Com as fuças enfiadas em plantações e em pastagens que rodeiam seu amontoado de casas e suas ruas de terra e algum asfalto, no que se chamou piedosamente de cidade de Peabiru, o extremo da Avenida Vila Rica, depois de cruzar a rodovia, é o primeiro ponto de parada de ônibus podres, cacos sacolejantes de jipes sem capotas, precárias picapes, cavalos lerdos e andarilhos de embornais de pano de saco, encardidos nas mãos sempre suadas.
Os peões vêm vender galinhas, feijão, arroz, mamona, café, algodão, tudo em pequenas quantidades, o suficiente apenas para adquirir querosene, macarrão, sal, açúcar, fumo, fósforo e bebida.
Competindo com as vendas e as cerealistas que oferecem o primevo suprimento, os bares de mulher atraem a peãozada, cansada dos carinhos calosos da bronha, mais próximos da lanhação, e do conhecimento bíblico de éguas, galinhas e vacas mansas.
Depois da semana de trabalho nas lavouras, sábado é dia de outros plantios, de muita pinga e de um e outro pedaço de lingüiça, comido no meio de um pão de padaria (novidade das novidades), tudo praticado em pé, na frente do balcão, rapidinho para não desperdiçar a folga e a farra. A comida é sempre improvisada e pouca, apenas o suficiente para garantir sustança e dar vontade de enfrentar as pernas brancas das damas, amassar a rasteira mata e, com a destreza de quem usa a plantadeira matraca, deixar sementes nesses pântanos podres.
Na cabeça já quase rural da Avenida Vila Rica, num terreno abandonado na beira da estrada, uma única peça compõe a casa e o quiosque de Toninha, negra de alugados afetos e inumeráveis fetos nesta festa sem preservativos e de muitos aperitivos. O peão fica do lado de fora, toma suas pingas e depois de negociar o preço, entra pela porta lateral do quiosque. A dona expulsa os dois filhos, Fujam já daqui!, derruba a tampa sobre o balcão, fechando o comércio, para mostrar seu mais puro produto.
Pelas ruas, vemos José, o filho mais velho, negro como a mãe, e Mano, mulatinho esbranquiçado, filhos de desencontrados pais. José é alegre como uma lua cheia em noite de verão, sempre risonho e tímido, assiste tevê do lado de fora de nossa casa e ri de nós, dos programas, da vida — com ou sem freguês na cama de casal em que todos dormem. Muitas vezes, os meninos ficam do lado de fora do barraco a noite toda, esperando que o peão saia de manhãzinha para, em outros bares, curar a ressaca com mais cachaça e depois se afogar entre outras pernas.
Todos os dias, assim que escurece, minha mãe abre a janela da sala e já surge a carona redonda de José, pronta para a amizade. No Natal, levamos a eles garrafas de tubaína, alguma comida, um pedaço de carne. Ele começa a ajudar o padrasto no sítio e em outros serviços. Cresce forte e incapaz de um gesto mais rude. Mesmo se xingado, escancara carinhosamente a boca cheia de dentes e de cáries.
Mano quase não freqüenta nossa casa, perde-se por outros caminhos. Cedo, muito cedo, com apenas dez anos, se assanha com alguns assaltos, dorme o dia todo, larga a escola e vai aos poucos levando vida de bandido. Antes dos quinze sai pelo mundo, sem chegar a ver a morte da mãe, mais bêbada do que seus furtivos fregueses.
José fica um tempo na cidade e depois escorre para a capital, em busca de serviço. Mano é assassinado durante um assalto, sem completar vinte anos. Nós também abandonamos a cidade, guardando-a em nossas lembranças mais lânguidas. Os peões, todos sumiram, deixando apenas um rasto anônimo de filhos. E ao lado da cidade surgiu o grande circo de casas de conjunto.
Asfaltaram quase todas as ruas e isso não melhorou a vida em nada. É o mesmo sertão de sempre, agora sem gente nos sítios, todos acampados à espera da ajuda do governo.
Em uma de minhas voltas àquele território indócil, um jovem negro me cumprimenta enquanto passo de carro. Paro e reconheço José, que me conta, rindo, que está de novo e para sempre na terra de sua mãe morta e bem enterradinha — sobre o túmulo com apenas uma cruz plantou um canteiro de margaridas. Andou por São Paulo e outros lugares mais bonitos, mas não conseguiu esquecer a cidade que nos cicatrizou. Trabalha agora para os fazendeiros da região, me fala dos dois filhos e da mulher, me dá o endereço de uma casinha de conjunto (segundo minha mãe, muito bem arrumadinha) e nos esquentamos com a memória daquele tépido tempo.
Pulando de um assunto a outro, amigos mortos, mulheres desejadas, natais inesquecíveis, me diz que comprou uma tevê nova e que a casa já está quase paga.
Solta então um riso de satisfação, de orgulho e principalmente de amizade. Combinamos um encontro e saio satisfeito. Olho para ele, pedalando sua bicicleta nova. Tem o porte dos heróis.
P.S. No lugar do quiosque, destruído quando chegou o asfalto, furou-se um poço artesiano que abastece a cidade com sua água sem rancor.