu deveria saber disso? — Não, dever não… Foi quando comecei a dar como louca. Disso você precisa saber. Ainda não decidi se é uma espécie de vingança ou de explicação. Ma é bom que você saiba”); frases bonitas (“E executo os meus desígnios com essa fascinação de moça, que empresta o viço do corpo ao receio dos tempos”); elocubrações sobre um possível futuro mais justo (“Talvez seja hora dos covardes explicarem as suas razões, aquém das razões do Estado. Que eles não tenham sido punidos com qualquer rigor é intolerável. Que não possamos estragar suas noites de sono, ao menos. Que não sejam conhecidos como aqueles que foram capazes, por aqueles que foram incapazes. Envergonhá-los. Sim, primeiro. Depois o fuzilamento. Ou algo sem dor. Uma pílula. O que será da justiça se não houver alguma forma de vingança?”).
No final do livro, há um capítulo chamado Finalmente uma cena de sexo. Uma torrente de imagens descreve o ato, de forma rítmica (“Tem remorso. Tem desejo. Tem o meio do caminho. (…) Tem uma ruga. Tem uma pinta, uma verruga. Tem as unhas. Tem uma vontade de rasgar. Tem uma necessidade de morder. (…) Tem as costas aplainadas. Tem as nádegas escancaradas. Tem o rego. Tem o regaço. Tem as pregas. Tem o oco. Tem as vísceras. Tem o cuspe e a saliva. Tem o cheiro. Tem o beijo. Tem os dentes”). Um ritmo que me lembrou Águas de março. O sexo é um influxo e um contrafluxo interminável, um maré que jamais cessa seu movimento, um vai e vem que apenas se acalma mediante a exaustão ou a ausência de tesão.
O novo trabalho de Bonassi é um estudo desses movimentos. Do voltar e partir. Como bem escreve o autor na conclusão do primeiro e único ato: “—Agora pode ser uma curiosidade. Pode ser um desejo. Porque há um ciclo que precisava ser recorrido. Porque partir e voltar, não necessariamente nessa ordem, são as duas caras dessa história”.