A diversidade de linguagens poéticas existente contemporaneamente exige do leitor um esforço peculiar para distintos tempos e posturas de leitura de forma a se entrar no universo de cada livro ou poeta e não recusá-lo por estranho, ilegível, rarefeito ou outro motivo, já pelos primeiros poemas. Além disso, como experiência já amplamente assimilada da poética moderna, a consciência poética não permite mais ao leitor resquícios de ingenuidade. Cabe a ele, portanto, um esforço de compreensão para desvendar cada experiência poética em suas peculiaridades, em vez de recusá-la, buscando o tempo adequado de leitura segundo a proposta da voz com a qual se defronta.
Tome-se por exemplo o novo livro de Flávio Viegas Amoreira, A biblioteca submergida, que, por cultivar uma escrita em jorro, ou uma espécie de “acumulação escatológica de palavras concentradas”, segundo uma citação que o autor faz de Kerouac, pede do leitor uma velocidade especial de leitura; pede uma urgência que dê conta da cornucópia que se abre dessa biblioteca submersa e derrama palavras, nomes e referências que não necessariamente solicitam reconhecimento, uma vez que estão a serviço de uma voz poética poderosa que as manipula para se esgueirar.
O poema, como se sabe, é a linguagem em movimento e, nesse caso, em movimento vertiginoso, “polispermo”, conforme sugestivo verso que sobressai dessa voz homotemática enfibrada em meio a uma intensa polissemia de signos. Esses signos emergem de uma biblioteca pessoal, composta de autores e personagens que servem como interlocutores no poema, de Wittgenstein a Lúcio Cardoso, formando uma legião que pode vir da obra de Homero e chegar até o Mundo Mix, tal como é mix essa biblioteca que emerge da escrita para o leitor, em forma de rebeldia contra o fato de que “fizeram pontes para onde nos escondíamos”. Veja-se o trecho inicial de Baía ampla: “Colhendo estranho peixe de água doce/ gáudio nenhum pejo/ ratos na garagem morrem tiram-me qualquer// sério/ todo que horroriza é júbilo depois de limpo/ amado Papa que nos rejeita, no momento todos querem// igrejas erigidas sobre indivíduos/ válvulas ocas/ plástico/ pantheons postiços, bom Papa que rejeite e segrede// que se fingido posso. bom Papa amado: queremos proibições!/ certeza de remorso/ castigo público…”
Sob outro aspecto, com essa escrita que busca intensidade, o autor almeja alcançar um ideal apontado por Shelley em Defesa da poesia, de que “A poesia é o registro dos melhores e mais felizes momentos dos melhores e mais felizes espíritos…” — daí que a poesia de A biblioteca submergida apresente certo tom memorialista ao mesmo tempo em que carrega a intenção de demonstrar a vertigem da vida, com vida e memória submersas elas mesmas nessa intensidade de linguagem que se explicita pelo excesso verbal, sem que isso seja um dado negativo.
No extremo oposto da poética de Viegas podemos encontrar por exemplo a de Pedra habitada, de Cândido Rolim, que pede do leitor a suspensão do tempo e a intercalação de pausas entre cada sílaba ou palavra durante a leitura de forma que haja fruição. Nesses poemas econômicos de palavras, que dispensa as desnecessárias, a vertigem da vida e dos sentidos somente são atingidos se o tempo parar e se enovelar de silêncio para que se alcance a amplificação do detalhe: “uma gota/ no teu colo/ dura/ o tempo/ de/ uma/ jóia”.
Se na poética de Viegas prevalece a língua afoita, na de Rolim é o olho que faz mediação com o mundo: “sob a pálpebra/ cerrado/ o olho vive/ o/ âmbito”. Um olho que se casa com os sentidos para perceber na pele a brisa tênue e no poema a passagem do tempo: “mão/ pedra/ nada debulha/ a espiga/ como/ o vento”.
Para Rolim, em sentido contrário, portanto, uma poética somente se constitui se houver depuração sígnica: “de que adianta a poesia esforçar-se em descrever fielmente uma dor, um anzol, uma mulher desnuda, se todas essas circunstâncias são ainda um sujeito embriagado de pertinência falando de um objeto?”
São duas experiências poéticas distintas, que não se excluem, por mais opostas, nas quais a aventura da linguagem começa em cada poema para o leitor que consegue descobrir o tempo adequado de leitura que exige a poesia.